Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Crónicas de Maledicência – O Maior Espetáculo do Mundo

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Crónicas de Maledicência – O Maior Espetáculo do Mundo

Depois das manifestações, depois das especulações, depois de se ter garantido que tudo iria correr mal, a festa vai começar.

Começa hoje o mais vasto, o mais visto, o mais apaixonante e aquele que é, financeiramente, o mais volumoso espetáculo do mundo.  É evidente que há opções questionáveis. É evidente que, ao mesmo tempo que organiza espetáculos com esta dimensão, o Ser Humano não resolve as suas assimetrias, não soluciona os problemas culturais, sociais e ambientais.

Mas, será que se nos concentrássemos exclusivamente em resolver os problemas e não déssemos espaço à realização dos nossos eventos, à expressão da nossa cultura, os problemas se resolveriam? E em que medida valeria a pena resolvê-los? Por comparação, a indústria livreira deve ser das maiores responsáveis pelo abate de árvores e, contudo, alguém equaciona a possibilidade de pararmos de fazer livros?

A Humanidade está a enfrentar problemas sérios e tem de o fazer, mas não pode abandonar-se à esterilização da sua existência. Como já muita gente disse, o futebol é uma religião. Um lenitivo para os problemas do quotidiano e a perspetiva de ver em confronto nações e culturas dos quatro cantos do mundo encerra em si um interesse antropológico magnetizante. Entusiasmante. Conheço muitas pessoas que não sentem grande interesse pelo futebol, mas sempre que há torneios que envolvem seleções como sejam um mundial, um europeu ou a CAN, vestem as suas cores e torcem pela sua nação.

Além disso, o futebol é divertido. Há o interesse do jogo e há, à volta do jogo, uma multiplicidade de aspetos mais ou menos folclóricos que atraem e entusiasmam as pessoas.

Espero que a organização esteja à altura. O Brasil merece isso. Espero que haja jogos fantásticos. Espero que Portugal ganhe e, não ganhando Portugal, espero que os nossos irmãos brasileiros arrecadem a Jules Rimet! Espero que as pessoas se entusiasmem com o torneio. A verdade, gostemos ou não, é que o mundo vai parar por um mês! Tudo vai ser relativizado. Quem quer saber da dívida externa ou do buraco do ozono no dia em que o Brasil e a Croácia abrem o espetáculo dos espetáculos? E não há nisso qualquer maldade ou insensibilidade. É que a bola vai rolar e a Humanidade vai tirar férias da sua enfadonha vida de sempre.

Que ganhe o melhor!

Tenho dito!
jpv


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Crónicas de Maledicência – Um Tendão Pomposo

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Crónicas de Maledicência – Um Tendão Pomposo

Ainda o Mundial de Futebol 2014 não começou e Portugal, o país verdadeiro e profundo, já tem razões para estar agradecido ao evento e a alguns dos seus intervenientes. O futebol, por ser um desporto de massas, signifique isso o que significar e, por certo, significa muitas coisas, pode ser extremamente didático.

Até aqui, o português comum tinha joelhos. Depois da lesão de Cristiano Ronaldo, sabe que a essência do joelho é a rótula e sabe também que a rótula tem tendões que servem para qualquer coisa, nomeadamente, correr e dar pontapés na bola. Mas a didática da bola vai muito mais longe. Até aqui levávamos pantufadas nos joelhos, cacetadas, sarrafadas e, derivado das mesmas, ficávamos coxos. Agora já ninguém fica coxo. Os portugueses, por via de seu amado CR7, ganharam o direito a subir de meros coxos a pacientes que sofrem de inflamação do tendão rotuliano. Eu, que tenho vinte e quatro anos de serviço docente esforçado e brioso, nunca consegui ensinar uma tão complexa e extensa sequência vocabular em tão pouco tempo a tanta gente ao mesmo tempo. O futebol ultrapassa-nos a todos.

E isto tem as suas consequências positivas. Agora, o velhote vai ao médico e ai do dótôr que venha para cá falar do romático, ou da ciática, ou da artrose! Isso é vocabulário simplório e comum. Os velhos, agora, vão reclamar o nome apropriado no relatório do diagnóstico: inflamação do tendão rotuliano. Deve ser um tendão pomposo uma vez que lhe deram um nome pomposo que faz lembrar os nomes dos imperadores romanos e daqueles tipos de túnica branca que iam ao senado afacalhar-se uns aos outros depois de noites em loucas orgias. E quando o dótôr perguntar se a pessoa sabe do que sofre e qual a gravidade da doença, o paciente saca do baú da sapiência faustamente recheado em longos telejornais e mai-los programas da especialidade e os diretos e ainda os tipos em cima das motas atrás do autocarro e esfrega nas ventas do médico com todas as definições, sintomas, implicações e terapias relativas e apropriadas ao tratamento.

Isto é assim, caro leitor, investem-se milhões na Educação, em escolas, em vencimentos de docentes, em médicos, em publicidade institucional, em centros de saúde e a coisa resulta em muito pouco. Dinheiro mal gasto, está bom de ver! Já, por seu lado, o Cristiano Ronaldo e os amigos vão ao Brasil dar uns pontapés na bola e outros tantos na gramática e vai daí a população fica genericamente mais douta seja ao nível da Língua, seja ao nível dessa inesgotável ciência exata que parece ser a Medicina.

De resto, isto está tudo cruzado. Bem vistas as coisas, dá para perceber de que lado está a sabedoria. Por exemplo, tecnicamente, Cristiano Ronaldo e os outros vinte e dois juntamente com seu garboso treinador percebem mais da Constituição da República Portuguesa do que o Governo. E as contas são fáceis de fazer. Já alguém ouviu falar do Tribunal Constitucional ter chumbado o que quer que fosse do CR7 e seus amigos? Ah, pois não! Mas a oposição também não se fica a rir. Andava tudo numa lufa-lufa a ver se o Costa ganhava ao Seguro ou se era o Seguro que ganhava ao Costa, se iam a diretas ou se se ficavam pelas indiretas e vai daí o CR7 lesiona-se e os outros dois passam para horários menos nobres, deixam de abrir os serviços noticiosos e ficam entregues a uns especialistas duvidosos que falam depois das 22h. Tecnicamente, o Cristiano nem precisava de apresentar oitenta medidas. Bastava uma meia dúzia e todo o Portugal saberia do que se tratava e toda a Assembleia da República se curvaria às mesmas.

Isto é assim. Há o país real. E há aquele país para onde a gente foge sempre nos podemos escapulir ao país real. Ora, nesse outro país, há um imenso relvado, duas balizas, uma bola, vinte e dois tipos suados com tatuagens e cortes de cabelo criativos e não há lá coxos, há atletas que sofrem de inflamação do tendão rotuliano. E é para lá que emigramos todos. Sempre que podemos. E é por isso que dentro de quarenta e oito horas o país real, quer queira, quer não, vai entrar em auto gestão. Mai nada.

Tenho dito!
jpv


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Um País

Portugal Ilha de MoçambiqueUm País

Um marco na estrada,
Um gesto que se faz.
Uma palavra que se diz
E ergue-se o meu país.
É um barco no mar,
Uma varina a chorar.
É uma sopa e o conduto
E uma velhinha vestida de luto.
É um homem que parte.
É a vertigem da arte.
É um pão sobre a mesa,
É mais dúvida que certeza.
É uma capela e um sino,
Uma bandeira e um hino.

E é a saudade!

É uma guitarra a chorar um fado,
Um povo trabalhador e honrado.
E é a distância.
O passo certo da errância
E da solidão.

O meu país é uma canção.

Nascem na pena de um poeta
Versos de esperança e futuro.
Mas o horizonte e a meta
Estão para lá do muro.
A semente secou e morreu
Num ventre prenhe de vida.
O meu país pereceu
Às mãos de uma arma fingida.

