Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Crónicas de África – Miúdos de Rua

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Crónicas de África – Miúdos de Rua

Maputo, 1 de março de 2015

Em Maputo, cada miúdo de rua é uma surpresa. Surpresas de sorrir, de chorar, de sofrer, de entender, de não perceber nada. Conto hoje a história de três miúdos de rua que se cruzaram comigo.

JQ

Quando conheci o J, ele ainda era um adolescente. Tinha dezassete anos e vendia capulanas e panos com animais selvagens pintados à mão para se pendurarem numa parede ou colocarem numa mesa, numa cama. Corria ao lado dos carros quando o trânsito estava lento e dizia às pessoas que elas precisavam muito do que ele tinha para vender, até porque ele só tinha coisas boas para vender. Gostava de regatear e quando o preço chegava ao limite do que ele estava autorizado a baixar, ligava para o boss dele e ficávamos a negociar os três, sendo ele o intermediário e tradutor das conversas. Comprei-lhe diversos panos por aquela altura, em dias diferentes, e por isso nos marcámos. Não lhe esqueci a face, nem ele a minha. Estranhou, um dia, quando lhe perguntei o nome e quis saber o meu de volta. Só vim a saber que ele não o esquecera quase três anos depois, quando nos reencontrámos. Eu, ainda professor, mas muito mais africano. Ele já deixara de passar os dias deitado na areia ou a correr ao lado dos carros. Agora, era segurança. Eu entrava para um restaurante, quando senti uma mão tocar-me no ombro, virei-me e lá estava o sorriso inconfundível do J.

– Patrão João, lembra-se de mim?
– Claro! Tu és o J.
– Lembra!

Abriu mais o sorriso e deu-me um aperto de mão à moçambicano. Tinha sido pai há somente quinze dias, mas a criança falecera há três noites atrás. Mas sorriu ao ver-me porque rever uma pessoa que se lembra do nosso nome é uma coisa boa mesmo quando a alma anda triste.

– A criança caiu bem. Nasceu lá no Hospital Central e nos mandaram para casa. Estava a comer bem. Uma noite, a minha esposa levantou-se para ir na casa de banho e ele já não se mexia. Levámos para o hospital. Já não voltou.

As ruas de Maputo fazem homens de muitas maneiras. Há os que casam e vão ser pais e há os que ficam órfãos dos seus filhos e nos sorriem como se o sol tivesse acabado de nascer.

FR

Em Maputo, um trabalho não precisa estar reconhecido como profissão para ser exercido e ter uma remuneração. Quando alguém se consegue fazer útil por algum meio, tem um trabalho e faz-se pagar por isso. Quando conheci o F, ele trabalhava no mercado. Acartava os sacos de compras das pessoas. Tinha onze anos. Hoje, tem catorze e ainda faz o mesmo trabalho. Ao fim de semana. O Mercado Central de Maputo está repleto destes miúdos que esperam pelas pessoas e se oferecem para andar com os sacos das compras. Seguem os clientes do mercado aliviando-os do peso e quando as compras terminam, acompanham as pessoas ao carro e esperam por uma moeda. A maioria destes miúdos é atrevida, persistente, e a sua vida resume-se a pouco mais do que ao dia a dia no mercado. O F afeiçoou-se à senhora e ao cãozinho e pergunta sempre por eles, mesmo sabendo que é comigo, e só comigo, que trabalha. E informou desde cedo que ia à escola. Interessei-me por ele, entre outras coisas, por este pormenor de ir à escola.

– Então estás aqui todos os dias?
– Não. Só venho ao fim de semana. Durante a semana, ando na escola.
– Estás em que classe?
– Quase a acabar a sétima.

