Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


2 comentários

Back To Life

Nascer do Sol em Maputo

Nascer do Sol visto da nova habitação às 5:05h da manhã.

Caros Amigos e Leitores,

Depois de dezasseis dias sem publicações, uma eternidade(!), cá estamos de volta à vossa companhia. Claro que trazemos muitas histórias.

Já experimentaram fazer uma mudança em África? Nós já! Foi agora. Daí a ausência. Traquitanas às costas e mudámo-nos do centro da cidade de Maputo para os seus campesinos arredores. Um outro espaço, um outro sossego. Claro que levou o seu tempo até restabelecer comunicações e a falta de Internet bem como a exigência das tarefas de mudança e manutenção têm-nos mantido afastados da escrita.

Pelo meio, conhecemos algumas personagens bem interessantes e vivemos uns quantos episódios deliciosos. Claro que daremos fé de tudo!

Para já, só o regresso ao vosso contacto.

Até breve!
jpv


Deixe um comentário

A Paixão de Madalena – Capítulo 23 (Excerto)

capa-apm-4

O presente texto constitui um excerto do capítulo 23 do Romance “A Paixão de Madalena” que publicaremos em breve.

A PAIXÃO DE MADALENA

LIVRO IV – ASCENÇÃO E QUEDA

23. Albertina nunca duvidou de que conseguiria criá-las. Mais dificuldade, menos dificuldade, a medida do amor que lhes tinha era a garantia do seu sucesso. Ainda a caminho de Lisboa tomou algumas decisões que são as viagens boas conselheiras, melhores, ainda, que os travesseiros, definiu as linhas mestras da educação das suas netas, coisas que aprendera com a sua própria experiência. Seriam educadas em liberdade e no mais absoluto respeito por esse valor. Seriam educadas para a solidariedade, a compaixão, a entre-ajuda. E seriam educadas na aceitação da diferença, na multiculturalidade. Queria-as longe do pensamento mesquinho, preconceituoso e retrógrado da aldeia que as vira nascer. Seriam mulheres do Mundo, aptas a defender-se, a defender a sua liberdade e capazes de aceitar o outro e a reconhecê-lo como um igual. Tudo o resto seriam pormenores circunstanciais e gravitantes destes pêndulos do pensamento e da ação. E, no dia a dia, nas pequenas coisas que nos ajudam a crescer, nas decisões que ninguém nota, mas nos fortalecem a confiança, ensinou-as a serem cúmplices, inseparavelmente amigas, inigualavelmente unidas.

———————————- jpv ———————————-

[O presente texto constitui um excerto do Capítulo 23 de “A Paixão de Madalena” a publicar em breve em livro. Boas leituras!]


1 Comentário

Crónicas de África – Roteiro Gastronómico de Maputo (1)

18d31-cronicas-de-africa-img-2

Crónicas de África – Roteiro Gastronómico de Maputo (1)

Maputo, 13 de outubro de 2014

Precisei de tomar banho. Às vezes, lá muito de vez em quando, acontece-me. A caminho da banheira, passei pela balança e assim que vi o número escarrapachado no visor, a pergunta estalou-me na cabeça como uma bomba:

– Mas como é que isto aconteceu?!

Foi ao tentar elaborar uma resposta para aquela pergunta que esta crónica me surgiu. Desde já aviso que isto não pretende ser um roteiro exaustivo, nem sequer pretendo aconselhar ninguém a ir a lado nenhum, nem tenho comissões, nem sou gastrónomo, nem fiscal. Gosto de comer, descansado, em boa companhia, e gosto das memórias que alguns locais me semeiam quando lá como. Ou seja, mais do que um roteiro, é um caderninho de boas memórias gastronómicas. Estou no meu terceiro ano em Maputo e o meu palato lembra-se de algumas coisas que decidi partilhar.

Maputo tem muito mais oferta do que aquela que vou referir e sei que vou voltar para referir outros locais, daí ter numerado a crónica com um (1)… Em todo o caso, vou registar um ou dois pratos por restaurante, aqueles que me agradaram mais, caso tenha lá comido mais do que uma vez, ou aquele que me causou uma excelente impressão. Claro que vou fazer juízos de valor, mas esses decorrem somente das minhas impressões. Não são nenhuma espécie de lei. Mas isso, os leitores já sabiam.

