Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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A Paixão de Madalena – Capítulo 27 (Excerto)

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O presente texto constitui um excerto do capítulo 27 do Romance “A Paixão de Madalena” que publicaremos em breve.

 A PAIXÃO DE MADALENA

LIVRO V – FIAT LUX

27. E Cristo ordenou aos empregados que não ficassem ali parados, que agarrassem nas ânforas e fossem à fonte na beira da estrada que pouco distava dali e as enchessem com água e as vazassem nos copos dos convivas. E os empregados olhavam incrédulos o viajante como que desconfiando da possibilidade de cumprir aquela ordem porquanto não percebiam como enchendo âs ânforas de água, delas jorraria o vinho a servir. Ide! Disse-lhes o viajante e eles foram com passo incerto e não se aperceberam como sucedeu o que os seus olhos presenciaram pois que enchiam as ânforas de água na fonte e as vazam de vinho à mesa.

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[O presente texto constitui um excerto do Capítulo 27 de “A Paixão de Madalena” a publicar em breve em livro. Boas leituras!]


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A Paixão de Madalena – Capítulo 26 (Excerto)

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O presente texto constitui um excerto do capítulo 26 do Romance “A Paixão de Madalena” que publicaremos em breve.

 

A PAIXÃO DE MADALENA

LIVRO IV – ASCENÇÃO E QUEDA

26. Em nossa pequenez e em nossa grande ignorância, procuramos, nós, humanos, a estabilidade na constância e fugimos da errância por ser fonte de instabilidade. E contudo, nossa natureza intrínseca é errante. E é nesse divagar pelo mundo, pelas pessoas e pelo conhecimento, que crescemos e enriquecemos e fortalecemos para a vida. E cremos, até, controlar os nossos passos, as nossas opções, o curso da nossa vida e a nossa presença no Universo. E tudo isso é tão vulnerável, tão mutável como a própria vida. A notícia chegou num sobrescrito branco, de janela, com o nome de Albertina a espreitar e o símbolo da República Portuguesa no canto superior esquerdo.

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[O presente texto constitui um excerto do Capítulo 26 de “A Paixão de Madalena” a publicar em breve em livro. Boas leituras!]


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A Paixão de Madalena – Capítulo 23 (Excerto)

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O presente texto constitui um excerto do capítulo 23 do Romance “A Paixão de Madalena” que publicaremos em breve.

A PAIXÃO DE MADALENA

LIVRO IV – ASCENÇÃO E QUEDA

23. Albertina nunca duvidou de que conseguiria criá-las. Mais dificuldade, menos dificuldade, a medida do amor que lhes tinha era a garantia do seu sucesso. Ainda a caminho de Lisboa tomou algumas decisões que são as viagens boas conselheiras, melhores, ainda, que os travesseiros, definiu as linhas mestras da educação das suas netas, coisas que aprendera com a sua própria experiência. Seriam educadas em liberdade e no mais absoluto respeito por esse valor. Seriam educadas para a solidariedade, a compaixão, a entre-ajuda. E seriam educadas na aceitação da diferença, na multiculturalidade. Queria-as longe do pensamento mesquinho, preconceituoso e retrógrado da aldeia que as vira nascer. Seriam mulheres do Mundo, aptas a defender-se, a defender a sua liberdade e capazes de aceitar o outro e a reconhecê-lo como um igual. Tudo o resto seriam pormenores circunstanciais e gravitantes destes pêndulos do pensamento e da ação. E, no dia a dia, nas pequenas coisas que nos ajudam a crescer, nas decisões que ninguém nota, mas nos fortalecem a confiança, ensinou-as a serem cúmplices, inseparavelmente amigas, inigualavelmente unidas.

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[O presente texto constitui um excerto do Capítulo 23 de “A Paixão de Madalena” a publicar em breve em livro. Boas leituras!]


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A Paixão de Madalena – Capítulo 21 (Excerto)

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O presente texto constitui um excerto do capítulo 21 do Romance “A Paixão de Madalena” que publicaremos em breve.