Com o tempo e as conversas enquanto ele me ajudava com os sacos, o F tornou-se em algo mais do que o miúdo que me acarta os sacos. De resto, eu gosto de acartar os meus sacos. Partilho-os com ele. Ele trabalha ao fim de semana para ajudar a pagar os estudos. Começou por trazer-me uma foto com a farda da escola, depois o documento com as notas da oitava classe, e este ano trouxe-me toda a documentação da matrícula na nona. Guardou na senhora que vende ananás para me mostrar. Quando chegou ao carro, encontrou um saco com material escolar que eu lhe tinha levado. O F é um trabalhador estudante. Aos catorze anos. Respeito isso. Há muito que não lhe dou moedas. Dou-lhe notas e material escolar. E ele acarta-me os sacos, pergunta pela senhora e pelo cão e vai-me trazendo as folhas com as notas dos exames.

Nas ruas de Maputo, também há marginais da marginalidade. E esperança. E resiliência.

JL

Não conheço o J de lado nenhum. Não sei quem seja. Só o vi uma vez. O suficiente para lhe perguntar o nome e trazê-lo para esta crónica. Impressionou-me e pronto.

Tinha acabado de sair do supermercado, levei o carrinho das compras, que estava praticamente vazio, meia dúzia de coisas, e coloquei entre elas a minha caneta e a minha agenda, presas uma à outra. Abri o porta-bagagens, coloquei as compras nele e fui para o lugar do condutor. Já estava a sentar-me quando percebi que me tinha esquecido da agenda no carrinho das compras. Voltei atrás, mas não cheguei a dar dois passos. Ele vinha na minha direção com a agenda e a caneta na mão. O miúdo estava aterrado, o seu rosto espelhava medo. Vi que ele quis, a todo o custo, evitar um equívoco, uma acusação. Segurou a mão direita com a esquerda, estendeu-me a agenda e baixou a cabeça fitando o chão. Não foi capaz de me encarar.

– Obrigado.
– De nada.
– Como te chamas?
– J.
– Tens quantos anos?
– Onze.
– Fizeste uma boa ação, J. Obrigado.

A última frase era verdade, mas a verdade é que a disse mais para o tranquilizar do que outra coisa qualquer.

– Andas na escola?
– Ando.

A pergunta e a resposta era inúteis porque ele estava fardado. Num espaço de poucos segundos, enquanto ele se afastava, pensei que não devia dar-lhe nada porque o meu pai me ensinou que das boas ações não devemos esperar recompensa. E, no mesmo instante, pensei que estava em Maputo, que as coordenadas eram diferentes. Não tinha ali nenhum material escolar, peguei numa nota e chamei-o:

– J!

Ele virou-se, dirigiu-se para mim, quando levantei a nota, ele benzeu-se, estendeu a mão direita que segurou com a esquerda e colocou os olhos no chão.

– Fizeste uma boa ação. Compra uma coisa para ti.
– Obrigado.

Tive a sensação de que ele nem vira a nota e segundos depois a sensação confirmou-se. O J atravessou as quatro faixas da estrada e já estava do outro lado da rua quando levou a mão ao bolso e tirou a nota. Viu qual era. Voltou a guardá-la, benzeu-se de novo e fez-se ao caminho.

Nas ruas de Maputo, também crescem os valores e a fé. E o medo!

jpv

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Nota 1. O aperto de mão moçambicano consiste num movimento em três momentos. Mãos na horizontal, na vertical e de volta à horizontal. É uma senha que faz parte dos tempos da libertação. Os três movimentos correspondem a três valores. Liberdade. Igualdade. Fraternidade. Tenho reparado que a maioria dos moçambicanos já não sabe o seu significado, mas este aperto de mão é muito comum.

Nota 2. Segurar a mão direita com a esquerda é um gesto de respeito e humildade. A mão esquerda segura o pulso da mão direita mostrando à outra pessoa que aquilo que vai ser dado ou recebido está seguro.