Piri Piri

É talvez o restaurante mais concorrido da cidade, tem uma clientela muitíssimo variada. Muitobem situado no coração da cidade, com serviço rápido e simpático e algumas confusões nas contas, mas nada de preocupante. É que a azáfama é muita. A oferta é variada, mas isso não interessa para nada. No Piri Piri come-se frango de churrasco. Ponto final. Invariavelmente bem confecionado. Há mais. Sem qualquer espécie de problema, afirmo que é onde se bebe a melhor imperial em Maputo. Sempre bem gelada. Sempre bem viva. Sempre perfeita. Não me lembro de ter bebido uma imperial assim-assim no Piri Piri. A mousse de chocolate termina bem. Gasto médio por pessoa: 500 meticais.

Cristal

Nem dá para pensar duas vezes: caranguejo ao natural. Ponto. É claro que a açorda de garoupa e a massada do mesmo peixe são excelentes, mas na Cristal é caranguejo ao natural. Serviço simpático e célere. Para terminar, tem tarte Tatin fantástica. Gasto médio por pessoa: 650 meticais.

Zambi

O ambiente deste restaurante é muito agradável, sobretudo, se decidirmos comer na rua, sob as palmeiras. Da variada oferta, que não conheço, nem é preciso, elejo o prato que comi quando lá fui a primeira vez e que sempre repito quando lá volto. Arroz de pato. É ao sábado. Deve acompanhar com a soberba sangria de champanhe e maracujá. No fim, há um petit gateaux de chocolate com bola de gelado que é divinal. Gasto médio por pessoa: 900 meticais.

Costa do Sol

Dizem as vozes da cidade que o restaurante Costa do Sol já foi bom, que já não é o que era, etc e tal. Mas isso diz toda a gente em relação a tudo. A não perder a decoração interior. A não perder os camarões grelhados com batata frita e molho acre. Tem uma boa imperial. Serviço simpático e célere. Gasto médio por pessoa: 600 meticais.

Mimmos

É um daqueles restaurantes de comida pré-feita, uma espécie de franchising de pizzas e massas ao estilo italiano. A imperial deixa a desejar. Mas o macarrão de galinha assada é delicioso. Vale a pena. O serviço é invariavelmente lento. Gasto médio por pessoa: 450 meticais.

Kalus

Ainda que tenha zonas cobertas, a sala de jantar deste restaurante é, basicamente, num jardim, no centro do qual ficam enormes assadores de carne. E é essa a especialidade da casa. Carne grelhada na brasa. A dita carne compra-se ao balcão, ainda crua, e só depois de feita a aquisição do naco é que ele vai a cozinhar. Ideal para quem quer fazer uma churrascada sem ter de lavar a loiça. O serviço é lento, mas carne grelhada não promete outra coisa. Gasto médio por pessoa: 400 meticais.

Hotel Cardoso

Esqueçam lá a comida. Aquilo é bom por causa da paisagem. O restaurante fica numa varanda com vista sobranceira ao mar. O naco na pedra é excelente. Ambiente super agradável. Serviço muito bom. Gasto médio por pessoa: 1000 meticais.

Clube Marítimo

A localização é convidativa. A esplanada do restaurante fica encostada à rebentação do pacato Índico. O som do mar é a música de fundo e a brisa é inspiradora. Todas as massas italianas são muito boas, mas o que mais me atrai neste restaurante nem é um prato, é uma salada. A salada de marisco é simplesmente divinal. Servida fria, claro, tem um equilíbrio fantástico entre o sabor do marisco e o das ervas usadas para aromatizar o prato. Aconselha-se a caipirinha de maracujá para empurrar. Além disso, este restaurante tem a melhor sobremesa de Maputo. Bolo de mousse de chocolate. É de comer e chorar por mais. Gasto médio por pessoa: 650 meticais.

Mundos

Também é um restaurante de comida pré-preparada. O ambiente é muito agradável. A sala central tem uma cobertura típica de África, feita de ramos muito juntos e apertados, o que a torna fresca e agradável. A espetada de galinha com molho shutney é muito boa. Boa imperial. Gasto médio por pessoa: 500 meticais.