Houve homens altos
Que ergueram uma capela no Índico
E uma fortaleza perdida.
Houve homens que foram lá longe
Onde começa o mundo,
No outro extremo desse poço sem fundo
De palavras e dizeres.
Houve homens que levantaram âncoras
De morte e suor.
E também houve feitos épicos
E vorazes epopeias.

O meu país é um deserto de ideias!

Passa uma criança com fome
E um doente abandonado,
Passa um velho triste
E um político num fato engomado.
Passa um avião
Rasando as casas da cidade,
Lá dentro vai a desilusão
Num corpo sem idade.
Passa um povo traído
E não há quem o console,
Vive entregue ao capricho sinuoso
De uma bola de futebol.
Vai desfilando angústia e desespero
Na passadeira da história.

Meu país é um povo sem memória!

E de manhã, ao acordar,
Sente-se um perfume no ar,
Um vento de insuspeita mudança,
Um grasnar na praia,
Um rumor de sentença,
Uma música na rádio,
Uma correria de rua,
Uma bandeira desfraldada,
Uma mulher semi-nua.
Um gritar entusiasmado,
Uma cidade em alvoroço,
Um refrão mal rimado
Em verbo curto e grosso.
Um punho no ar,
Um cartaz na mão.

Portugal é um país
Em constante revolução!

jpv


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Lenitivo para a Saudade


Barco Negro – Mariza


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A Paixão de Madalena – Capítulo 13

A Paixão de Madalena

AVISO
O texto que a seguir se publica faz parte do romance “A Paixão de Madalena” e contém passagens de teor erótico. Se se sente ofendido com textos, imagens ou quaisquer conteúdos sobre erotismo e sexualidade, por favor não prossiga.
Do mesmo modo, o conteúdo desta publicação só pode ser acedido por pessoas maiores de 18 anos.
Assim, caso prossiga com a leitura, o utilizador fá-lo por vontade própria e assume ter idade para aceder aos conteúdos.
Obrigado.
jpv
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A Paixão de Madalena

Livro II – O Cordeiro de Deus

13. É noite.
É um quarto mergulhado na penumbra. Fonte de luz, só uma vela tremeluzindo, colocada no chão e a um canto da divisão. É uma cama no centro. Uma porta à esquerda. Aqui, onde está o nosso olhar, só o olhar, que nós não nos atreveríamos a devassar cena de tanta e tão cúmplice intimidade, está uma poltrona. Fica a um canto e quando a porta se abre quase obstrui a visão. Está vazio, o quarto. Vazia, a cama. Ocupada, só a poltrona, com o nosso olhar. É uma cena de imobilidade por agora. Só a luz trémula e envelhecida da vela parece soprar as sombras num bailado dolente. Entra uma mulher no quarto. Cabelos claros, soltos sobre os ombros. Uma única peça de roupa, uma túnica ao longo do corpo. Nada mais. Chega junto aos pés da cama, deixa cair a túnica e o seu corpo alvo, de formas arredondadas e sedosas, fica exposto à luz fraca daquela penumbra. Dobra-se sobre a cama, abre os braços e agarra-se aos lençóis. Os pés no chão. E espera. Alguns momentos depois, entra um homem no quarto. Está vestido. Não interessa como. É alto e bem constituído. Aproxima-se da mulher prostrada sobre a cama e acaricia-lhe as nádegas alvas e desnudas. Depois toma-lhe o sexo com as mãos e a mulher deixa-se estar prostrada gemendo de prazer e rangendo os dentes de desejo. O seu gemido converte-se numa súplica e o homem faz-lhe a vontade. Afasta-lhe as pernas com a ponta do pé, desaperta o cinto das calças e deixa-as cair até ao joelho, ergue o sexo intumescido, procura-a e penetra-a com suavidade. Segura-a pelas nádegas e inicia um vai-e-vem lento, depois, um pouco mais entusiasmado para terminar vigoroso e frenético. Despeja-se nela com um urro de prazer a sobrepor-se aos seus gemidos que eram agora gritos descontrolados de êxtase. Ele terminou. Recolheu o membro latejante, subiu as calças e abotoou-as. Saiu do quarto. Nunca olhou a poltrona ao canto. Tinha ordens para não o fazer. Nessa poltrona, onde deveria estar apenas o nosso olhar, estava sentado um homem. Era Pablo Sentido. Fez um pequeno compasso de espera após o outro ter saído, levantou-se, aproximou-se da mulher, virou-a, puxou-a para cima da cama e tombou sobre ela procurando-lhe os lábios para pousar os seus. Penetrou-a devagarinho e com ternura e estava dentro dela quando lhe sussurrou ao ouvido:
– De quem és tu?
– Sou tua, mestre!

Pablo Sentido era espanhol. Facto que o leitor conhece e não estranhará caso tenha prestado atenção ao capítulo sétimo desta Paixão, de Madalena chamada. E por ser espanhol não podia viver em Espanha. Não acontece com todos os espanhóis. Acontece com alguns. Acontece com aqueles que têm tanta Espanha no peito que precisam vivê-la à distância para suportar a sua convivência. A verdade, até agora indesmentida, é que Pablo Sentido se formou em medicina, se especializou em psiquiatria, mas aquilo que realmente lhe interessa é a sexologia, melhor dizendo, a psiquiatria da sexualidade. Ora, foi por ser espanhol andaluz que um tal interesse lhe nasceu no peito e foi alimentado pela sensualidade que rodeou o seu crescimento e formação enquanto criança e jovem. As mulheres de pele tisnada pelo sol, com roupas de praia, os casais toureando uma sevilhana ou uma malaguenha ao som das castanholas e dos gritos de incentivo, o vigor masculino e a força da sensualidade feminina cresceram consigo, em si. Acontece que, primeiro por se desentender com o regime de Franco, depois por ninguém em Espanha precisar de sexólogos, Pablo saiu e nunca mais regressou. Em Espanha não há problemas com a sexualidade e as razões são simples. Ou não os há porque ela se exprime no seu esplendor, ou há-os mas escondem-se. Vive-se aí certa vivacidade machista em que os machos são genericamente dados como competentes e as fêmeas como satisfeitas. Naturalmente que, com um tal ambiente social, um especialista da sexualidade ver-se-ia rapidamente falido. Fosse por isso, fosse por ter ficado eternamente zangado com a pátria ou, fosse, ainda, por se ter dado bem com os ares e as gentes da Suíça, Pablo nunca regressou em definitivo a Espanha. Na Suíça, os casais procuravam-no, aconselhavam-se com ele e pagavam-lhe bem. Talvez por ter um ar exótico, de tipo que não só estudou, mas é oriundo de onde se percebe de sexo, os serviços de Pablo são muito procurados. Seja no consultório, pelos casais, seja fora dele, pelas senhoras dos casais que lhe vêem no bronzeado natural da pele uma terapia e uma solução para os seus problemas matrimoniais. Vive só, mas faz-se acompanhar com frequência, continua a escrever sobre Espanha como se Franco ainda fosse vivo e estivesse no poder, desanca nos políticos e tenta educar os compatriotas incitando-os à revolução. Envia os textos a amigos que em Espanha os fazem publicar no El Pais. Estuda. Estuda sempre.. Investiga, teoriza e publica em revistas da especialidade médica e dá palestras em conferências e congressos e, à noite, pelo movimento no quarto de hotel que lhe reservaram percebe-se o sucesso dos seus discursos. Gosta do reconhecimento e do aplauso das colegas quando, depois da teoria, vêm em busca de um pouco de prática. Vive bem. Bom carro. Apartamento junto ao grande lago de Genebra, equipado com as modernices que um homem eternamente solteiro pode desejar, almoços e jantares onde gosta, com quem gosta. Era um pouco mais novo do que Kyle e por vezes recorda-o e chega mesmo a citá-lo quando se encontra com amigos comuns e relembram o tempo das tertúlias que após a morte do irlandês deixaram de acontecer, assim como que numa tácita manifestação de respeito pelo amigo que partira. O ritmo e a intensidade com que Pablo Sentido tem vivido andam fazendo seus estragos e ultimamente surpreende-se com frequência recusando convites para sair à noite, provocações para fins-de-semana movimentados e, por vezes, olha à sua volta, ao sábado à noite, e vê uma boa garrafa de vinho tinto aberta com um único copo de pé alto a fazer-lhe companhia, a lareira crepitando, um livro na mão e os Waterboys a chorarem In Search of a Rose. E o engraçado é que se sente confortável e não procura contrariar-se. E foi neste estado de mudança em curso que veio a reencontrá-la. Poder-se-ia dizer que mal se lembrava dela, mas seria uma falsidade. O brilho do olhar azul como o céu nunca lhe saíra da mente. Nem isso nem certo sorriso de atrevimento que ela por vezes deixava escapar.

