Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Olá Mana!

Saudades! Muitas!

Hoje é 31 de maio. Faz, portanto, 39 anos que reaprendemos a viver! Não morremos. Renascemos…

Amo-te muito, Mana!

Mil beijinhos,

Mano

 

A reler: https://mailsparaaminhairma.wordpress.com/2011/05/31/a-noite-mais-longa/


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Linha Indecisa

Endechas à Saia de Bárbara

Linha Indecisa

Há, na linha indecisa
Da tua saia,
Um fim
E um princípio.
É o tecido que termina
E desmaia,
É a perna que surge
E contra a minha vista
Insurge
Sua presença
E seu tom.
E eu não sei
Se isso é mau
Ou se é bom.
É que não a vejo toda,
Nem toda a quero ver.
Basta-me o suficiente
Para te não esquecer.

E poderia ver mais,
Além desse limite,
E desse precipício.
Mas isso seria inequívoco
E intolerável indício
De pairar no ar
Perigoso convite.
Serei prudente,
Fingirei que não vi,
Antes que a visão do abismo
Me precipite!

Leva lá a saia
E sua sinuosa linha
Antes que me descaia,
De novo,
O olhar para a perninha!

jpv


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A Mana Deste Blogue Faz Anos Hoje

04/11/2013

Olá Mana!

Quando fazes anos, às vezes escrevo-te. Mas depois acontece o problema de já quase tudo ter sido dito. E foi por isso que hoje pensei que não ia escrever. Para não estar sempre a dizer as mesmas coisas. Só que, num segundo pensamento, veio-me à cabeça que, se as mesmas coisas são este amor e esta cumplicidade que nos une, então o melhor mesmo era escrevê-las porque há muita falta disso no Universo.

E ainda bem que decidi escrever-te. É que fazes hoje um estranho ciclo de anos que se completa e fecha. Fazes a idade que o nosso pai tinha quando foi forçado a abandonar África. Esta mesma de que te escrevo agora.


É engraçada, a nossa relação à luz de como os outros nos olham e eu nos vejo. As pessoas, com facilidade, porque me exponho, me acham mais expansivo e te dizem mais retraída quando, a verdade, verdadinha, é que eu aprendi a coragem contigo. Criança destemida e resoluta a desafiar os limites. Sempre fui um miúdo retraído. Até tu nasceres. Foste tu quem veio agitar e impregnar de vida a minha vida.

Não raro, já homem crescido e presumivelmente responsável, me apanho a pensar as minhas decisões à luz do que tu aprovarias ou não. E isso não tem um caráter inspetivo. É, antes, o meu medo de desiludir-te. É isso, Mana, eu sei que te amo sem medida quando a medida do meu amor é eu viver sem te dececionar. Tarefa impossível, mas que tenho de tentar.

Agora, há esta distância. E quando vejo aqui algo interessante, um evento, um fenómeno natural, um comportamento humano, lá estou eu a pensar como seria essa realidade se ta pudesse mostrar.

Olha, e sabes que mais: Parabéns, muitos e muitos parabéns! E… até breve, para que possamos estreitar este abraço que sempre me anda na mente. 

Ah, já agora. Há uma coisa que nunca te disse nestes textos que te venho escrevendo nos teus aniversários ou outras ocasiões celebráveis: é que tu és muito bonita, Mana! Sabes, tenho sempre esta tendência para falar mais do que sinto e menos do que vejo. Mas, hoje, pousei o olhar em várias fotos tuas até escolher essa que aí fica e a única coisa que me vinha à mente era que a minha Mana é mesmo muito bonita. E és. Tens o sol na pele, o brilho no olhar, a malandrice no sorriso e, pudessem todos ouvir-te, concordariam comigo em como tens a esperança na voz.

Beijo,
Mano
———————————-
Para quem tem feicebuques, a Mana deste Blogue mora aqui:


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Crónicas de África – Correio Registado

Crónicas de África – Correio Registado

Maputo, 17 de abril de 2013

Aconteceu hoje. Está fresco na memória e por isso escrevo. Não há, da minha parte, nenhum juízo de valor implícito. Há só uma conclusão: África é, efetivamente, diferente de tudo o resto. Os ambientes são diferentes, os ritmos são diferentes, as pessoas são diferentes e, claro, o quotidiano resulta diferente. Há uns dias, lia numa revista sul africana que não há nada igual a África. É bem verdade.