A Casa do Peixe

Aqui está outro restaurante onde o que mais me atrai não é um prato principal. Claro que o filete de garoupa grelhado é soberbo, mas ir à Casa do Peixe e não comer uma sopa rica do mar, é como ir a Roma e não ver o Papa. A sopa é perfeita. É um generoso creme de frutos do mar. Generoso na qualidade da confeção e na quantidade servida. O serviço é simpático e célere. Para fechar, tem um bolo de chocolate que vale bem a pena, na boca, as calorias que hão instalar-se mais abaixo. Gasto médio por pessoa: 1000 meticais.

Marginal

Dar um passeio pela marginal até à Costa do Sol, ir à praia, sentar nas esplanadas improvisadas e comer com as mãos um frango no churrasco com uma 2M a acompanhar não é má ideia. Pezinho na areia e batatas fritas daquelas enormes como a minha avó fazia. Gasto médio por pessoa: 200 meticais.

E pronto, para já é tudo. Agora tenho de ir dar uma corridinha… Um dia destes, conto mais!

jpv


Deixe um comentário

A Paixão de Madalena – Capítulo 22 (Excerto)

capa-apm-4

O presente texto constitui um excerto do capítulo 22 do Romance “A Paixão de Madalena” que publicaremos em breve.

 

A PAIXÃO DE MADALENA

LIVRO IV – ASCENÇÃO E QUEDA

22. Àquela época, tinham os homens estabelecido, contra a sua própria natureza, que nem todos nasciam livres. Isso seria privilégio de alguns. Os outros teriam de conquistar, ou mesmo comprar, a liberdade. A mairia morria escrava. Ora, em tratando-se de mulheres, mais evidente se tornava a calamidade. É que, mesmo as mulheres de linhagem, só eram livres em lhes sendo concedida a liberdade por seus maridos. Haveria, por certo, os conformados, que em toda a parte os há de haver sempre. E haveria os que queriam viver livres. Muitos nem sabiam porquê. Tinham nascido com aquela ideia ou alguém lha semeara em dado momento e ela florira impertinente. E haveria aqueles, raros, que, como Maria de Magdala, o que queriam era morrer livres.

 

———————————- jpv ———————————-

[O presente texto constitui um excerto do Capítulo 22 de “A Paixão de Madalena” a publicar em breve em livro. Boas leituras!]


Deixe um comentário

A Paixão de Madalena – Capítulo 21 (Excerto)

capa-apm-4

O presente texto constitui um excerto do capítulo 21 do Romance “A Paixão de Madalena” que publicaremos em breve.

A PAIXÃO DE MADALENA

LIVRO III – CAIM E ABEL

21. Um mês antes. Exatamente um mês antes, em 24 de março de 1973, Manuel Paixão regressou. Vinha farto de África, queimado do sol, com a alma gasta, o corpo mal tratado e o nome sujo, cansado de andar de impresso em impresso. Quando finalmente pisou solo português, era um homem agastado, zangado com a vida, cheio de vícios no corpo e impaciências na alma. Não avisou que chegaria e quando o autocarro o largou na aldeia, a notícia correu as ruas à velocidade da luz, propagou-se de porta em porta, de postigo em postigo, e ninguém se importou com o seu estado ou mesmo com o que poderia fazer quando reencontrasse o irmão ou a mulher que, segundo rumores, estava grávida, quase a parir. Deolinda Paixão, sua mãe, mulher de públicas lágrimas e mandar dizer missas pelo regresso do filho, foi ao seu encontro no largo da aldeia onde o autocarro o deixara e os amigos e conhecidos lhe perguntavam como era África e que tal estava a guerra, se era mesmo para ganhar, e abraçou-o num pranto que mais parecia que ele tinha morrido do que regressado são e salvo, tanto quanto se podia ver:

– Meu filho, meu querido filhinho, tu voltaste, meu filhinho!

– Sim, minha mãe, já cá estou e isso é que importa. Acalme-se, minha mãe.

