Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Não Quero!

Morre-se de abandono…
As mãos ao longo do corpo abandonadas.
Abandonado o olhar ao ponto longínquo da desistência.
Os argumentos e os contra-argumentos abandonados ao ouvido alheio.

Morre-se de abandono…
O desapego da ignara prepotência.
A desconfiança da religião e da ciência.
A vida escorre lenta e difusa como um sonho no sono.

Morre-se de desumanidade…
Não creio, já, em poetas e profetas.
Não creio na marcha dos líderes nem dos falsos exegetas.
Não creio no Homem nem na Humanidade. Abjuro a Pólis, a Urbe e a Cidade.

Assisto, consciente e incrédulo,
Como se, ao morrer, soubesse que ia de facto morrer,
Sem luz nem esperança, nem a salvação que todos alcança,
Só o pensamento falido e austero de uma alma em desespero,
Ao triunfo sonoro e ruidoso da ignorância e da inércia sobre o estudo e o esmero.

Em tudo sinto saudade de como foi.
Não quero querelas, já, que não valem a pena.
Não quero o Saber construído a pulso e suor de pensar para além do já pensado,
Na mesma cama que a jactante e falaciosa opinião. A mesma que rebola pelo chão vazio de uma ideia.

Fico.
Não parto, sequer.
A partida, é já uma corrida perdida.

jpv


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Também já não é Vida

Como uma rajada,
Violenta e inesperada,
Entra o gume da faca
Na carne da alma.
A impotência do moribundo
À vista da ave
Que corre mundo
E nem sabe porquê.
O Homem é mais
Do que aquilo que vê.
A decisão retida.
A palavra contida
Em nome de uma paz
Que é morte anunciada.
Porque permanece o nauta
De olhar no horizonte
Debruçado n’ amurada
Se não há, já, porto
Para a nau triste,
Perdida e naufragada?
Há uma morte fingida,
Uma morte que não mata
Nem é saída.
E, contudo, trágica,
Também já não é vida.

jpv


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King James III

Se a minha morte
Fosse a tua vida,
Não seria uma vida perdida,
Mas um singelo golpe de sorte.

Se a minha sorte
Fosse o teu sopro,
Morreria por gosto
E entregaria o corpo
Ao pó e ao abandono.
Se fosse o meu profundo sono
A luz dos olhos,
Enfrentaria criaturas medonhas,
Superaria barreiras e escolhos,
Só para morrer por ti.
O que tu és
Não tem fim.
O que tu és,
Seguimento de mim,
Na morte e na vida.
Palavra vivida,
Passada crente e firme,
Luz azul no sorriso,
Diáfana imagem
Antes de ir-me.

jpv


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Rumores de Tinta 13 – Quem chamou a Morte?

Rumores de Tinta explica como a Morte se instalou na terra.


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Ode ao Lamento

Há um reduto,
Puro e limpo,
Inexpugnável,
Onde não chega
O bafo da sorte
Nem a lâmina da morte.
Um reduto
Sem o arco-íris da promessa
Onde não chega o vagar nem a pressa,
Nem o bem,
Nem a maldade da gente.
Esse reduto
É a minha mente.

jpv


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Amanhece… 

Amanhece.
E com o amanhecer,
Até parece
Que vale a pena viver.
A Natureza,
Em sua pujança matinal,
Renova a luz,
Renova o espírito,
Renova o Universo,
Em cada aurora inaugural.
E cria em mim
Esta turva ilusão
De que cada dia
É um dia novo,
Uma nova canção.

E tudo isto é belo,
E tem seu sentido,
Mas anda um poeta
Pelas noites da alma
Só…
E quase perdido.

Que amanhecer é esse
Em que te não vejo
E te não ouço?
Que poder é esse
Em que tu podes
E eu não posso?

Entardece minha vida.
Aproxima-se a partida.
Neste breve entardecer
Não há manhã
Que me resgate
À fortuna de morrer.
Uma palavra que fosse,
Uma palavra e um gesto sereno…
O tempo esgotou-se.
Para tanto desejo,
Meu desejar é pequeno.

Anoitece.
O céu imenso escurece
E com ele meu peito.
Resta um homem só,
Refugiado
Num corpo imperfeito.