A minha irmã quis fazer-nos um miminho e enviou-nos uns presentinhos assim como quem tenta encurtar distâncias, atenuar saudades. Ainda por cima são coisas feitas por ela. Eu bem lhe digo que ela podia fazer negócio com as coisas que faz, mas ela limita-se a ir vendendo umas peças a amigos. Se quiserem ver mais, visitem a página dela no Facebook, aqui.

Acontece que, para proteger o conteúdo do correio, resolveu registá-lo! Ora pois bem, isto é África, não é a Europa, onde remetemos tudo e mais alguma coisa em envelopes, caixas e caixinhas e ninguém quer saber de nada à custa da livre circulação de bens e pessoas. Aqui, não só se quer saber, como se quer saber muito bem sabido. Ainda por cima, se está registado, o controlo é mais apertadinho. Assim que cheguei aos Correios, mostrei o papelinho que me mandaram para a escola, e disseram-me logo que encomendas não era ali, era noutro edifício. Chegado ao tal edifício, voltei a mostrar o papelinho e vai de me pedirem para me identificar. Foi o que fiz. Ao cabo de meros três minutinhos, a senhora apareceu com a minha encomenda e olhei para ela todo guloso, mas a coisa não ia ser fácil. Eu estava a ver a encomenda. Deitar-lhe a mão é que ia ser mais complicado:
– Senhor João, chegue aqui. Acenou ela com a caixa na mão. E eu, rapazinho bem mandado, cheguei.
– O Senhor João tem de ir na alfândega.
– E onde é isso?
– É aqui nesta porta. E indicou-me o caminho.
Eu entrei. Estavam ao fundo de uma sala enorme quatro agentes da polícia alfandegária, armados, que, durante todo o processo, só olharam. Ao balcão estava uma agente já com alguma idade. Pegou na caixa e perguntou:
-Posso abrir, senhor João?
Eu ainda hesitei… quer dizer, poder, poder, não podia, aquilo era correio privado, mas depois pensei que se lhe dissesse que não, ela ia abrir na mesma e, mais para o fim do episódio, até descobri o que acontece se dissermos que não podem abrir. Pedem-nos a nós para abrir. Ela abriu. Dentro da caixa vinha um saco de cartão fechado com agrafos.
– Posso abrir o saco, senhor João?
Nem respondi. A senhora já tinha aberto a caixa… ela percebeu e de faca em punho abriu o saco que, lá dentro tinha um envelope grande daqueles almofadados. A esta altura, quer os guardas, quer a senhora, estavam mesmo curiosos e à espera de qualquer coisa extraordinária.
– Posso abrir o envelope, Senhor João?
Sorri. Ela abriu. A desilusão foi geral. Afinal, ele era caixas, sacos e envelopes e só lá vinham uns marcadores de livros, uma carteirinha e uma pulseira. Ela olhou para mim, franziu o sobrolho assim como quem diz, Eu não desisto às primeiras, e atacou:
– Isso aqui é uma carteirinha?
– Pois, parece que sim. Também quer abrir?
– Abra o senhor João.
E eu abri e, para desespero geral, a carteirinha estava vazia. Foi então que, no meio dos presentes, surgiu uma folha de papel A4 dobrada e, visivelmente, com coisas escritas lá dentro. Ela deitou a mão à folha de papel e disse:
– Isso aqui é uma fatura?
– Não. Não é uma fatura, é uma carta da minha irmã, é privada e isso a senhora não pode abrir!
Ela percebeu que o caldo estava a entornar e percebeu também que era desnecessário um conflito porque dali não levava nada a não ser artesanato. E foi aí que resolvi testá-la. Como sei que os moçambicanos são genuinamente alegres e bem dispostos, sempre quis ver se aquela capa da fiscal durona que abre tudo resistia a um gesto simpático. E a coisa foi assim: agarrei na pulseira e disse-lhe:
– A senhora ajuda-me a colocar a pulseira? Dizem que as mulheres dão melhor os laços…
Ela largou-se a rir, agarrou na pulseira e enquanto ma atava ao pulso respondeu:
– Ah, o senhor também já ouviu dizer isso. Olhe que é bem verdade, as mulheres, quando dão o laço, amarram mesmo! – E largou-se a rir com a ambiguidade do que havia dito – Uma mulher quando amarra é para sempre, senhor João!
Ri-me com ela. Ela perguntou se podia deitar fora a caixa, o saco e o envelope e eu disse para me dar o envelope e deitar o resto fora. Ela chamou um dos guardas ao fundo da sala e disse:
– Estás a ver esta caixa? Vou deitar fora, és testemunha!
– Estás a ver este saco? Vou deitar fora, és testemunha!
E já tinha vestido outra vez a pele da fiscal.