– Ai a minha família reunida, os meus meninos juntos outra vez. Patrocínio! Chamem o meu Patrocínio! Que venha abraçar o Manuel que chegou vivo da guerra. Já chega de desgraças nesta família, já chega de esperas e lágrimas.

———————————- jpv ———————————-

[O presente texto constitui um excerto do Capítulo 21 de “A Paixão de Madalena” a publicar em breve em livro. Boas leituras!]


Deixe um comentário

A Paixão de Madalena – Capítulo 20 (Excerto)

capa-apm-4

O presente texto constitui um excerto do capítulo 20 do Romance “A Paixão de Madalena” que publicaremos em breve.

A PAIXÃO DE MADALENA

LIVRO III – CAIM E ABEL

20. Quase sem saber, por certo sem querer, fora o próprio Lucílio da Conceição quem apressara os acontecimentos porquanto, certa tarde, na tasca do Quim da Barbuda, cruzou-se com Patrocínio Paixão e não resistiu a provocar o mancebo:

– Olha lá, ó miúdo, tu é que te podias fazer útil e ias lá àquilo meu, batias à porta, anunciavas-te em nome das saudades que hás de sentir pela minha filha, e estás por ali um bocado com elas, vês como estão a desenrascar-se sozinhas, sem um homem macho por perto, e depois vens-me fazer o relato da coisa. Que te parece, hã?

– Senhor Lucílio, quando eu quiser visitar a minha cunhada, hei de fazê-lo por meus próprios motivos e por minha própria conta, sejam eles matar as minhas saudades ou levar e trazer novas para meu irmão, que terá cometido os seus erros, por eles está a pagar, mas continua a ser o esposo da senhora sua filha e o pai da menina, sua neta. E agora, se me dá licença, até mais ver.

———————————- jpv ———————————-

[O presente texto constitui um excerto do Capítulo 20 de “A Paixão de Madalena” a publicar em breve em livro. Boas leituras!]


Deixe um comentário

Crónicas de África – Antes a Multa!

mija-multa

Clique na imagem para aumentar.

Crónicas de África – Antes a Multa!

Maputo, 6 de outubro de 2014.

É comum encontrar nas ruas de Maputo, em particular, escrito em muros ou em vedações metálicas temporárias para realização de obras, inscrições que ameaçam com multas quem urinar no local. É verdade, também, que as multas variam e a amplitude do valor cobrado é muito grande. Já vi locais onde a multa é de 50 meticais, mas também já vi de 100, 200 e mesmo 500.

O que eu nunca tinha visto, e por isso registei, foi uma oferta diversificada. Uma coisa do tipo ‘à escolha do freguês’! A verdade é que, quem quer que seja que mora ali, trabalha ali ou passa ali, parece determinado a não ser incomodado com o mijar alheio.

Ora, a coisa cheira-me a discriminação mictória. Vejamos. Qual o critério que determina a diferenciação do valor a pagar? O volume da tiragem, o tempo de micção, o aspeto do infrator? É o infrator que escolhe o meio de pagamento? Assim, do género, ‘Não trago aqui dinheiro, posso, em vez disso, levar um enxerto de porrada?’  Enfim, seria útil esclarecer o critério. Mais útil e pertinente seria informar a população acerca dos critérios que implicam a coima mais agressiva. Simpaticamente designada de ‘PURADA’, mas, a meu ver, a anunciar maleitas físicas significativas no infrator porque, ou muito me engano ou, onde se lê ‘PURADA’, deve ler-se ‘PORRADA’.

Para os menos entendidos nestas matérias de índole legal eu transcrevo a inscrição:

‘NÃO MIJAR AQUI. MULTA 150-200MT OU PURADA’

E aproveito para a esclarecer porque as coisas em linguagem legal são sempre um pouco opacas. Sentido da inscrição:

‘NÃO URINAR AQUI. MULTA DE 150 A 200 METICAIS OU AINDA A POSSIBILIDADE DE TE PARTIRMOS A OSSADA TODA!’

E pronto, por hoje é tudo. Se me dão licença, vou ausentar-me, tenho de ir ali e já venho!

jpv


Deixe um comentário

A Paixão de Madalena – Capítulo 19 (Excerto)

capa-apm-4

O presente texto constitui um excerto do capítulo 19 do Romance “A Paixão de Madalena” que publicaremos em breve.