A PAIXÃO DE MADALENA

LIVRO III – CAIM E ABEL

21. Um mês antes. Exatamente um mês antes, em 24 de março de 1973, Manuel Paixão regressou. Vinha farto de África, queimado do sol, com a alma gasta, o corpo mal tratado e o nome sujo, cansado de andar de impresso em impresso. Quando finalmente pisou solo português, era um homem agastado, zangado com a vida, cheio de vícios no corpo e impaciências na alma. Não avisou que chegaria e quando o autocarro o largou na aldeia, a notícia correu as ruas à velocidade da luz, propagou-se de porta em porta, de postigo em postigo, e ninguém se importou com o seu estado ou mesmo com o que poderia fazer quando reencontrasse o irmão ou a mulher que, segundo rumores, estava grávida, quase a parir. Deolinda Paixão, sua mãe, mulher de públicas lágrimas e mandar dizer missas pelo regresso do filho, foi ao seu encontro no largo da aldeia onde o autocarro o deixara e os amigos e conhecidos lhe perguntavam como era África e que tal estava a guerra, se era mesmo para ganhar, e abraçou-o num pranto que mais parecia que ele tinha morrido do que regressado são e salvo, tanto quanto se podia ver:

– Meu filho, meu querido filhinho, tu voltaste, meu filhinho!

– Sim, minha mãe, já cá estou e isso é que importa. Acalme-se, minha mãe.

– Ai a minha família reunida, os meus meninos juntos outra vez. Patrocínio! Chamem o meu Patrocínio! Que venha abraçar o Manuel que chegou vivo da guerra. Já chega de desgraças nesta família, já chega de esperas e lágrimas.

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[O presente texto constitui um excerto do Capítulo 21 de “A Paixão de Madalena” a publicar em breve em livro. Boas leituras!]


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A Paixão de Madalena – Capítulo 20 (Excerto)

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O presente texto constitui um excerto do capítulo 20 do Romance “A Paixão de Madalena” que publicaremos em breve.

A PAIXÃO DE MADALENA

LIVRO III – CAIM E ABEL

20. Quase sem saber, por certo sem querer, fora o próprio Lucílio da Conceição quem apressara os acontecimentos porquanto, certa tarde, na tasca do Quim da Barbuda, cruzou-se com Patrocínio Paixão e não resistiu a provocar o mancebo:

– Olha lá, ó miúdo, tu é que te podias fazer útil e ias lá àquilo meu, batias à porta, anunciavas-te em nome das saudades que hás de sentir pela minha filha, e estás por ali um bocado com elas, vês como estão a desenrascar-se sozinhas, sem um homem macho por perto, e depois vens-me fazer o relato da coisa. Que te parece, hã?

– Senhor Lucílio, quando eu quiser visitar a minha cunhada, hei de fazê-lo por meus próprios motivos e por minha própria conta, sejam eles matar as minhas saudades ou levar e trazer novas para meu irmão, que terá cometido os seus erros, por eles está a pagar, mas continua a ser o esposo da senhora sua filha e o pai da menina, sua neta. E agora, se me dá licença, até mais ver.

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[O presente texto constitui um excerto do Capítulo 20 de “A Paixão de Madalena” a publicar em breve em livro. Boas leituras!]


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A Paixão de Madalena – Capítulo 19 (Excerto)

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O presente texto constitui um excerto do capítulo 19 do Romance “A Paixão de Madalena” que publicaremos em breve.