Quando chegou o ano de dois mil e as televisões discutiam afincadamente se o século e o milénio estavam a mudar, tinham mudado no ano anterior, iriam mudar no próximo, ou nada disso interessava porque os calendários haviam sido trocados e as contagens mudadas, Madalena continuava a fazer sacrifícios. Vivia a sua vigésima sétima primavera, estudava de noite e trabalhava de dia num escritório de contabilidade, assumindo tarefas difíceis e responsabilidades sérias a preços módicos pois que, não obstante o gosto, a capacidade e a formação no liceu, faltava-lhe a habilitação superior e profissional que agora buscava. E, contudo, batalhava acreditando em dias melhores que rápido surgiriam. Seria atarefado e repleto de mudanças, este ano que pode ou não ter virado o milénio, mas que virou o destino de Madalena. Mariana vai fazer dez anos e Liberta nunca mais veio buscá-la. Madalena tomará uma decisão a esse respeito, dentro de semanas, para marcar a década. Jacob fará cinco anos e também em relação a ele, centro de quase todos os seus afetos, haverá que tomar decisões. Marcelle tem sido uma companheira e um lenitivo para a dureza da vida, mas a verdadeira e mais profunda mudança acontecerá dentro de dias quando reencontrar o homem que em tempos a inquietou.

Chegou cedo ao escritório, seriam umas oito e trinta, e ainda não se tinha acomodado na cadeira, à secretária, quando lhe atiraram um monte de papéis para cima da mesa:
– Toma. Trata deste cliente.
– Complicado?
– Porque perguntas?
– Costumam dar-me os complicados.
– É um médico que faz acompanhamento no hospital e tem um consultório próprio. A contabilidade não é complicada. Ele é que é difícil.
– Como assim?
– É um indisciplinado. Nunca aparece com os papéis e quando aparece tem uma pontaria tremenda para acertar nos papéis errados.
– Diagnóstico?
– Nada de especial. É espanhol!
– Espanhol? E isso é um defeito?
– Se é um defeito não sei, mas lá que o tipo não bate bem… é um desorganizado e também não é lá muito bem educado. Aqui no escritório, excetuando os homens, acho que já nos perguntou a todas se tínhamos feito sexo anal.
Madalena estremeceu. Aquela memória cinzenta, recalcada e escondida debaixo do sofrimento e do tempo, avivou-se. Seria possível? Pegou nos papéis, folheou as primeiras páginas e o nome lá estava: Pablo Sentido. Ela sorriu:
– Acho que se resolve…
– Estás sorrir?
– Estou.
– Conhece-lo.
– Mais ou menos. Digamos que noutra vida, há muito, muito tempo, ele me fez essa mesma pergunta.
– E tu?
– Bati-lhe com a porta na cara.
– E no entanto sorris…
– Sim. O tempo muda tudo. Este homem liga-me à pessoa mais querida que alguma vez conheci.
– Ok. Esquisito, mas se estás confortável…
– Não sei se estou. Os reencontros podem ser imprevisíveis. Vocês já o chamaram?
– Sim. Vem cá para a semana.
– Tudo bem, eu trato disto. Afinal de contas, ele é espanhol, eu sou portuguesa, para vocês é tudo o mesmo e darem-me este dossiê foi mera coincidência…
– Vá lá, não sejas assim. Por acaso não achas que pensámos isso…
– Se acho? Eu sei que pensaram isso!
– Madalena!
– Deixemo-nos de conversas. Eu trato do caso.

Pablo Sentido entrou no escritório, olhou em volta, fez juízos de valor precipitados sobre a decoração do espaço e nem parou para lançar um olhar atento à moça atrás da secretária. Essa ficaria para daqui a pouco. e, por não estar à espera de ser interpelado, foi surpreendido:
– Senhor Pablo Sentido?
– Sim, o próprio.
– O senhor já praticou sexo anal?

Foi numa conversa com Marcelle que a ideia tomou forma. Apesar da intimidade que as ligava, selada num beijo não repetido do qual nem sequer haviam falado, Madalena não se lembrara de conversar com Marcelle sobre a situação de Mariana de quem tomava conta por uns dias há dez anos. Era domingo. Estava um frio ensolarado e Marcelle oferecera um chá no Bistro’s. Madalena aceitou e durante a conversa animada e diversificada falou-lhe da intenção de fazer uma festinha surpresa a Mariana. Afinal de contas, dez anos é, naquela idade, a grande meta. Os dois algarismos. Uma espécie de superação para crianças que se julgam mais adultas porque já são precisos dois símbolos para escrever a sua idade. E falaram da festa, e Marcelle prontificou-se para ajudar e tiveram montes de ideias em conjunto e veio depois a falar-se da prenda:
– Não sei que lhe ofereça, Marcelle. Ela é tão menina, tão pequenina e, contudo, tão adulta. E… enfim, queria algo especial, mas tem de ser um especial que eu possa pagar.
– Porque não te ofereces a ti mesma?
– Como?
– Sim. Trata da adoção. Fala com a tua avó. Ela pode ver o que a tua irmã pensa disso e estou certa de que não se oporá. Seria uma hipocrisia. Tu criaste essa criança, ela chama-te mamã, deste-lhe todo o amor do mundo. Sê mãe dela por inteiro. Depois compramos-lhe um fiozinho de ouro com um pendente em forma de coração que se abre e fecha e tem lá dentro a tua foto de um lado e a data do nascimento dela do outro.
Madalena tinha os olhos brilhando de emoção e algumas lágrimas mais precipitadas vieram ver a luz do dia. Estendeu a mão para segurar a de Marcelle por cima da mesa:
– A tua ideia é perfeita. Como tu me entendes!
Cruzaram um olhar e saíram dali no carro de Marcelle para irem estudar um pouco em casa dela. Subiram. Marcelle abriu a porta. Madalena entrou. Marcelle segurou-a pela nuca, puxou-a para si e beijou-a longamente. Desta vez, sem surpresa. Madalena deixou-se ir e retribuiu o beijo terno e molhado. Com gestos inaugurais e prudentes foram-se acariciando, desvendando segredos, procurando o seu próprio prazer no prazer da outra. Tombaram as roupas, tombaram as mulheres desnudas no sofá, andaram mãos vagueando corpos e línguas incendiando desejos. Quando terminaram aquela dança, trocaram um último e apaixonado beijo. Não voltariam a fazê-lo, nem tão pouco a falar disso. Por vezes, a realidade tem pesos que as pessoas não suportam. Este era um assunto encerrado. Adormecido. Até que um homem inusitado o viesse acordar.