A PAIXÃO DE MADALENA

LIVRO III – CAIM E ABEL

19. O corpo do homem branco está tombado de bruços com a cara semi-enterrada num charco, a roupa rasgada, o sangue do próprio e alheio a mancharem-na. Um pé negro virou-o e expô-lo à luz do sol. Respirava. Levaram-no para a sanzala. Lavaram-no. Cobriram-lhe as feridas com uma pasta de ervas e deram-lhe água. Acordou febril dois dias depois e viu-a, alta e esguia a seu lado. Teve medo, quis mexer-se, levantar-se e fugir. Ela segurou-o pelo tronco desnudo e levou-lhe um pouco de funge frio à boca. Só então se apercebeu de que tinha fome e comeu tudo o que ela lhe deu. E reparou que pela primeira vez na sua vida fora tocado por um negro. E sentiu o toque sedoso e quente da pele humana e sentiu-se surpreendentemente reconfortado. E sentiu-se envergonhado por ter sido preciso que lhe tocassem para que se certificasse da sua humanidade. Não fora de seres humanos que lhe falaram nos treinos, mas de animais selvagens, bestas insaciáveis e assassinas e, contudo, ali estava ele, salvo por essas pessoas, tratado por elas, alimentado por elas, tocado por elas, um toque quente e sedoso, acolhedor. E sentiu-se em casa. Nunca falaram. Não seria possível. Sempre que tentaram, as barreiras do desentendimento erguiam-se. Eram tão impercetíveis para eles os sons de Manuel como para si os sons deles. Entenderam-se por gestos. E quando pôde andar, foi conhecer a aldeia e fez-se útil e ajudou. E nesses breves tempos, que correram céleres como a felicidade dos inconscientes, Manuel foi um homem tranquilo e pacificado.

———————————- jpv ———————————-

[O presente texto constitui um excerto do Capítulo 19 de “A Paixão de Madalena” a publicar em breve em livro. Boas leituras!]


2 comentários

Era uma vez…

mama

 

“Era uma vez…

uma linda jovem, pobre, que se apaixonou por um belo e garboso príncipe. Casaram e nasceu um principezinho e uma princesa, mas hoje em especial não estou aqui para falar da princesa, mas do principezinho.

Era lindo, rosadinho, olho azul, um verdadeiro botão de rosa, o orgulho e fruto do amor dos seus pais. Para a jovem pobre que nunca tinha tido nada de seu, era algo de muito belo poder ter em seus braços aquele belo bebé e chamá-lo de seu filho.

Bem estou a contar esta história porque o tempo passou mas o amor permaneceu. O principezinho completa hoje quarenta e sete anos de idade, motivo de grande alegria para todos os que gostam dele e que o rodeiam, em especial para a jovem mãe, hoje marcada pelo tempo, mas feliz! O pai, esse não está presente, viajou, mas prometeu que um dia nos encontraríamos.

Agradeço a Deus por tão belas dádivas. Parabéns meu querido filho! Que o Altíssimo Pai te abençoe.

Muitos beijos da mamã. “

Obrigado, Mamã!
jpv


2 comentários

Crónicas de África – O Senhor M

18d31-cronicas-de-africa-img-2

Crónicas de África – O Senhor M

Preserva-se a identidade do senhor M. Mas revela-se o que mais interessa. O espírito.

É difícil não gostar dos moçambicanos. São incrivelmente alegres e felizes, são bem dispostos, não sofrem de stress, não têm rancor e têm uma relação com a vida e com as palavras repleta de genuinidade e ternura.

É pintor. Pinta casas, portas, paredes, vedações e mais ou menos tudo o que possa ser coberto de tinta. Eu precisava de um. Deram-me o contacto dele e logo pelo telefone me pareceu uma personagem interessante como, de facto, se viria a revelar. Combinei encontrar-me com ele cedo, mas não a uma hora violenta. Vai daí, marcámos para as sete horas. Trazia um ajudante com um pequeno saco de plástico que mais parecia a mala da Mary Poppins. É que, mais tarde, viria de lá a sair um panal para proteger o chão, fita adesiva, uma espátula, um pincel e a roupa de trabalho. Pois, pelas sete da manhã, o senhor M não apareceu em traje de trabalho. Veio de fato. Eu senti-me respeitado e tive pena de não estar um pouco mais arranjado. Calça de ganga e camisa de manga curta por fora das calças não faz justiça a um fato.