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Crónicas de África – Do Amor e Das Feridas

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Crónicas de África – Do Amor e Das Feridas

Do Amor
Em Maputo, o Dia dos Namorados é mais vulgarmente conhecido como o Dia do Amor. E é um acontecimento. As pessoas não lhe ficam indiferentes. Os restaurantes preparam menus temáticos, os supermercados decoram camas com roupas temáticas e mesinhas com champanhe a condizer, os namorados compram e vestem t-shirts encarnadas por ser a cor do amor e há uma corrida à melancia, pelas mesmas razões. Todo este folclore explana-se numa sociedade cujas coordenadas culturais são muito diferentes das nossas. Era um homem bem posto. Um senhor. Aproximou-se da bancada das flores. Seria, sem dúvida, uma flor de vaso. Uma gloriosa orquídea. Ele olhava-as, pegava nos vasos, rodava-os para, pensei eu, escolher a mais bonita, a que estivesse em melhor estado. Estava a ser exigente. Passou-me pela cabeça que a visada seria uma sortuda. Se, na simples escolha de uma flor, ele colocava tanto empenho, o que não seria no dia a dia. E foi aí que ele me surpreendeu. Depois de rodar e olhar e voltar a olhar as flores, escolheu e levou… três! Das duas uma, ou a visada é mesmo uma grande sortuda, ou as visadas são um pouco sortudas cada uma. Partindo do princípio de que o Dia do Amor implica uma refeição a dois, fiquei a pensar que este homem iria ter um dia atarefado. Pequeno-almoço, almoço e jantar, no mínimo!

 Das Feridas
Faz amanhã quatro semanas, dei uma topada com um dedo do pé, o do meio, num bloco de cimento. Como estava de chinelos, esfolei a pele do dedo. Nada de mais. Fiz o que faria na Europa. Limpei e pronto. Para meu espanto, na primeira semana, a ferida cresceu e tomou conta da cabeça do dedo. As dores eram tantas que não conseguia dormir. Comecei a tomar anti-inflamatório. A ferida cresceu para baixo da unha que começou a ficar baça, como quando as unhas vão cair. Comecei a colocar uma pomada cicatrizante. Volvidas quatro semanas, a ferida começa, finalmente, a querer fechar e a estar mais seca. A unha, parece-me, morreu. Aí à terceira semana, fui ao mercado e encontrei, como sempre, o meu amigo Francisco. Queixei-me da ferida, que até coxeava, que não sarava. E ele respondeu com toda a calma:

– Com esse calor e essa humidade não vai sarar. Tens de esperar.

E pronto, cá estou à espera. Já tinha ouvido histórias das consequências da monção. Nunca as tinha vivido.


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Crónicas de África – Questões Culturais

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Crónicas de África – Questões Culturais

Maputo, 1 de fevereiro de 2015

À medida que o tempo passa, as interações em Moçambique, com os diversos e extraordinários agentes das muitas culturas que aqui coabitam vão-se sedimentando e a novidade desvanece-se. Talvez por isso, menos crónicas vêm ver a luz dos vossos olhos.

Ainda assim, reúnem-se diversos aspetos e pormenores e, de quando vez, amanha-se uma Crónica de África.

Ébola.
Estivemos em Portugal pelo Natal. Por um voo Maputo – Lisboa – Maputo, a TAP, de que tanto se fala agora, pediu-me em setembro, quatro mil euros por pessoa. No mesmo dia, comprei dois bilhetes de avião, na South African Airways, Joanesburgo – Lisboa – Joanesburgo, por oitocentos euros cada. Eu quero que a TAP seja portuguesa. Mas a TAP não parece querer que eu utilize os seus serviços. Quando regressámos, em Lisboa estavam zero graus, em Joanesburgo trinta e dois. Com a preocupação de trazer as malas de mão e ver qual o tapete onde estariam as outras, esqueci-me de despir o casaco e comecei a suar. Estava à espera que me carimbassem o passaporte, quando reparei que uma câmara olhava para mim com ar suspeito. Uma luz vermelha acendeu. O funcionário do aeroporto veio ter comigo e perguntou, O senhor sente-se bem? Sinto-me muito bem. Mas o senhor está doente. Não estou não. Está, está, o senhor está todo suado. Sim, tenho calor. O senhor é suspeito de estar infetado com o ébola, a minha colega vai acompanhá-lo à enfermaria. Não me deram a escolher. Ou vais, ou vais. Uma vez lá chegado, apontaram-me uma pistola semelhante àquelas que as meninas dos supermercados usam para ver o preço dos produtos. Fizeram pontaria aos olhos. E a senhora redonda e simpática exclamou: Vejam só, ele só tem trinta e cinco! O senhor sente-se bem? Muito bem, estou suado é só isso, o calor pode fazer-nos suar. Quem diria, não tem febre! Respondeu ela, e simpaticamente despediu-me dali e a mesma alma que me havia levado à enfermaria, levou-me até às passadeiras onde as minhas malas já estavam tontas de tanta montanha russa!