– Miúda?! Será possível que tu sejas tu? Como é possível?
– Sim, Pablo, eu sou eu.
– Dá cá um beijo!
E avançou para ela, puxou-a para si e beijou-lhe as faces com ruído. E abraçou-a. Um abraço longo. Demorado. Vamos interromper aqui o abraço. A ele voltaremos já. Pelo perfil de Pablo Sentido, pela sua história de vida e pelas circunstâncias que vive Madalena, será lícito que o leitor pense que o velho lobo vai atirar-se ao cordeirinho.  Desculpado está o leitor pelo juízo que fez, se o fez, porque o que vai passar-se é estranho, mas compreensível. Não será o lobo a atirar-se ao cordeirinho, será o cordeirinho a agarrar-se ao lobo. As razões, eles as explicarão um ao outro. Quando terminavam o abraço, que as coisas têm um tempo, mesmo quando não se conta o tempo delas, Pablo fez menção de separar-se de Madalena, mas ela não deixou. Agarrou-se muito a ele, fez-lhe uma festa na nuca e absorveu profundamente o odor do seu pescoço. E ali ficou, estreitando-o entre o seu peito e os seus braços, como se agarrasse uma bóia de salvação e se estivesse transportando numa máquina do tempo. Pablo percebeu. E, sendo perspicaz, sentiu necessidade de dizer-lhe o que a seguir se revela:
– Eu não sou ele, miúda.
– Eu sei…
– Escuta… eu não sou ele, nunca serei ele e provavelmente nem sou muito parecido com o teu irlandês teimoso. Eu tenho as minhas próprias virtudes, graças a Deus são poucas, e tenho os meus próprios e incontáveis defeitos. Eu conheci o velho Kyle, vivi e convivi com ele, éramos da mesma geração, muito amigos, mas nada mais. Nada há em mim igual ao teu Kyle…
– Há pois.
– O quê?
– O gosto por mulheres…
– Presunção tua!
– Não. O próprio Kyle dizia que tu só não avançavas para mim por eu ser a menina dele, mas ele reparava na forma como me olhavas.
– E que forma era essa?
– A do predador olhando a presa.
– Enganou-se o teu velhote.
– E porquê?
– Porque, por uma vez na minha vida, a presa fui eu…
Fez-se um silêncio profundo. O que era óbvio para ele, ela teve de interiorizar, processar, e só depois arriscou:
– Tu… tu gostavas de mim?
– Gostava, não…
– Pablo! Este tempo todo?
– Sim.
– E não disseste nada? Não me procuraste?
– Sabes, miúda, eu percebo muito de sexo, mais precisamente de sexualidade, mas entendo pouco de amor. Quando eras do Kyle, eras do Kyle, depois perdi-te o rasto porque me perdi a mim mesmo e era preciso dar-te tempo. O que querias? Que no fim do funeral do meu velho amigo te declarasse amor e te convidasse para viveres comigo?
– Pois… talvez não.
– Aí tens. Quanto a não te ter procurado, estou aqui, não estou?
– Quer dizer…
– Quer dizer que te encontrei através da tua avó e entreguei a contabilidade a estas idiotas a ver se te via, se me reconhecias.
– Como poderia não te reconhecer?
– Sei lá… o tempo faz coisas esquisitas.
Ela soltou-o e soltou-se dos braços dele:
– Deixa-me olhar-te, espanhol  revolucionário. Deixa-me ver como te encontras. Bem conservado!
– Por fora. E respondendo à tua pergunta: sim.
– Sim, o quê?
– Já pratiquei sexo anal.
– Parvo!
– Garota atrevida.
E abraçaram-se de novo. Um abraço mais curto. Só para confirmar e selar o reencontro.
– Então, estás com problemas com a papelada?
– Tal como no coração, está tudo desorganizado. E também já não sei se sou eu que não sei trazer o que estes tipos me pedem ou se eles não sabem pedir-me o que precisam.
– Tens isso onde?
– Parte aqui, parte no consultório e parte em casa. Aqui está o que me pediram. No consultório, as coisas do consultório e em casa os papéis do hospital e umas coisas que eu não sei bem onde pertencem, recibos e assim…
– Olha, que me dizes ao seguinte, eu organizo isto, um dia destes vou ao consultório e trago de lá o que for preciso e depois passo por tua casa e trago o resto. Daqui por um mês tenho isto organizado.
– Impossível!
– Vais ver.
– Se fizeres isso, dou-te um prémio…
– Pablo!
– Dinheiro, em dinheiro.
E largaram a rir. As visitas aconteceram, foram muito profissionais e, mais uma vez, Madalena resolveu um problema difícil. E foi quando tudo ficou pronto que ele a convidou para jantar. E no convite já se revelou o Pablo que ela conhecera em tempos. Duas flores, rosas encarnadas, e um cartão de visita e no cartão iam estas palavras: Vem buscar o teu prémio!
E o cartão, sendo um convite, soou-lhe a uma ordem. Assim como se Pablo exigisse que ela fosse reclamar o prémio. Não lhe dizia quando, não lhe dizia onde, não lhe dizia o que era e isso era o mais fácil de adivinhar, somente aquela frase, com aquele ponto de exclamação no fim e uma leve rubrica no canto inferior direito. Mas somos assim, nós, humanos, andamos nesta vida perguntando o que já sabemos, dizendo o que os outros já sabem, confirmando confirmações, quando, na verdade, já conhecemos a maioria das coisas que falta saber.
E Madalena sabia. Até nisso apreciou o bilhete. “Até”, escrevemos nós, porque, sendo curto, teve várias coisas de que ela gostou, o colorido das flores, a força da mensagem, como se o homem lhe segurasse na mão e a orientasse, e a sua singeleza. Poucas palavras, um universo de informação. Todo o excesso, todo o ruído cortado, anulado, e restava só um homem, uma mulher, um passado e uma ordem.