Enquanto cruzávamos a avenida marginal com o mar a embalar a manhã, rolando suavemente na estrada acabadinha de fazer e quando eu me preparava para elogiar a estrada para desbloquear conversa, ele avançou:
– Essa estrada não é boa ideia.
– Ai não?
– Não. Fizeram em cima o mar. Ele há de vir buscá-la.

Achei a observação curiosa porque a história das estradas de Maputo está repleta de episódios em que o mar as engoliu.

Eu tinha comprado tudo. Rolo de pintar, tabuleiro, trinchas, fita adesiva e até a tinta. Era fácil, bastava comprar tinta branca e pronto. Não consegui deixar de sorrir à forma como ele avaliou a qualidade da tinta que eu comprara. Agitou vigorosamente a lata de 20 litros, abriu-a, mexeu-a, colocou um pouco de tinta na tampa da lata, chegou-a ao nariz, inspirou profundamente e ditou a sentença:
– Eh… gastou o dinheiro, mas essa tinta aqui não há de ter qualidade.
– Então?
– Não cheira a tinta de qualidade. Havemos de aproveitar para os tetos.
Depois deu duas pinceladas com a tinta mal cheirosa na parede, vagueou pela casa e num local onde havia desperdícios da recente passagem do canalizador, ele voltou a sentenciar:
– Eh… depois dizem que os pintores sujam as casas. Tudo vai de como se mergulha o rolo na tinta. Pode vir um homem, começar a pintar e parece que está a chover tinta, mas eu, quando começo a pintar, até podia pintar com o fato vestido!
– Mas não faz isso…
– Eh… não! A minha mulher havia de se zangar.

E eu a pensar que podemos ser diferentes em muitas coisas, mas no que respeita ao que as mulheres pensam da roupa que usamos para as bricolages, estamos de igual!

Lá fomos comprar tinta de qualidade. Ele aconselhou, eu segui o conselho, comprei a tinta que ele escolheu, com direito a desconto por ser ele cliente da casa e ter transferido o privilégio para mim. Enquanto íamos no carro e falávamos um com o outro, ele contou um pouco da sua história. Mas eu retive só uma parte dela porque a minha mente ficou presa numa frase tão deliciosa que até desejava ter sido minha, mas não foi. O poeta foi ele. Eu, hoje, sou só o cronista.

– Uma vez aceitei o trabalho de pintar uma casa lá no Tete. Xiii, nunca mais… Perdi dinheiro nesse trabalho aí. É longe.
– E como é que foi?
– Fui no chapa. Primeiro era até ao Chimoio, depois mais uma terra lááááá, depois outra, xiiii, só chegámos três dias depois. E mais três dias para voltar e eu a perder trabalhos aqui ao pé de casa. Mas isso não foi o pior…
-Então?
– Esses chapeiros são perigosos a guiar, não respeitam a velocidade, adormecem, xiii, lá no Tete houve uma curva onde até morremos um bocadinho.
– Como assim?
– Eh… o chapeiro entrou pelo mato…

E fiquei a pensar na curva onde o senhor M morreu um bocadinho. A naturalidade com que aquilo lhe saiu, a invejável facilidade com que formulou uma frase tão elegante, tão bela e genuína e, contudo, tão complexa…

Depois, chegámos a casa e ele a olhar as paredes com um olho aberto e outro fechado como quem lhe tira as medidas e voltou lá onde tinha dado as pinceladas na parede e essa tinta já estava seca. Ele esticou o dedo mindinho de unha comprida, arranhou e a tinta cortou-se.
– Eu não disse que não tinha qualidade?

E pronto, foi-se vestir e dar a primeira camada, como ele disse, para matar a cor que estava por baixo.

Amanhã vou revê-lo e espero renascer mais um bocadinho.

——————————- jpv ——————————-