A PAIXÃO DE MADALENA

LIVRO III – CAIM E ABEL

19. O corpo do homem branco está tombado de bruços com a cara semi-enterrada num charco, a roupa rasgada, o sangue do próprio e alheio a mancharem-na. Um pé negro virou-o e expô-lo à luz do sol. Respirava. Levaram-no para a sanzala. Lavaram-no. Cobriram-lhe as feridas com uma pasta de ervas e deram-lhe água. Acordou febril dois dias depois e viu-a, alta e esguia a seu lado. Teve medo, quis mexer-se, levantar-se e fugir. Ela segurou-o pelo tronco desnudo e levou-lhe um pouco de funge frio à boca. Só então se apercebeu de que tinha fome e comeu tudo o que ela lhe deu. E reparou que pela primeira vez na sua vida fora tocado por um negro. E sentiu o toque sedoso e quente da pele humana e sentiu-se surpreendentemente reconfortado. E sentiu-se envergonhado por ter sido preciso que lhe tocassem para que se certificasse da sua humanidade. Não fora de seres humanos que lhe falaram nos treinos, mas de animais selvagens, bestas insaciáveis e assassinas e, contudo, ali estava ele, salvo por essas pessoas, tratado por elas, alimentado por elas, tocado por elas, um toque quente e sedoso, acolhedor. E sentiu-se em casa. Nunca falaram. Não seria possível. Sempre que tentaram, as barreiras do desentendimento erguiam-se. Eram tão impercetíveis para eles os sons de Manuel como para si os sons deles. Entenderam-se por gestos. E quando pôde andar, foi conhecer a aldeia e fez-se útil e ajudou. E nesses breves tempos, que correram céleres como a felicidade dos inconscientes, Manuel foi um homem tranquilo e pacificado.

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[O presente texto constitui um excerto do Capítulo 19 de “A Paixão de Madalena” a publicar em breve em livro. Boas leituras!]


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A Paixão de Madalena – Capítulo 18 (Excerto)

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O presente texto constitui um excerto do Capítulo 18.

A PAIXÃO DE MADALENA

LIVRO III – CAIM  E ABEL

18. Correu pela aldeia que, finalmente, nesse dia, a Deolinda do Madeireiro iria parir daquele barrigão que impressionara toda a gente e levara os homens a apostar, a copos de três, na tasca do Quim da Barbuda, quantas seriam as crias. E houve apostas bizarras. Desde quem dissesse que não havia ali nada, aquilo era uma barriga de ares, que bem a ouviam peidar-se alarvemente durante a noite os vizinhos, até aos que afiançavam que a pobre tinha a barriga e as tetas como a marrã do Tóino Manso quando, aqui há uns anos, trouxera a ver o sol deste mundo nada mais nada menos do que quinze crias. E a pobre escancarou-se na cama assistida pela Miquelina Mãozinhas e uma miúda que lhe fazia chegar alguidares de água a ferver. E gemia baixinho como que para não incomodar o pelotão de velhas que se plantara do lado de fora da porta do quarto em rezas, ladainhas e benzeduras diversas a pedir ao Grande Mestre desta orquestra de perdidos que tudo corresse bem. E correu. Nasceram dois. No mesmo dia, à mesma hora, com minutos de diferença, e logo ali se percebeu que outras diferenças havia entre eles. Sendo gémeos, não eram, sequer, parecidos. O primeiro veio rápido e sôfrego de ares, trazia os olhos abertos e espantados e chorou mesmo antes da sacramental palmada, no seu caso, inútil ritual, que o próprio já se havia anunciado ao Mundo num berro cristalino e agudo. E o segundo encolheu-se e deixou-se ficar no aconchego do que restava da placenta, assim como quem diz, Vai lá ver se isso é bom que eu logo te direi se saio daqui ou não. Ilusão sua, porquanto a ordem natural das coisas e a vontade primeira do Maestro é que nasçam as crias, vivas ou mortas, e venham a este mundo cumprir sua função. O tipo não chorou. Vinha roxo de medo, os olhos fechados e os lábios cerrados e só à terceira palmada, bem esticada de força e benzida por alguma impaciência da Miquelina Mãozinhas, é que sua excelência grunhiu que nem um porco ao dar-se ao gume da faca. António Paixão, o pai, mais conhecido por Tóino Madeireiro, desinteressou-se do assunto, bateu com a palma da mão no balcão do Quim da Barbuda, pediu uma amarelinha e quando instado a esclarecer como estavam a correr as coisas, disse que não sabia, tinha ido tratar do gado, servira para os fazer, haveria de criá-los, que o poupassem à parição que era isso função da sua Deolinda. E quando chegou a casa, ao final da tarde, e olhou os cachopos na cama, um de cada lado da mãe, estranhou:
– São estes?
– Quais haveriam de ser, homem? Nasceu mais alguém nesta casa hoje?
– E são os dois meus?
– Não sejas parvo!
– Sei lá, uma vez, a Nina, que é a cadela do Amílcar Batateiro, pariu duas crias do Trovão e outras duas do Maldoso duma barriga só e percebia-se bem de quem eram elas pela pinta da bicheza.