Madalena foi. Sexta-feira. Às vinte. Bateu-lhe à porta e foi maravilhoso aquilo a que assistiu. Pablo esperava-a. Com cenário.
– Como sabias?
– Sabia. Há coisas que sabemos e pronto. Sexta-feira era o dia das nossas tertúlias, quer dizer, mais ou menos, mas é também a entrada do fim-de-semana e da esperança que vem com ele, é a noite de todas as promessas.
– Podias ter-te enganado. Eu poderia ter vindo noutro dia… ou não ter vindo de todo.
– Mas vieste e isso muda tudo!
Pela casa ecoa a voz ímpar de Maria Callas chorando a área das áreas, a síntese da existência humana em música, Un bel di vedremo de Madame Butterfly, a peça que coloca Giacomo Puccini no coração de todos os amantes. Desde a porta até à sala e desta até ao quarto há velas pequeninas a boiar em pequenas tacinhas de água e há um perfume de flores, são pétalas espalhadas pelo chão, e na sala, onde se percebe uma mesa de centro junto a um jogo de sofás, há uma taça com uvas frescas. O perfume da música e o das pétalas, a luz única das velinhas a rebrilhar na água das tacinhas de cristal, tudo aquilo cria uma atmosfera inconfundível. Madalena quis complicar-lhe a vida, colocar-lhe uma pergunta difícil, entrou devagarinho, com o pescoço esticado como se estivesse espreitando antes de entrar em cada espaço, e estava na sala, junto à mesinha com as uvas, quando perguntou:
– És tu o meu prémio, Pablo?
– Não, Madalena, o teu prémio és tu!
E enquanto ela esboçava um sorriso semi-surpreso, Pablo aproximou-se, acariciou-a por cima da roupa, olhando-a nos olhos, beijando-a longamente enquanto as suas mãos iam despedindo peças da roupa dela, e estavam ainda de pé, frente a frente, salivando de desejo arfado, quando ele pegou num pequeno bago de uva e espalmou o fruto frio contra o sexo quente dela, a diferença de temperaturas fê-la estremecer, as pernas fraquejaram, Pablo deitou-a num sofá, trouxe o fruto esmagado para a sua boca e saboreou o sexo dela e trocaram as línguas e ela saboreou também. O fruto. O sexo.
Adormeceram com os corpos encostados e quando acordaram não se mexeram. Estava escuro, a luz das velas era menor, algumas haviam-se apagado, pressentiram a respiração um do outro mais ativa e falaram na escuridão:
– Pablo…
– Sim, miúda…
– Eu posso amar duas pessoas?
– Essa pergunta tem tantas respostas.
– Dá-me uma.
– Dou-te todas. Quer dizer, todas as que sei. Uma resposta é que tu podes amar quem quiseres, quando quiseres. Não há limites, sabes. Os limites são culturais, são invenções nossas…
– Somos nós que criamos os limites?
– Estranho, não é? Conhecemos o amor, queremos amar, apaixonamo-nos, sabemos o quanto isso é maravilhoso, mas depois limitamos isso a um número de pessoas, a uma circunstância… enfim, o importante é que saibas essa resposta. Ama quem quiseres, quem o teu coração te pedir para amar.
– Mas…
– Não há mas, há outra resposta e essa outra resposta é um pouco mais complexa, não tentes perceber logo, pensa no assunto e forma uma opinião quando entenderes que estás pronta para isso. É o seguinte, não confundas sexo com amor.
– Onde queres chegar?
– Quero chegar a dizer-te que o amor é mais exclusivo, exige tempo e dedicação, podes amar quem quiseres, quando quiseres, mas precisas ter muito cuidado porque facilmente quem ama se torna possessivo ou se magoa. A questão é que o processo envolve mais do que uma pessoa. Sempre. Não podes pensar que amas uma pessoa e geres isso sozinha. Quando amas uma pessoa, essa pessoa está implicada no teu universo, tem sentimentos e razões e direitos. Já o sexo é mais libertino. Pode decorrer do amor, mas pode também ser circunstancial. Desde que duas pessoas adultas estejam de acordo e consintam, tudo é válido.
– Estás a dizer que posso amar só uma pessoa, mas ter sexo com várias…
– Estou.
– Mas, assim, onde onde ficamos em relação aos tais sentimentos e razões e direitos da pessoa amada?
– Depende de quem amas, da relação que tens com a pessoa.
– Isso é muito confuso.
– Não é confuso, miúda, é complexo.
– É confuso! Onde é que se encontra uma pessoa assim?
– Aqui!
– Aqui? Que queres dizer? Que temos uma relação? Que vamos ter uma relação?
– Não. Estou a dizer que tenho mais uma resposta para a tua pergunta inicial…
– Qual?
– Ora, qual? Começaste por perguntar se podias amar duas pessoas…
– Ah, sim, isso… e…
– E se essa pergunta era sobre teres amado o Kyle e agora a mim, é importante, mesmo muito importante, que saibas que eu não sou o teu irlandês teimoso. Eu não sou o Kyle McKenzie. Partilhei a vida com ele, conversámos imenso, fomos amigos do coração, mas eu não sou ele. Sou diferente. Terei as minhas virtudes e tenho os meus defeitos, tenho os meus hábitos e os meus espaços. Amei-te muito naquela altura. Ainda amo. É uma paixão que não se apagou, só a sosseguei, mas entretanto cresci e criei as minhas rotinas. Não sei se vais perceber-me, Madalena, mas tenho de to dizer. Eu posso amar-te, posso cuidar de ti, dos miúdos, será uma alegria, mas eu não sou monógamo. Adoro sexo. Contigo. Mas não só contigo. Também contigo. E haverá alturas em que sairei numa viagem de trabalho e posso estar fora uma semana ou duas, ou mesmo um mês e dir-te-ei que vou sair, mas não quero mais perguntas sobre isso. E reconheço-te o direito de fazeres o mesmo. Acho isto mais saudável, mais honesto do que a mentira.
– E é. Mas eu não sei se consigo viver com isso. Tens de dar-me tempo para pensar. Amar-te e abrir mão de ti é esquisito.
– Sim, é. Mas é também a essência do amor. Amar é libertar. Se não for, não resultará.
– Se aceitar esse tipo de relação, será porque te amo muito. Tenho de perguntar ao meu coração.
– É importante que o faças.
– Só não quero uma coisa…
– Sim…
– Não quero saber nada delas e não quero mentiras.
– Isso são duas coisas. Não saberás. E este tipo de relacionamento anula a mentira à partida.
– Não sei, Pablo. Não estou tão certa assim…
– Pensa, miúda…
– Pensarei…
Pablo Sentido veio a ser a mais interessante, a mais longa e duradoura relação de Madalena com um homem. Ainda hoje se amam. Apesar da brecha que a mentira abriu.

Seguiu o conselho de Marcelle, pediu ajuda a Albertina, que falasse com Liberta, lhe dissesse que aquela situação não era para ninguém, ninguém aproveitava nada com aquela indefinição. Era ela que olhava pela menina, que lhe dava um teto e a alimentava, que a tratava na doença, que a levava à escola, que a acompanhava nos estudos, não fazia sentido estar a pedir-lhe que assinasse papéis para isto e para aquilo. Seria melhor que os assinasse de uma vez por todas e lhe concedesse a custódia da filha que, na realidade do dia-a-dia, dos afetos, das alegrias e dos aborrecimentos, era sua filha e não da outra que a parira. E, por favor, avó Bá, não leves uma eternidade, queria dar isso de presente à Mariana agora quando ela fizer dez aninhos e já só faltam uns meses. Vou ver o que posso fazer, filha, mas não fales da tua irmã como se te fosse uma pessoa distante ou indiferente. Vó Bá, sabes bem que não finjo o que sou ou sinto, ela é-me indiferente e distante. E selou a conversa com esta contundência. Estranhou, quinze dias depois, pela celeridade das notícias, quando Marcelle lhe disse que a avó queria falar com ela, que fosse lá a casa no sábado à tarde. E porque falou ela contigo? Porque tu teimas em não ter telefone! Telefone custa dinheiro, lembras-te? Sim, lembro, és uma teimosa, uma deliciosa teimosa. E tu és uma verdadeira amiga.

Estranhou que Albertina não fosse pura e simplesmente a sua casa e, como quem se defende, esteve quase para não ir a casa da avó nesse sábado, mas o olhar doce e bondoso de Marcelle não lhe saía da cabeça, e queria mesmo a custódia da menina, da sua filha, e foi e bateu à porta e viu o olhar comprometido de Albertina quando abriu a porta, assim como o cachorrinho que foi acima da mesa e sabe que não podia, e entrou e deu de caras com uma mesa posta de chá e biscoitos e numa cadeirinha, junto à mesa, Liberta sentada, de olhar húmido e culpado. Quis que falassem, avançou Albertina, vocês são irmãs, sangue do mesmo sangue que é o meu sangue também. Isto não se faz, avó Bá, esta mulher largou-me uma criança recém-nascida nos braços e nunca me disse nada ao longo de dez anos, que pode ter ela para me dizer agora? Desculpa! Posso pedir-te desculpa, e obrigado, posso dizer-te obrigado!
Quando ouviu estas palavras, Madalena estremeceu. A verdade crua que vinha nelas, a posição de total humildade e vulnerabilidade em que a irmã acabara de colocar-se, fizeram-na recuar na dureza. Que que queres tu de mim? Imagina que eu aceito as tuas desculpas e tomo por sincero o teu agradecimento, que queres de mim? Queres ser mãe a partir de agora? Vieste buscar a menina quando finalmente ta pedi? Não, Madalena, não… fui eu que a trouxe ao mundo, é minha filha por isso, será sempre, mas sei o que fiz e sei sobretudo o que tu fizeste por ela, que és a mãe dela de todos os dias, quero só que não me queiras mal, que me perdoes e abraces, que não haja ressentimento nem rancor… E queres ver a menina? Só quando tu quiseres, achares melhor, não te peço isso com condições, as condições serão as tuas. E assinas os papéis? Já assinei. Albertina foi buscá-los. Toma Madalena, estão aqui! Mas era suposto eu tratar dessa parte. Sim, mas eu tenho um amigo que vai muito lá ao Consulado e é advogado, pedi-lhe ajuda, está tudo aqui. E as despesas? Eu sou vossa avó, eu assumo essas despesas como bênção para esta mudança, para que seja feita em união. E o chá, está bom? Aqui em casa está sempre bom, sabes isso. Pois sei, serves-me um pouco? Claro. E quando se aproximou da mesinha, Liberta levantou-se, aproximou-se dela, abraçaram-se longamente e choraram as lágrimas da resiliência. Quando recuperou da emoção, Madalena olhou Liberta e disse-lhe, Vem ao aniversário dela, Tia Liberta!