Donde vens?
Raramente falo do meu ambiente de trabalho. É uma questão de separar águas. Por vezes, deixo um apontamento ou outro que possa ter algum interesse mas não revele nada do funcionamento da instituição. Assim continuará a ser. Este apontamento é sobre a multiculturalidade, as vivências tão diferentes que se experienciam por aqui, a enorme diferença nos referentes do quotidiano. Deslocava-me pelos corredores para ir a uma sala de aula quando me cruzei com ele. Não tinha mais de oito anitos, era do terceiro ano. Ora, estranhei vê-lo por ali sozinho e por isso fiz as perguntas que fiz, sabe-se lá o que pode andar a fazer um cachopo divagante pelos corredores de uma escola!
– Olá, onde vais?
– À casa de banho, setôr.
– E donde vens?
– De Portugal!
Toma e embrulha e para a próxima não faças perguntas desnecessárias.

Outros Parâmetros
Para nós, europeus, mestres da consciência cívica, reciclar consiste em dar nova vida a materiais que entretanto deixaram de ter préstimo. O conceito não tem nada de errado. Pelo contrário. É fundamental. Não posso deixar de notar, contudo, que, para os sul-africanos, o conceito é um tanto diferente porque não se aplica depois das coisas deixarem de ter préstimo, mas enquanto ainda o têm. Eles são mestres em prolongar a vida das coisas, sempre que algo tem ou possa ter arranjo, eles consertam não substituem. Isto aplica-se a eletrodomésticos, a automóveis e a todo e qualquer equipamento. Ainda me lembro, quando fiz a primeira manutenção ao meu carro, tinha os discos dos travões todos ferrugentos. Em Portugal colocavam-me uns novos, e pronto. Na RSA deram-me a escolher entre colocar uns novos ou reabilitar aqueles sendo que a reabilitação me custava um décimo do preço. Já lá vão quase três anos e os discos lá andam a travar. Mas não é só neste aspeto que os parâmetros são diferentes. Quando fui para Portugal, a caminho de Joanesburgo parei numa oficina para fazer uma manutenção. Correu tudo bem exceto o facto do empregado se ter esquecido de apertar as porcas das rodas. Ao cabo de dez quilómetros tinha danificado irremediavelmente o braço da direção do lado esquerdo. Telefonei ao dono da oficina a contar o sucedido. Ele disse-me para ir devagarinho até Joburg e passar pela oficina quando regressasse de Portugal. Assim fiz. No regresso, ele reparou o carro, colocou uma peça nova e, no fim, pediu-me desculpa pelo sucedido e assumiu toda a despesa da intervenção para ele. Sem discussões. Sem pressões… Só assim… pelos valores…