Despedimo-nos e quando ia a sair, a primeira senhora que me atendera chamou-me:
– Senhor João…
– Sim…
– Tem um papel carimbado da alfândega?
– Tenho sim.
– Pode me dar?
– É todo seu.
– São 120 meticais, senhor João.

E pronto, lá paguei para receber o meu correio. Pedi recibo e fui à minha vida! Claro que não pude deixar de pensar que os procedimentos nos Correios foram semelhantes aos de uma fronteira, o que se entende, mas, admitamos, se estranha um pouco.

Obrigado, Mana, as coisas estavam em muito bom estado como as fotos documentam e o bilhete valeu mesmo a pena ser lido em primeiríssima mão pelos seus destinatários!
jpv

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A noite mais longa

Mails para a minha Irmã
A noite mais longa

Olá mana,
há já muito que te não escrevia. Sabes como é, as coisas urgentes vão-se fazendo primeiro que as importantes. Hoje, no início de uma reunião de trabalho, agarrei no meu caderno, escrevi com quem era a sessão de trabalho e coloquei a data. E, o que de imediato me veio à mente, foi a tua face com o aspecto reguila dos seus três anitos ainda plenos de esperança. Essa mesma esperança que estava prestes a sofrer uma contrariedade. Mas não só, porque a vida, felizmente, não é homogénea.
Faz hoje 36 anos que embarcámos. Sozinhos. Eu com 8 anos e tu com 3. E viajámos um oceano de desespero e solidão. E sobrevivemos. E houve uma desesperança e uma desentrega e uma sensação de estar tudo a desmoronar-se e a fugir por entre a impotência do nosso querer. Era uma espécie de fim. Mas, como disse, a vida não é homogénea. Eu acho, mana, que nós sempre gostámos muito um do outro. Acho mesmo que sempre fomos unidos porque nunca soubemos ser de outra forma, mas a violência daquela noite e dos dias infinitos e infindáveis que se lhe seguiram constituíram para nós um teste, uma provação. E o elo reforçou-se. Tornou-se inquebrantável. E as coisas que viríamos a viver daí para a frente, boas ou más, haveriam de estar para sempre eivadas dessa superação conjunta. Eu acredito, mana, que as pessoas que sofrem juntas, nunca mais se separam. O sofrimento é uma cola da alma.
Faz hoje 36 anos, os homens quiseram-nos fazer mal. Muitos morreram, entretanto. Outros ficaram sozinhos, outros perderam-se nas multidões, a maioria está esquecida e nós, da fragilidade e da vulnerabilidade das nossas vivências, crescemos irmãos, fortalecemo-nos e viemos a viver este dia olhando para trás no vácuo do tempo e sorrindo aos homens esquecidos com a ternura do nosso amor irmão. Nós, mana, estamos aqui. Companheiros de vida, com alegria e com sofrimento. Ainda bem.
Beijo,
Mano.