Marcelle organizou tudo. Enfim, quase tudo. Pagou tudo. Enfim, quase tudo. Na véspera, Mariana foi para casa de Albertina a propósito de uma desculpa qualquer, a mais verosímil que se encontrou e Marcelle encheu a casa de Madalena de balões, de bandeirinhas suspensas de um cordel a atravessar a sala, fez doces, comprou doces, sumos, copos e pratos descartáveis, trouxe música apropriada e deu um ar festivo e feliz ao apartamento. Era uma festa. Era uma menina que fazia dez anos. Sem que Mariana soubesse, convidaram-se alguns coleguinhas da escola. Ao fim do dia, exaustas de culinária e preparativos, Madalena e Marcelle tombaram na cama anichadas uma na outra, e dormiram. Só isso. O sono dos afetos.

As crianças sabem tudo. E nós, adultos, temos a arrogância de presumir o contrário. Sabem o que lhes dizemos, sabem o que não lhes dizemos e sabem o que pressentem. Liberta aproximou-se de Mariana e disse, Olá, sou a tia Liberta, estás muito crescida. A menina olhou para ela, viu-se nela, os traços, o tom de voz, o olhar, o odor, e sentiu. Sentiu que aquela tia emocionada por vê-la lhe era mais próxima do que lhe tinham dito. Mas ficou-se com os seus pensamentos. Olá, és minha tia porquê? Porque sou mana da tua mamã. Mas a mana dela já morreu. Outra mana. Ah, e vives perto de nós? Não, vivo um bocadinho longe. Onde? Em Zurique. Sei bem onde é, posso mostrar-te no mapa, não é assim tão longe. É um bocadinho. E pouco mais disseram e mais não era preciso. Era dia de crianças e não de adultos e muito menos de acertos de contas com a vida. A festinha foi um sucesso e já todos tinham ido embora, deixando para trás os despojos do dia, Albertina lavava loiças, Marcelle limpava mesas, quando Madalena foi ter com a menina e lhe deu o seu presente. Era um coraçãozinho em ouro, pendurado num fio, abria-se e lá dentro, numa das metades, estava uma foto de Madalena e na outra a palavra Mamã. A menina olhou e percebeu. Pendurou-se no pescoço de Madalena e disse-lhe:
– T’ inquete pas, maman. Tu seras toujours ma maman!
Sem mais palavras nem gestos que excessivos seriam umas e outros se selou a relação. A vida começara a encontrar o trilho do entendimento.

Ela está na beira da estrada. Saia curta. Casaco de plumas esvoaçantes, feito de materiais baratos, por cima de uma blusa colada ao corpo com os mamilos espetados do frio a exibirem a sua firmeza, saltos altos, uma mala pendurada num braço, excesso de maquilhagem na face. A pose, o aspeto e a estrada não enganam. Puro preconceito. Forte excitação. Ele vem conduzindo um carro desportivo, aspeto distinto, calças de fazenda, camisa branca e um casaco de malha. Rola tranquilo engolindo asfalto e antecipa o momento. As mulheres na beira da estrada não estão juntas. Uma aqui, outra mais à frente e depois outra. Até que a viu. Aproximou-se dela. Abrandou a marcha, parou, abriu o vidro e esticou o pescoço para o exterior. Qual é o teu preço? Depende. Depende de quê? Do que queres. Nada de mais, vamos dar uma volta. Sim, mas queres ir para tua casa, para um hotel? Nada disso, quero aqui no carro, em movimento, enquanto conduzo. Olha, querem ver que me calhou um daqueles esquisitos, a menos que te queiras matar pela serra abaixo, em movimento não faço mais do que um broche. Seja, demora-te, fá-lo bem feito. Isso vai custar-te 30. 30? Não costuma ser 20? 20 é sem o fator risco. Entra! Paga! Ele pagou. Ela entrou e debruçou-se de imediato sobre o ventre dele, abriu o fecho das calças e começou a fazer aquilo para que tinha sido paga. Quando terminou, ele ainda se contorcia no carro que havia desenhado uns justificados esses no emaranhado de curvas que desciam a serra para Genebra. Só então Pablo Sentido voltou a falar, já ela se recostava no assento.
– De quem és tu?
– Sou tua, mestre.