Vem de novo o silêncio,
Esfumam-se os traços do teu rosto,
Tuas expressões já esqueço.
Invade-me o breu
E anoiteço.

jpv


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Morrer

africa-tree

A ausência da palavra.
A dor do silêncio.
O inequívoco rumo
Da flecha.
Uma alma vergada
Ao sofrimento
Num corpo só
E exilado de ti.
Um grito, primeiro.
Depois, um lamento,
Um debater-me com o inexplicável.
E por fim o choro.
Caminho cego
E prometo voltar a ver,
Mas nada já me resta
Na vida
Melhor que morrer.

jpv


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Limiar

Limiar

Não há mais palavras
Nem vontade,
Nem desejo.
Há só a calma aceitação
Do que sinto
E do que vejo.

Era tão bom
Quando ainda me importava.
Quando havia luxúria no meu corpo.
Quando a energia me arrepiava as carnes
E o cheiro do teu corpo
Bloqueava os outros sentidos.
E o sentido era único.

Já não quero a eternidade.
Não me diz nada o tempo todo.
Tinha uma só vida…
E adiei-a.

Tinha uma só voz
E poupei-a.

Tinha um só corpo
E preservei-o.

E nada me resta mais
Que a condição miserável
De morrer conservado
E saudável.

Bebam o álcool todo!
Fumem todo o tabaco!
A vida é um barco
E não há terra.
Deleitem-se com todos os corpos,
Possuam todos os sexos!
E caminhem nus pela praia da vida
Na aurora de cada dia.
Nada mais existe do que o momento.
Cada momento
É todo o tempo
Que temos.
Cada dia é a hora de ser vivido.
Amanhã é tempo perdido.

E quando olhardes para trás,
Contemplai
Um lastro de vida vivida,
Um rasto de experiência
E desperdício.
Os verdadeiros despojos
Do exercício
De sentir-se único e vivo.

E pagai para ver!
Correi todos os riscos!
Só no limiar do azar
Abunda a sorte.
A vida inteira e única
Só se conhece nas fronteiras da morte.

jpv


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O Corpo do Jovem

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Nesse sinuoso caminho,
Trilhado com dor e sangue
Jaz morto e frio,
O corpo do jovem, exangue.
Tombou lá longe, sozinho.
Não tinha nada de seu,
De seu não tinha nada.
Só a alma envolta no breu,
E a carne, a golpes, dilacerada.
E vive exultante em meu peito,
Neste fogo de paixão que me consome.
Esse menino que morreu lá longe,
Viveu e fez-se homem.
Por cada golpe
E por cada ferida que dói,
Morre mais o menino
E cresce, em mim, o herói.

E tenho esta visão,
Este conforto de assistir
À grande revolução
Que é ver-te partir.

 jpv


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Espectro

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Queria viver outras vidas,
Mas só me resta…
Esta.
Queria viver outras aventuras,
Encontrar novos portos,
Desvendar outras ternuras.
E ser outro homem
Sendo o mesmo.

Queria viver outras vidas,
Mas só me resta…
Esta.
Morrer outros problemas,
Enfrentar fantasmas diferentes,
Chorar outras lágrimas,
Ter outros amores ausentes.
E ser outro homem,
Sendo o mesmo.

Queria viver outras vidas,
Mas só me resta…
Esta.
Lamber o sal de outros corpos,
Despedir-me de outros mortos,
Viajar outras viagens,
Estender o olhar noutras paragens.
E ser outro homem,
Sendo o mesmo.

Queria viver outras vidas,
Mas só me resta…
Esta.
Trabalhar outros trabalhos,
Beber na pele outros orvalhos
E rasgar a carne nos espinhos de outras roseiras.
Descansar outros descansos
E suar outras canseiras.
E ser outro homem,
Sendo o mesmo.

E há nisto tudo
Uma prisão
E uma finitude
Que me ofende
E oprime.
Não me chegam as promessas
De outras vidas,
De aléns oferecidos pelas divindades
E pelos livros sagrados.
Não me chegam os jardins
Nem os juízos, nem os encontros entre finados.
Não me chega a eternidade prometida
Se esta é a única e verdadeira vida
Que vejo e sinto em mim.
Nada me chega
Se paira sobre tudo isto
O lúgubre espectro do fim.

jpv