Assalto
Enquanto estive em Portugal, assaltaram-me a casa. A minha empregada identificou o ladrão. Fora o próprio guarda da casa. Contingências! O meu vizinho chamou a Polícia que fotografou o local. A Polícia solicitou que, quando eu chegasse, lá fosse levar um relatório completo do que faltava e apresentar queixa. Foi o que fiz. E quando lá cheguei, o Oficial de Dia chamou o detetive e perguntou:
– Sabes de algum assalto na rua tal?
– Sei, foi no dia dia tal, às tantas horas.
E ainda não tinha acabado de falar deitou a mão à camisa onde trazia uns óculos pendurados, estendeu-mos e disse:
– Tome, isto deve ser seu.
E era. Eram uns óculos graduados da minha mulher que o ladrão deixou cair na fuga. O detetive trouxe-os ao peito durante três semanas à espera que eu os fosse reclamar. E quando lhe agradeci, ele respondeu: Assim, pelo menos, já não perde tudo!
O guarda foi substituído por um guarda de uma empresa de segurança e quando cheguei à escola, os alunos quiseram saber porque tinha faltado o setôr que nunca falta. Contei a história sem referir quem tinha sido o assaltante. Quando terminei, três ou quatro disseram, com toda a naturalidade num coro de espanto por eu não ter percebido, à partida, o que iria passar-se: Foi o guarda!

Pré-pago e Contratos
Aqui é tudo pré-pago. O crédito do telefone, a Internet, o serviço de televisão e até a luz. Aqui não se diz luz, diz-se energia. É possível comprar energia numa mercearia, numa loja da EDM ou no multibanco. Escolhe-se o valor, dão-nos um recibo com um código que se insere no contador da luz que converte o valor em watts de consumo. Por um lado, não há aquela preocupação das faturas, por outro lado, cada utente compra à medida do seu bolso e só consome o que paga. Os contratos dos serviços de Internet e televisão são muito mais maleáveis e confortáveis do que em Portugal. Já telefonei para empresas portuguesas a perguntar porque é que não funcionam desta forma e ninguém me sabe responder. Eu explico. Quando se contrata um serviço de TV, por exemplo, se, por alguma razão, se falhar o prazo de pagamento, não há cá cartas de aviso, nem multas, nem comissões de reativação. Pura e simplesmente o fornecimento é cortado e, no dia em que se fizer novo pagamento, o fornecimento é retomado. Simples, não? Mas há mais. O teor do contrato muda automaticamente de acordo com o valor depositado, não é preciso contactar uma menina que remete para outra menina que remete para uma senhora que remete para um técnico que manda outro técnico a casa. Nada disso. Se pagamos mil meticais, temos 44 canais. Se, no mês seguinte, pagamos dois mil meticais temos 88 canais, se pagamos quinhentos, temos 20 canais, e assim sucessivamente. Os pacotes estão pré-definidos e ligados a um valor, o simples pagamento desse valor ativa um determinado pacote. Genial, não?

Ainda falta falar do F. Mas acho que fica para a próxima.
Todos os dias nos cruzamos com diferenças culturais muito acentuadas que, com o tempo, vamos interiorizando no nosso quotidiano e na nossa mente. Deixámos de estranhar, mas, por vezes, paramos para pensar e percebemos que vivemos noutro universo. Completamente diferente. Deliciosamente diferente.

jpv


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Crónicas de África – O Senhor M

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Crónicas de África – O Senhor M

Preserva-se a identidade do senhor M. Mas revela-se o que mais interessa. O espírito.

É difícil não gostar dos moçambicanos. São incrivelmente alegres e felizes, são bem dispostos, não sofrem de stress, não têm rancor e têm uma relação com a vida e com as palavras repleta de genuinidade e ternura.

É pintor. Pinta casas, portas, paredes, vedações e mais ou menos tudo o que possa ser coberto de tinta. Eu precisava de um. Deram-me o contacto dele e logo pelo telefone me pareceu uma personagem interessante como, de facto, se viria a revelar. Combinei encontrar-me com ele cedo, mas não a uma hora violenta. Vai daí, marcámos para as sete horas. Trazia um ajudante com um pequeno saco de plástico que mais parecia a mala da Mary Poppins. É que, mais tarde, viria de lá a sair um panal para proteger o chão, fita adesiva, uma espátula, um pincel e a roupa de trabalho. Pois, pelas sete da manhã, o senhor M não apareceu em traje de trabalho. Veio de fato. Eu senti-me respeitado e tive pena de não estar um pouco mais arranjado. Calça de ganga e camisa de manga curta por fora das calças não faz justiça a um fato.