Olhando a vida com atenção, como se o leitor estivesse lá no alto das nuvens e se viesse aproximando vendo cada vez mais perto a Terra que habitamos e depois um continente e um país e uma cidade e um bairro e uma rua e uma casa e as pessoas nela e se, durante esse percurso, pudesse o leitor aperceber-se da vida das pessoas, haveria de reparar que no Universo não temos senão um problema, não nos resta senão uma solução. Tudo o resto são derivações e variações desta crua realidade. O problema são os desequilíbrios. A solução são os equilíbrios. E a vida, a vida vivida, o fluir dos dias, com preocupações, esperanças, tristezas, alegrias, lágrimas e risos, não é mais do que o caminho entre um e outro. A busca do equilíbrio partindo do desequilíbrio. O que é uma doença senão um desequilíbrio, o que é um problema em família, no trabalho, numa viagem, numa repartição de finanças, num supermercado, senão um desequilíbrio? O que é uma derrota senão um desequilíbrio? E onde reside a cura para todas estas enfermidades do corpo e da mente? Na busca do equilíbrio. A busca em si é a terapia para atingir a cura que se alcança uma vez equilibrada a circunstância. Ora, por improvável que fosse, a relação de Pablo Sentido e Madalena resultou porque encontraram os amantes esse equilíbrio. Surgiu natural, quase sem esforço, ainda que com algumas reservas, e floresceu. Equilibrou-se a experiência da idade dele com a juventude dela. Equilibrou-se a ousadia do experimentalismo dele com a vontade de aprender dela e ampararam-se ambos no prazer da descoberta, no prazer encontrado na forma despudorada com que desafiavam as fronteiras. Todas. As da mente. E as do corpo. E assim, de improvável, o casal veio a ser harmonioso. Pablo Sentido recebeu-a como se recebe um convidado, mostrou-lhe a casa, disse-lhe onde estavam as coisas. Eu conheço a casa, disse ela tentando poupá-lo ao trabalho. Sim, conheces, mas agora vens para cá viver e eu tenho de mostrar-te todos os segredos e encaminhou-a, mostrou-lhe onde ficariam os miúdos, preparara um quarto só para eles e criara um espaço no escritório para que Madalena pudesse trabalhar ou estudar. Olha pus aqui uma secretária mais, afinal tenho de garantir que tenhas condições para me fazer a contabilidade, e beijou-a na testa. Apresentou-lhe a empregada e mais do que tudo, e isso não revelou, estabeleceu que seria um pai para os miúdos, em particular para Jacob, que lhe parecia muito tímido. E assim começaram uma vida titubeante que viria a consolidar-se e a criar horizontes de expectabilidade e rotinas de confiança para que pudessem os convidados dizer, Esta casa onde nos recebeste é agora nossa, e pudesse ele replicar, Esta casa onde vos recebi é agora vossa. O quotidiano com Pablo Sentido era imprevisível. O espanhol acreditava em quebrar rotinas. Por vezes, ao final do dia, muitas vezes ao fim-de-semana, Pablo aparecia com programas, ideias para passeios, visitas, idas a museus e ao teatro, ao cinema, um fim de tarde a ouvir jazz. Os planos dele, ora envolviam a família toda, incluindo Albertina, ora fugia com Madalena por dois ou três dias, iam ver as montanhas, o campo, uma cidade, um concerto, apanhavam um avião e iam ver o mar e iam, sempre, sendo sempre todas as vezes que queriam, que sorriam um para o outro e a oportunidade se apresentava, fazer sexo. Neste casal, eventualmente mais do que em qualquer outro que conhecemos, o sexo era uma linha condutora do seu relacionamento. Ele explorava a curiosidade dela e ela a experiência dele e ambos tinham a vertigem da descobrir, de fazer o que ainda não fora feito, de experimentar o inusitado, de percorrer as experiências mais ousadas e incomuns como uma via sacra da descoberta do sexo, de testar os limites individuais e os do casal. Ele propunha-lhe tarefas, desafios que ela aceitava realizando os desejos dele, mas ia sempre mais longe para o surpreender e o forçar aos jogos dela. Certo dia, Pablo comprou-lhe um telemóvel, tinha uma antena fininha de lado que se recolhia e esticava e nesse mesmo dia, para estreá-lo, ele enviou-lhe uma mensagem, Hoje, antes de saíres do trabalho, vai à casa-de-banho e tira as cuecas. Vou buscar-te de carro. Pablo passou o dia excitado com a perspetiva de a reencontrar e confirmar se ela havia cumprido. Ela entrou no carro e ele ordenou, Recosta-te! E ela recostou-se. Acaricia-te! E ela abriu ligeiramente as pernas para que ele visse o que queria e acariciou-se. Enquanto conduzia, ele estendeu uma mão para o sexo dela e ajudou-a no labor desenfreado de excitar-se.
Outra vez, trocaram uma bizarra sequência de mensagens:
– Olá miúda!
– Olá velhote.
– Pega num pequeno retângulo de papel…
– Já está…
– Escreve o meu nome…
– Já está…
– Coloca-o…
– Pablo!
– É uma ordem!
À noite, quando chegaram a casa, ele fechou-a no quarto, encostou-a a uma parede, puxou-lhe as calças para baixo, arrancou-lhe as cuecas com um puxão seco e firme, acariciou-a e por entre as carícias foi buscar o papel. Quando terminaram, Pablo falou, Hoje passei o dia dentro de ti! Pois passaste!
Um dia, Madalena fez uma compra pela Internet. Quando a encomenda chegou, colocou a caixa em cima da cama, do lado dele, e esperou que Pablo chegasse a casa. À noite, quando foram para o quarto, Pablo perguntou, O que é isto? É um presente da tua miúda. O espanhol abriu o embrulho com um sorriso desconfiado no rosto. Quando acabou de abrir o presente, tinha nas mãos um pénis em silicone com umas correias em cabedal que serviam para o colocar à cintura. O espanhol estranhou:
– Miúda, eu já tenho um destes!
– Sim, mas hoje sou eu o homem da cama!
– Hã?!
– Algum problema?
– Não. Nenhum.
E enquanto o possuía de quatro e o presenteava com umas palmadas no rabo, ordenou-lhe:
– A partir de hoje, na cama, chamas-me sluty.
– Em inglês?
– Em inglês!
– Sim, sluty!
Pouco depois, posições trocadas, ela de quatro, ele possuindo-a ao ritmo das palmadas que lhe marcavam as nádegas com o recorte dos dedos dele, foi ele quem exigiu:
– A partir de hoje, na cama, chamas-me mestre.
– Sim, mestre!
Eram dois corpos inquietos à procura um do outro, ele, de a desbravar, ela, de o aprender. E eram duas almas atormentadas que se encontraram e se faziam companhia. Ele, procurando fintar a idade e fugir à solidão. Ela, procurando esquecer o passado e libertar-se da dor.

Mariana era uma menina alegre e ativa. Criara com Madalena uma profunda cumplicidade e percebera que o espanhol viera para ficar. E estava feliz com isso. As crianças sabem coisas que não revelam e desconhecem donde vêm. Mariana sabia que Jacob precisava de Pablo. Também ela precisaria dele, do tom quente da voz, da mão aberta a despenteá-la quando chegava do trabalho e lhe dizia, Como está a menina mais linda do mundo? Mariana gostava, sobretudo, de quando a mamã tirava a mesa do jantar, deixava ficar a toalha e aparecia com um pratinho com tostas e um frasco de mel ao lado para Pablo continuar a mordiscar e ela se sentava no joelho dele e faziam os trabalhos de casa juntos.
– Hoje temos trabalho?
– Hum, hum…
– Então vamos trabalhar, vamos fazer de ti a melhor aluna do mundo.
Com Jacob era diferente. Era um menino meigo e sorridente e absolutamente tranquilo. Era capaz de ficar uma eternidade a brincar com as mesmas quatro peças de Lego, aqueles cubos largos com que se começa, antes de entrar no intrincado universo das peças pequeninas, ou então, a folhear um livro com ilustrações vezes e vezes sem conta, ou a ver televisão e a conversar qualquer coisa imprecisa com as personagens coloridas dos desenhos animados. Um domingo de manhã, com Madalena deitada a seu lado, a cabeça no ombro de Pablo, o espanhol arriscou:
– Tu sabes que o Jacob é especial, não sabes?
– Claro que sei. É o meu menino, o meu mundo, a minha razão de viver.
– Não é isso que quero dizer, isso também é verdade, mas o que quero dizer é que ele é especial…
– Não estás a fazer muito sentido, velhote. A idade ataca-te mais na cabeça do que no resto do corpo…
– Ouve com atenção. Eu não sou médico. Enfim, sou, formei-me, mas estou há tantos anos a trabalhar na sexologia que não sei curar uma constipação, mas… há coisas que não se esquecem…
Fez uma pausa. Percebeu pelo silêncio dela que podia continuar.
– Ele é um miúdo tranquilo e pode ser só isso, mas devias consultar um médico. O pediatra nunca te disse nada?
– Pediatra? Ele nunca foi ao pediatra. Isso custa dinheiro. Sabes o que é dinheiro, não sabes? Mas estás a assustar-me…
– Não te assustes, pode ser só uma parvoíce minha, mas leva-o a um pediatra.
– Mas o que vês tu? Diz-me! Estás mesmo a assustar-me?
– Não te assustes, ele está bem. Mas convém verificar… os reflexos dele… aquela tranquilidade toda… já reparaste que ele aprende pequenas coisas que depois tem de aprender outra vez?
– E não somos todos assim?
– Não. Não naquela idade.