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[O presente texto constitui um excerto do Capítulo 18 de “A Paixão de Madalena” a publicar em breve em livro. Boas leituras!]


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A Paixão de Madalena – Capítulo 17

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[Aqui se apresenta o 17º de 35 capítulos do romance que publicaremos em breve em livro. A partir deste momento, publicaremos excertos dos próximos capítulos, um pouco de todos eles, mas nunca completos e, uma vez concluído o processo e negociados os termos da publicação, teremos muito gosto em convidá-los para a apresentação pública de “A Paixão de Madalena”.]

A PAIXÃO DE MADALENA

LIVRO III – CAIM E ABEL

17. Sempre assim fora. Vinham de longe os homens que visitavam Maria de Magdala, Madalena chamada por de Magdala ser. Eram viajantes, comerciantes abastados, criadores de gado, gente de trabalho e posses que aparecia em data marcada e só entrava estando na porta sinal que o permitisse. Ela acolhia-os, limpava-lhes o pó do corpo untando-os com óleo e raspando-lhes a pele depois com uma tabuinha polida, e mandava que lhes lavassem as roupas e lavava-lhes os pés como viria a fazer ao pregador errante a troco de nada ou, noutro olhar, como parca e insuficiente paga pela sua vida e pela lição do Amor. E também os alimentava e lhes dava de beber e terminavam o festim com as carícias que sabia preferidas de cada um deles. À sua medida, com seu modo e seu jeito, Maria de Magdala prosperava e só não crescia mais rápida e fulgurantemente porque apreciava mais a tranquilidade do que a posse. Limitou o número de visitantes, limitou os dias em que podia ser visitada e deixou-se ficar no conforto da vida literalmente conquistado com o suor do seu corpo.

É cruel o viajar das notícias. Maria de Magdala recebia alguns pobre e necessitados a quem oferecia uma refeição, uma peça de roupa, um pão para o caminho. Não consta que tivesse alguém vindo agradecer-lhe em nome daqueles que ajudou. Já quanto aos que vinham pelo prazer da carne, depressa as distâncias se encurtaram, depressa viajou a notícia de que havia em Magdala uma Maria que acolhia homens e os limpava e os massajava e se acoitava com eles satisfazendo-lhes todos os desejos, fossem solteiros ou casados, ricos ou remediados. E as mulheres ofendidas enviaram, pagando, quem lhe apedrejasse a porta e lhe escreve a carvão na parede caiada da casa, PUTA, VAI-TE EMBORA! Maria de Magdala, de Madalena chamada, saía pouco. Ainda assim, sempre chegava o dia em que se passeava pelas colinas circundantes, em que ia comprar sedas, em que se deslocava ao mercado a comprar mercearias. Numa dessas saídas, perseguiram-na. Pessoas de Magdala e outras que vieram de terras circundantes foram no seu encalço, atalharam-lhe o caminho, forçaram-na a fugir por esta e aquela rua até chegar a um largo e nele se viu cercada de população e encostou-se a uma parede, único lado de que ficaria protegida. E logo um semi-círculo se formou à sua volta, soaram impropérios e acusações e, céleres, como se quisessem expulsar os seus próprios pecados e demónios, surgiram sentenças e uma emergiu mais contundente e se fez um coro de gente gritando, Apredejem-na! Apedrejem-na! Matem à pedrada a bruxa que enfeitiça os nossos homens! As primeiras pedras voaram, algumas caíram bem perto de si, uma ou outra acertou-lhe no corpo e magoou-lhe a alma mais do que tudo. E uma voz, mais alta do que a multidão, mais grave do que o ruído da turba, silenciou as gentes:
– Parai! Aquele que nunca pecou que atire a primeira pedra!

As pedras que estavam nas mãos nelas ficaram, as mãos erguidas baixaram-se, os olhos voltaram-se para o chão e perderam a chama da violência, as suas mentes começaram a procurar pelos seus próprios pecados e rápido encontraram tantos e tão diversos que mais nenhuma pedra foi arremessada. E Cristo passou por entre eles, segurou Maria de Magdala pela mão e acompanhou-a a casa onde se confortaram e trataram um do outro como já aqui foi relatado.