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o culto e o oculto

Querida Mana,
enredados que estamos no nosso próprio culto, no culto das nossas pequenas e efémeras existências, desmultiplicamo-nos em estatísticas e planos de emergência e casos reais e notícias mais ou menos desinteressantes sobre a percentagem de aviões que pode ou não descolar e aterrar e jogamos para o oculto esquecimento dos dias aquilo que é a maior evidência de todas: a nossa patética fragilidade. Um vulcão adormecido tossiu e toda a maravilhosa tecnologia humana ruiu. A Natureza enfadou-se de estar dormitando e bocejou e toda a sapiência acumulada em milhares de anos de estudo e investimento serviu de nada. E toda a robusta estrutura social colapsou. Fica-me, mana, desta breve mas poderosa manifestação de força por parte da Mãe Natureza, a sensação de que devíamos olhar em volta com mais atenção. Admirar o oculto e desenvolver menos o umbilical e patético culto de nós. Nem radares, nem GPS, nem jacto, nem piloto automático, nem era digital, nem afirmação computacional, nem nano nadas, nem mega tudos, nem gigas, nem teras, nem bites, nem ecrãs tácteis, nem sem fios, nem coisa nenhuma pôde nenhuma coisa contra um sussurro do vulcão voltando-se no tempo como eu na cama. Fica-me o respeito. Fica-me o olhar preso nas cinzas magnânimas para me lembrar da próxima vez que um humano se mostrar grande ou grandioso. Fica-me a humildade de reconhecer-me o meu lugar de bicho da terra tão pequeno.
Mano


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O acordar de Domingo

Olá mana,
hoje, quando acordei, já éramos três na cama. Vindo da penumbra do seu território, o miúdo enfiou-se no nosso ninho.

E dei comigo a recordar os momentos em que fazíamos exactamente o mesmo. Ao longo da semana afirmávamos a nossa independência juvenil, íamos às lutas todas, desafiávamos a figuras paternas e, depois, assim que desconfiávamos que estivessem acordados, como que descansando das guerras e das máscaras, havia um diamante bruto, um sentir insubstituível, uma pulsão de carinho e ternura que nos fazia trepar pela cama dos pais acima até ao centro e ali ficávamos entre o seu calor e o seu amor contando as aventuras, as estórias, rindo, usufruindo do correr aconchegante do tempo. Era como o sono depois de um dia de trabalho: o momento de aprender, de tirar partido, de amar.

Fundiam-se os territórios, esbatiam-se as fronteiras e as barreiras, não havia conflito de gerações nem qualquer outro porque o momento era de magia. A minha mulher tem uma imagem terna do assunto: diz que gosta de imaginar que vamos os três voando juntos, isolados do resto do universo e que a nossa cama seria assim uma jangada de percorrer os mundos todos…

Às vezes penso que a magia do acordar ao Domingo de manhã na comunhão dos espaços, dos risos, das aventuras e das desventuras podia bem ser uma forma de refundar a nossa sociedade.

Beijo,
mano.


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De pequenino…

Olá mana,
por estes dias, finalmente tristes, de Inverno, um sol houve que brilhou na seara da minha esperança: os miúdos fizeram um blogue.

Ao que parece a zona é complexa, mas, como sempre, os miúdos encaram a vida com alegria e galhardia e aquilo que entre os adultos poderiam ser problemas complexos, discussões, litígios, para eles são só o dia-a-dia.

E depois, há no meio disto tudo um professor, o Manuel, que acredita, efectivamente, no que faz e faz bem.

Estão por isso reunidas as condições para que a vida aconteça. E no espaço de um apoio, criam-se blogues, visitam-se blogues, pesquisa-se, intervem-se, aprende-se!

Como sabes, tenho sido um defensor prudente das novas tecnologias nos ambientes educativos. Defendo-as, sim, mas com critério, com acompanhamento para que o crescimento seja sustentado. Acontece, contudo, que a vida acontece e irrompe para além das nossas ânsias e mesmo para além das nossas capacidades de controlo. E mesmo com o acompanhamento do Manuel, os miúdos inscreveram-se na esfera cibernética e agora a vida é deles e acontecerá como tiver de acontecer. Resta-nos estar atentos.

Não farei o texto muito longo porque eles não gostam, mas queria usar este espaço que é, por norma, teu para divulgar o trabalho e o orgulho destes miúdos que de resto me lembram a tua fibra e o brilho do teu olhar quando tinhas feito alguma…

Sejam muito bem-vindos, amigos, a este mundo paralelo do outro e que ele vos traga as alegrias todas.

Aos leitores de “Mails para a minha Irmã” sugiro uma visitinha a:

Beijo,
mano.


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Parabéns mana!

Doce mana,

já em tempos escrevi um texto sobre o dia em que nasceste daí que tentarei felicitar-te sem repetir o caminho de magia que foi, para mim, o dia em que nasceste.