Enquanto cruzávamos a avenida marginal com o mar a embalar a manhã, rolando suavemente na estrada acabadinha de fazer e quando eu me preparava para elogiar a estrada para desbloquear conversa, ele avançou:
– Essa estrada não é boa ideia.
– Ai não?
– Não. Fizeram em cima o mar. Ele há de vir buscá-la.

Achei a observação curiosa porque a história das estradas de Maputo está repleta de episódios em que o mar as engoliu.

Eu tinha comprado tudo. Rolo de pintar, tabuleiro, trinchas, fita adesiva e até a tinta. Era fácil, bastava comprar tinta branca e pronto. Não consegui deixar de sorrir à forma como ele avaliou a qualidade da tinta que eu comprara. Agitou vigorosamente a lata de 20 litros, abriu-a, mexeu-a, colocou um pouco de tinta na tampa da lata, chegou-a ao nariz, inspirou profundamente e ditou a sentença:
– Eh… gastou o dinheiro, mas essa tinta aqui não há de ter qualidade.
– Então?
– Não cheira a tinta de qualidade. Havemos de aproveitar para os tetos.
Depois deu duas pinceladas com a tinta mal cheirosa na parede, vagueou pela casa e num local onde havia desperdícios da recente passagem do canalizador, ele voltou a sentenciar:
– Eh… depois dizem que os pintores sujam as casas. Tudo vai de como se mergulha o rolo na tinta. Pode vir um homem, começar a pintar e parece que está a chover tinta, mas eu, quando começo a pintar, até podia pintar com o fato vestido!
– Mas não faz isso…
– Eh… não! A minha mulher havia de se zangar.

E eu a pensar que podemos ser diferentes em muitas coisas, mas no que respeita ao que as mulheres pensam da roupa que usamos para as bricolages, estamos de igual!

Lá fomos comprar tinta de qualidade. Ele aconselhou, eu segui o conselho, comprei a tinta que ele escolheu, com direito a desconto por ser ele cliente da casa e ter transferido o privilégio para mim. Enquanto íamos no carro e falávamos um com o outro, ele contou um pouco da sua história. Mas eu retive só uma parte dela porque a minha mente ficou presa numa frase tão deliciosa que até desejava ter sido minha, mas não foi. O poeta foi ele. Eu, hoje, sou só o cronista.

– Uma vez aceitei o trabalho de pintar uma casa lá no Tete. Xiii, nunca mais… Perdi dinheiro nesse trabalho aí. É longe.
– E como é que foi?
– Fui no chapa. Primeiro era até ao Chimoio, depois mais uma terra lááááá, depois outra, xiiii, só chegámos três dias depois. E mais três dias para voltar e eu a perder trabalhos aqui ao pé de casa. Mas isso não foi o pior…
-Então?
– Esses chapeiros são perigosos a guiar, não respeitam a velocidade, adormecem, xiii, lá no Tete houve uma curva onde até morremos um bocadinho.
– Como assim?
– Eh… o chapeiro entrou pelo mato…

E fiquei a pensar na curva onde o senhor M morreu um bocadinho. A naturalidade com que aquilo lhe saiu, a invejável facilidade com que formulou uma frase tão elegante, tão bela e genuína e, contudo, tão complexa…

Depois, chegámos a casa e ele a olhar as paredes com um olho aberto e outro fechado como quem lhe tira as medidas e voltou lá onde tinha dado as pinceladas na parede e essa tinta já estava seca. Ele esticou o dedo mindinho de unha comprida, arranhou e a tinta cortou-se.
– Eu não disse que não tinha qualidade?

E pronto, foi-se vestir e dar a primeira camada, como ele disse, para matar a cor que estava por baixo.

Amanhã vou revê-lo e espero renascer mais um bocadinho.

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