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A Paixão de Madalena – Capítulo 16

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[Aqui se apresenta o 16º de 35 capítulos do romance que publicaremos em breve em livro. Neste blogue publicaremos ainda mais um capítulo e alguns excertos dos seguintes como forma de oferecer aos nossos leitores uma avaliação do mesmo. Depois… convidá-los-emos para a sua apresentação pública]

A Paixão de Madalena

Livro II – O Cordeiro de Deus

Foi já em dois mil e seis que regressou a Genebra. E a Pablo. E foi um reencontro feliz e harmonioso. Poucas perguntas. Cada um deles contou o que quis contar. Cada um ouvou o outro e percebeu-lhe os entusiasmos e pressentiu por onde não ir nas perguntas a fazer. Criaram rotinas. E criaram, também, uma forma de fugir-lhes. Sem sobressaltos. Em vertigem de sexo. A de Pablo. Em espiral de paixão. A de Madalena. E assim ficariam até que o ano de dois mil e dez trouxesse as reticências. Não falemos disso agora que ainda não é tempo.

Madalena reintegrou-se bem no trabalho. Foi saudada, foram feitas inúmeras perguntas sobre aqueles nove meses de aventura, de risco, de dádciva. O tempo de uma gestação. E foi-lhe dito que fora sentida a falta da sua eficiência. E foi revisto o contrato e subiu de posto no volume de trabalho, nas responsabilidades e na retribuição. Sentia-se uma mulher verdadeiramente livre. Bem sucedida. Sucesso assente em lágrimas e sorrisos, sacrifícios e conquistas. Sucesso de mulher desamparada a chefe de equipa em ambiente reputado.

Não tem uma família de ascendentes. Tem a avó Bá. E talvez Albertina e Madalena tenham sido uma família. Tenham dado uma à outra tudo o que uma família dá aos seus. O afeto. A atenção. O cuidado. A orientação. E a libertação. A sua família de ascendentes está adormecida. Há de reclamar por Madalena chegada a altura de precisar da sua ajuda, mas primeiro abandonou-a e ela não mendigou nada. Nem os afetos, nem a proteção e muito menos a ajuda. Construiu a sua família. Esta em que agora se recolhe e se acolhe. Relembra Maria da Luz. Relembra-a com saudade. Em breve perceberemos donde vem essa saudade e esse amor profundo. Relembra as suas brincadeiras juntas e sente-se pacificada nessa memória. E relembra Kyle. O seu irlandês teimoso. O homem que a ensinou a ser mulher. O seu primeiro libertador.

Tem agora o que sempre procurou. A família, os afetos, o filho e a filha, a estabilidade, a harmonia. Se pudesse, não mudaria nada. Mas desconfia. Já se habituou a ser surpreendida. E o certo é que a vida há de vir testá-la de novo. Há de revoltar-se de novo contra a sua existência, contra a sua vontade e a sua determinação. E só essa determinação lhe valerá. Isso e a sua infinita capacidade de amar. É sempre na sua força interior e no seu amor que se refugia e é com eles que emerge de todas as dificuldades.

Não se revelou até agora, porque têm os autores suas prerrogativas, a origem desta inusitada Madalena. Bem olhadas e reolhadas as páginas que ficaram para trás, nem mesmo o apelido de Madalena alguma vez foi revelado. Tudo começou numa aldeia pequenina e pacata do centro de Portugal.