O texto será breve porque no que respeita à tua chegada, à tua existência, à tua vida, ao teu nascimento e ao teu aniversário, as coisas que sinto são de tal forma avassaladoras que me compactam os sentidos e tolhem as palavras. Todas me parecem de menos, pequenas, limitadas e aquém do turbilhão com que lido desde o dia 4 de Novembro de 1972.
É como se não fosses “só” minha irmã, mas o milagre de toda uma vida. É como se a minha existência se tivesse iluminado a partir do dia em que te vi, rosada, pela primeira vez.

O engraçado é que eu acho que tu sempre pensaste que eu era um exemplo a seguir e em surdina, num silêncio respeitoso de quem deixa passar a vida, eu seguia o teu exemplo. A bravura, o brilho malandro no olhar dedicado, o dente cerrado aquando da defesa das tuas posições e o carinho…

Não sei, não saberei nunca se fui um bom irmão. Não me interessa isso muito. Não é o tipo de mensurabilidade que eu ache que possa alguma vez ser justa. Sei, contudo, que devo ter sido um irmão aquém de ti porque tu mereces sempre mais. Sei, também, numa avaliação muito subjectiva mas que considero que é pertinente porque é a minha, que foste a melhor irmã que alguém poderia ter tido. Foste tudo o que sonhei no dia em que desejei um mano. E foste muito mais do que isso tudo.

Já uma vez to disse e agora repito: a palavra “irmã” faz sentido porque tu existes.

Parabéns, mana. Do fundo mais honesto e genuíno que o teu irmão encontra em si emana este voto, assim, cristalizado nesta palavra “parabéns”.

Gosto muito de ti e quero ver-te viver até que a Parca corte a corda. E peço à Parca que corte a minha primeiro!

Beijo, mano.


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Dia de Todos os Santos

Querida mana,

por mais complexos que possamos parecer ou queiramos assumir, a verdade é que, nós, os humanos, somos seres de síntese. Senão vejamos, há dias para este santo, para aquele santo, para algumas santas e há, depois, o dia de todos os santos. E, em síntese, colocamos os santos todos num mesmo saco que é o saco para onde vão os que se não destacaram por nada a não ser terem tido a coragem de atravessar o tenebroso rio.

Estava aqui a pensar nisto, donde se infere que sou um tipo esquisito, quando me lembrei que o pai, o avô Velez, a avó Ana, o avô Francisco, a avó Lectícia, a Mimi e mais uns quantos humanos que nos preencheram as vidas da juventude já são santos. O que não deixa de ser curioso porque entre estes admiráveis santos havia alguns que celebravam o dia com particular interesse.

Para nós tudo se resumia a um ritual que começava numa visita ao cemitério e terminava entre febras grelhadas na brasa e castanhas assadas nos pinhais de Santa Quitéria com fumos intensos de café de borra aquecido no lume perfumado das carumas.

Só hoje, à distância inultrapassável de umas quantas partidas definitivas, eu percebo o sentido dos rituais porque lhes sinto a falta. A verdade, mana, é que nada pode ser vivido antes do tempo. E é por isso que o dia de todos os santos teve uma altura em que era uma festa e tem, agora, um tempo em que é uma celebração. A celebração dos meus santinhos.

A celebração da dedicação com que o nosso pai nos conduzia até ao local perfeito, a celebração da sua voz moderadamente entusiasmada falando da feira e observando os seus pormenores de vida, a celebração da agitação genuína da Mimi, a celebração da insubstituível falta que me fazem os humanos, que, por serem os meus eleitos, são os meus santinhos, por mim beatificados e canonizados no altar da gratidão, do reconhecimento, do amor nascido de uma vida partilhada.

Se outras razões não houvesse, se outros santos o não justificassem, todos os meus santos de amar justificaram a noite de festa e febras e castanhas e água pé e vozes iluminadas pela companhia e pelo sentir que estamos vivos entre os vivos e, por isso, em condições de celebrar os vivos entre os mortos.

E foi assim que celebrei os meus santinhos, entre amigos, com todos os ingredientes, excepto o frio que muita falta fez por ser catalizador de conversas e por permitir aquele gesto que é uma pessoa agarrar numa chávena de café quente, encolher os ombros dentro da roupa e soprar o bafo à medida que vai comentado “está frio, não está?”…

Beijo,
mano.