Era uma vez dois irmãos gémeos…

——————————- Fim do Livro II ——————————-

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A Paixão de Madalena – Capítulo 15

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[Aqui se apresenta o 15º de 35 capítulos do romance que publicaremos em breve em livro. Neste blogue publicaremos ainda mais dois capítulos como forma de oferecer aos nossos leitores uma avaliação do mesmo. Depois… convidá-los-emos para a sua apresentação pública]

A Paixão de Madalena

Livro II – O Cordeiro de Deus

15. Quanto valem cinco anos? Quanta vida cabe nesse tempo? Quantas mudanças? Há cinco anos, Madalena reclamou para si a custódia de Mariana e lhe fez uma festinha pelo seu décimo aniversário. Há cinco anos, Madalena reencontrou Pablo Sentido e com ele iniciou um caminho de estabilidade, de progresso e sucesso. Há cinco anos, Jacob tinha cinco. E agora, que corre o ano da Graça do Senhor de dois mil e cinco, Madalena sente-se feliz por ter sido presenteada com o dom da contemplação. E por isso ficará para sempre grata a Pablo. Madalena vive com desafogo e conforto e tem podido contemplar o crescimento dos seus filhos. Acompanha Mariana na escola, esteve com ela na primeira menstruação, Não minha querida, não tens um cancro e não vais morrer, escolheu os materiais escolares com ela ano após ano, foram às compras, deram passeios só para meninas e ficaram cúmplices. Para sempre. Aprendeu a viver colm Jacob. Com a ajuda de Pablo, tentou perceber exatamente onde se localizava a doença como se, ao identificar a sua localização, pudsesse combatê-la melhor, pudesse olha o mal nos olhos e fazer-lhe frente. Rapidamente percebeu que não poderia ser esse o seu papel. O seu filho tinha nascido com uma deficiência, mas ele era a herança de Kyle,m era o centro do seu universo. Na sua forma de ver as coisas, Madalena não queria que Jacob se adaptasse ao Mundo, pelo contrário, faria todos os possíveis para que o Mundo se daptasse a ele. Controu-lhe a medicação até interiorizar o processo, até o próprio Jacob interiorizar os rituais. Mandou-o sempre à escola, só para estar com outras crianças, para ter amigos. Percebeu que aprender, no caso do seu menino, seria uma processo com ritmos, conquistas e sucessos diferentes da maioria das crianças. Estudou-lhe os gostos, os ambientes que o tornavam mais calmo, as pessoas que o faziam sentir-se mais tranquilo. Jacob sentia-se bem no seu pequeno universo. Dispensava com facilidade a escola. Mariana, Madalena, a avó Bá e Pablo já eram muita gente, mas eram gente com que aprendera a contar. Pablo cumpriu a promessa que fizera a si mesmo, foi um apoio incondicional e determinante para Jacob. O miúdo aprendeu a confiar nele e foi com ele que teve algumas das conversas mais complexas que uma criança com aquele problema consegue ter:

– Pablo…

– Sim, jacob, diz-me…

– Há pessoas boas, não há?

– Claro, Jacob.

– E há pessoas más, não há?

– Sim, Jacob, mas as pessoas más são menos.

– Tens a certeza?

– Sim, tenho.

– Então, porque é que aparecem tantas pessoas más na televisão?

– Ora, porque as pessoas más não têm muito que fazer e gostam de aparecer na televisão.

– E as boas?

– Estão a fazer coisas boas enquanto as pessoas más aparecem na televisão.

– Já percebi, Pablo.

– Claro que percebeste, Jacob.

Havia, contudo, um universo que Jacob adorava para além do conforto da sua casa e dos afetos que habitavam nela: o jardim zoológico. O miúdo adorava animais e entusiasmava-se a percorrer a via sacra das aves, dos répteis, dos mamíferos, o aquário. Tudo o que fosse animal parecia exercer sobre ele um fascínio particular, iluminava-se-lhe o rosto e o peito enchia-se de felicidade. Madalena visitava o zoo com frequência, chegara mesmo a ter rotinas e ciclicamente passava por lá um sábado com o filho, levava um lanche e depois pedia-lhe que fizesse desenhos, mas o que Jacob adorava fazer e foi considerado pelos especialistas como um significativo progresso, era imitar os animais. Os ruidos e os movimentos deles. Os livros e os filmes sobre a vida animal começaram a cair-lhe no colo com grande frequência. Qualquer pretexto servia, um aniversário, o Natal, um anúncio na televisão… em pouco tempo tinha uma assinalável biblioteca e uma considerável coleção de filmes, tudo sobre a bicharada. Madalena preocupo-se em proporcionar-lhe a estabilidade afetuosa que lhe haviam dito ser benéfica, dedicava-lhe muito tempo, tempo de atenções redobradas, tempo de qualidade. E a criança cresceu conversando mais do que é costume nestes casos, interagindo mais do que é costume nestes casos, e tudo isso o roubou aos grandes silêncios, aos dias consecutivos sem sair do seu casulo de pensar. Não se entusiasme, caro leitor, não houve, não haverá, nunca, cura para o mal de Jacob, mas o ambiente que Madalena construiu à sua volta fez dele um menino curioso e dinâmico, desperto para a vida. E na vida, por improvável que pareça, Jacob encontrou o seu lugar, encontrou acolhimento. Em tempo oportuno contaremos como veio tal a suceder.

Precisamente em dois mil e cinco, Madalena seria confrontada com um desafio. Nada a que estive ou ficasse obrigada, mas algo a que não resistiria por duas razões. O compromisso com dar o melhor a Jacob, e certo saudosismo adormecido no seu peito. Certa manhã de domingo, depois de folhear calma e pacientemente um livro sobre animais, de ter visto o mesmo filme uma vez mais, Jacob perguntou:

– Mamã, África é longe?

– É sim, bebé.

– Muito longe?

– Longíssimo!

– Nós podemos ir a África?

– Acho que não, bebé, é mesmo muito longe. Tu querias ir a África?

– Queria. Os animais estão quase todos lá. Podemos ir a África, mamã?

Acho que não, bebé, é mesmo muito longe.

– Mamã…

– Sim, bebé, diz-me…

– Podemos ir a África de prenda de anos?

Dizer-lhe que não foi fácil. O difícil foi viver com a consciência de que aquela criança raramente lhe pedira algo, era um menino satisfeito por natureza, tranquilo de caráter, sem solicitações, nem problemas causados. Acordara-lhe um gosto, despertara-lhe uma razão para entusiasmar-se com a vida, havia conseguido isso, que sentido faria, agora, recusar-lhe o alimento para o espírito? Sim, era isso que Jacob acabara de pedir-lhe, alimento para o espírito.

Estava há quatro anos na empresa. Não tinha faltado um único dia. Apresentou a ideia de se ausentar por nove meses em missão humanitária com a Cruz Vermelha que aceitara a sua candidatura e o primeiro critério fora tratar-se de alguém que já tinha estado em missão antes. Iria para os arredores de Joanesburgo, no High Veld, para uma missão cuja tarefa principal consistia em prestar cuidados a vítimas do HIV, sobretudo crianças que já nasceram infetadas. Escreveu longos e-mails a Mark e Marcelle contando tudo acerca do seu projeto. Ambos lhe deramimenso apoio. Pablo Sentido prontificou-se a ficar com Mariana e acompanhá-la nos estudos. Ainda ponderaram ir os quatro, mas Pablo não podia. Eram muitos os compromissos de trabalho e, além disso, Madalena percebeu que após cinco anos de vida conjugal, Pablo ia apreciar aquele tempo só para ele. Assim que a empresa lhe deu luz verde, confirmou tudo com a Cruz Vermelha e poucos meses depois estava a embarcar.

“Os outros chamam-lhe África, nós chamamos-lhe a nossa casa”. Era assim que estava escrito no aeroporto internacional de Joanesburgo. E Madalena sentia-se em casa. Nunca percebera porquê. Já da primeira vez, com Kyle, se sentira acolhida não obstante as dificuladades da viagem. Agora via-se envolvida num projeto menos ambicioso. Seria menos tempo e teria um objetivo único e muito preciso. E, contudo, sentiu-se de novo em casa. Havia qualquer coisa na atitude dos africanos, qualquer coisa no clima, qualquer coisa na organização ou na falta dela, que a atraía e lhe fazia medo ao mesmo tempo. Mais atração. Estava há pouco tempo no acampamento, ainda a aprender os ritmos e em que poderia ser útil, haviam passado meros cinco sóis e outras tantas luas, quando a chamaram da enfermaria improvisada à entrada do acampamento. Alguém queria falar com ela. Eram Mark e Marcelle. Foi um longo abraço a três, foram beijos incontáveis, foram lágrimas escorregadias, foi ouvirem-se a voz. Tinham passado três anos desde que estiveram juntos e parecia que fora ontem. Trocavam e-mails e com eles fotos e vídeos e acompanhavam-se de perto, mas nada disso substituía um abraço verdadeiro com o calor do corpo do outro estreitado no nosso. Não puderam todo o tempo da missão, mas estiveram três meses juntos. Quase juntos. Mark comprou uma máquina fotográfica e um jogo de lentes para Jacob e foi com ele explorar o interior e ver os animais. Saíam num dia, voltavam no dia seguinte, dois dias depois, ou mesmo uma semana mais tarde. Por vezes Marcelle acompanhava-os, outras vezes ficava com Madalena. Tiveram conversas infinitas e por esses dias voltaram a ser o inseparável grupo dos três emes. Aos fins-de-semana estava juntos. Sobretudo ao domingo. Um dia Mark desafiou-as:

– Este sábado vai haver um bush fire na Suazi. Devíamos ir.

– Devíamos? Perguntou Marcelle.

– Claro. É o melhor de África. A noite imensa, uma fogueira a arder, carne assada, música, conversa.

– Eu concordo com o Mark – disse Madalena – não há nada como uma fogueira na noite africana.

E foram. Dançaram, beberam, conversaram até quase de manhã. Enrolaram-se em mantas leves e ficaram a riscar o chão com um pau, a traçar loucas teorias de vida. Jacob dormiu enrolado em mantas e sentiu-se confortado pelo ruido à sua volta. Era já quase madrugada quando regressaram à cabana que haviam alugado num lodge ali perto. Madalena foi aconchegar Jacob e juntou-se aos outros dois na sala onde a luz que havia emanava de dois candeeiros a petróleo.

– E se jogássemos o nosso indiscreto jogo das apostas?

– A menina gostou!

– Claro. E agora estou mais preparada.

– Ah, quer dizer que andou a pensar em indiscrições?

– Claro que sim! Não é o que toda a gente faz?

– Não temos cerejas com chocolate.

– Mas temos chocolate, ando sempre com chocolate, parte-se aos bocadinhos e vai ter de servir.

Marcelle começou. E o jogo não viria a ter mais do que uma pergunta. Escolheu Madalena como alvo:

– Aposto em como já fantasiaste fazer amor comigo e com o Mark…

Madalena colocou um pedacinho de chocolate entre os lábios e estendeu o pescoço para a amiga que o veio buscar demoradamente, com saudade e volúpia e, enquanto o fazia, Madalena estendeu uma mão para Mark, encontrou a mão dele e encaminhou-a para o seu sexo. Ele percebeu e acariciou-a e depois quis compensar Marcelle e ela deixou e quando a aurora despontou e a luz natural começou a enfraquecer a dos candeeiros, três corpos cúmplices tombaram no chão da sala enrolados em mantas e sacos-cama, semi-nus e semi-cobertos. Saciados para a vida.

Não espere o leitor que esta comunhãi se repita. O improvável e inseparável grupo dos três emes vai separar-se dentro de dias e os três nunca mais estarão juntos. A vida não quererá. O Mundo não está preparado para pessoas como Madalena, Marcelle e Mark. E muito menos está preparado para que se encontrem e fiquem juntos. Serão inseparáveis nos seus corações. Mas só isso. A seu tempo saberemos o que reservou o Destino para cada um deles, mas sabemos já que não lhes reservou mais nenhum momento em conjunto. Onde há demasiado amor, onde há demasiada ausência de preconceito, costuma vingar o próprio preconceito. Estranha condição… disse o poeta e essas palavraslhas roubamos agora precisamente porque o amor que unia estes três sufocou em si mesmo, impediu-se antes de se ter tentado, nunca foi mais do que um desejo reprimido. Impedido. Impossibilitado para que cada um pudesse, por si, ter uma vida. E, contudo, de que vale a vida sem esse mesmo amor? Por mais que nos amemos e nos lavemos os pés e nos purifiquemos, há sempre um pó que se agarra à pele, se cola à carne, às roupas e nos mancha a existência.

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