Deus está sempre presente. Nos dias de sol e nos de chuva também. E às vezes manda-nos a chuva para que apreciemos melhor o sol. São insondáveis os desígnios do Criador. Pablo tinha sido um sol brilhante e quente a iluminar os dias de Madalena e a trazer-lhes felicidade e, contudo, atrás do sol viera uma nuvem sombria. No dia seguinte, com o coração a bater forte, a querer saltar-lhe do peito, Madalena olhou o menino longamente, repetidamente, e só via o amor que lhe tinha, só via que dependia dele para tudo, só via que uma inocente criança de cinco anos comandava a sua vida. Olhou sob todos os ângulos e perspetivas e não viu nada a não ser um amor infinito. E quando saiu para consultar o pediatra a quem Pablo Sentido telefonara, um amigo de profissão que a atenderia nesse mesmo dia, levava consigo uma única certeza. Trouxesse de lá as notícias que trouxesse, o amor por Jacob sairia intacto pois ele era a sua vida, o seu sopro. Nada poderia alterar isso. Nada iria alterar isso. E não alteraria, sabemo-lo nós, mas sabemos também que Pablo vira bem. Jacob, mais do que nunca, precisaria das forças de Madalena. Deus não dá, nem tira. Dispõe! E a nós, vulneráveis humanos, cabe-nos amar e viver com dignidade aceitando e encarando as suas determinações. Madalena tinha uma arma a seu favor. Poderia não saber nada de muitas coisas, mas sabia amar infinitamente e isso era tudo quanto precisava saber.

—————————- jpv —————————-


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Citação da Fome

96540-supermarket-scene
“O setôr parece que engoliu a Internet e uma biblioteca!”

LS


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Crónicas de África – Coisas do Quotidiano (2)

crónicas de áfrica - african chroniclesCrónicas de África – Coisas do Quotidiano (2)

Há pormenores sobremaneira interessantes e curiosos nesta vida africana em Maputo. O encanto dos primeiros dias mantém-se, acontece que agora está filtrado pela experiência e algumas coisas que nos poderiam incomodar ou fazer gastar energias são encaradas à maneira africana: não queiras consertar o mundo, resolve o teu problema do momento. Este tipo de atitude tem de se aprender e interiorizar caso contrário andaremos quixotescamente a demandar moinhos metamorfoseados.

O que se passa é que esta Crónica de África tanto poderia chamar-se Coisas do Quotidiano (2), como Problemas de Bricolage, ou ainda A Casa Assombrada. Qualquer um deles assentaria que nem uma luva dependendo da perspetiva por que optarmos. Em nome do pragmatismo blogueiro, escolhi o primeiro. Mas admito que prefiram outros umas vez lidas as linhas que se seguem.

Nós gostamos da nossa casa. Tem muito boas condições. Cozinha nova, casa-de-banho nova, chão impecável, bons espaços, bom estado geral, excelente varanda, garagem, água e luz regulares, bairro seguro. Um tanto cara, mas há opções que é preciso fazer… Tenho mesmo para mim, porque andei visitando casas anunciadas e verificando o seu estado, o que tinham para oferecer e os preços, que esta casa é um oásis em certo deserto… Ainda assim, para quem possa pensar que viver no estrangeiro é pera doce, aqui ficam alguns pormenores que, num passado recente, nos têm assombrado o quotidiano… em casa!

Tomadas
Na sala, há duas tomadas de energia elétrica. Estão em paredes diferentes, vêm em cabos diferentes do mesmo quadro. Uma está na parede da televisão atrás de um móvel e outra atrás de um sofá. Aqui há uns tempos, a televisão e tudo o que estava ligado a essa tomada, desligou-se. Verifiquei, limpei, desinstalei, voltei a instalar e nada. À boa maneira africana, deixei ficar. Que se lixe! pensei. Há de voltar. E voltou. Dois dias depois. Azar dos azares, mais dois dias volvidos e voltou a pifar. Acontece que, quando os fenómenos se repetem, nós tendemos a procurar aquilo que está igual e aquilo que está diferente. Ora, o que estava igual é que sempre que a tomada da televisão deixava de funcionar era porque tínhamos algo ligado à tomada que está atrás do sofá! Medo! Muito medo. Se for um telemóvel a carregar na tomada atrás do sofá, tudo normal. Se for o router da net, tudo normal. Mais do que isso, mesmo dois simples telemóveis a carregar e a televisão e toda a parafernália que está na tomada do outro lado da sala despedem-se e não voltam mais… Das duas uma, ou chamo um exorcista ou um eletricista! Sendo que em Maputo a diferença entre estes cavalheiros está muito esbatida! Não acreditam? Uma vez veio cá a casa uma pessoa que mandou fazer um furo na parede sabendo-se que estava um cabo nesse local. Ele olhou o homem do berbequim e disse, Tem fé! Fura! Por Alá! O outro furou e não aconteceu nada. Ele apressou-se a dar uma gargalhada, olhou o outro com ar incrédulo e disse-lhe, A Fé faz milagres!

A Lâmpada Que Geme
A lâmpada do meu escritório geme! Não, não são os vizinhos de cima que aquilo é tudo gente tranquila e educada em quem se pode confiar, é mesmo a lâmpada que geme. Primeiro, começou por ser um leve ruído. Depois um zumbido e agora é um inequívoco gemido como se alguém se estivesse a queixar das dores do reumático…

Quebra Parcial
Um dia destes faltou a luz. Um daqueles fenómenos em que as luzes todas se apagam e no instante seguinte retomam o seu normal funcionamento. Claro que obriga a acertar os relógios digitais e a ligar de novo a Tv e a net, mas não é nada do outro mundo. O que já não me parece tanto deste mundo é o que me aconteceu no sábado passado. Faltou a luz por momentos e logo, logo, voltou, mas… foi só nas lâmpadas! Os eletrodomésticos ficaram incólumes à quebra! Vantagem: não foi preciso acertar relógios digitais!

Só ao Pontapé!
Tenho um candeeiro no meu quarto que é teimoso. Uns dias acende. Outros não. A ficha tripla que está no chão deve ser a causadora. Já a limpei, abri, endireitei os condutores, e ela volta ao mesmo. Ora jorra luz, ora apaga-se. Mas descobri mais. Sempre que lá vou tratar dela com carinho, ela fica indecisa. Umas vezes funciona, outras não. Se lá chego e lhe espeto um pontapé, funciona sempre. Há coisas que não dá para entender. Mas se funciona assim, tomei uma decisão, ligo sempre o candeeiro antes de me descalçar. Leva o pontapezinho da ordem e fica a funcionar às mil maravilhas…

Fogo de Artifício
Já aconteceu cá em casa algo de muito curioso e até com certa aura transcendental. Na cozinha, por ser grande, há duas lâmpadas. Uma cá, ao pé da porta. Outra lá, ao pé do lava-loiças. Acendem num interruptor, cá, ao pé da porta, que tem dois botões, um para cada lâmpada. Aqui há uns meses, ao acender a lâmpada de lá, aquilo deu um estoiro, largou uma carrada de faíscas que iluminaram a cozinha e se precipitaram para o chão e ficou um leve cheiro a queimado. Como é o tipo de coisa que pede por um eletricista e os tetos aqui têm cerca de três metros de altura, pensei para comigo: Ou compras um escadote e arranjas tu, ou chamas um eletricista. Chamar o eletricista é capaz de não ser grande ideia porque a primeira coisa que ele vai dizer é Boss, por acaso não tens aí um escadote? É que eu preciso subir… Enquanto me decidia sobre que curso de ação seguir, deixei bem claro cá em casa que não se podia acender a lâmpada de lá! Mas, passados uns dias, fui eu mesmo que me esqueci e quando precisei de acender a lâmpada de lá, pressionei o botão do interruptor e a lâmpada… acendeu! Eu nem reparei. Mas a Paula reparou. Entrou na cozinha e perguntou, Então essa lâmpada já acende? Pelos vistos, já. Respondi e fiquei a olhar para ela. É que eu vi claramente visto com estes dois que a terra há de comer aquilo tudo a arder! Funciona? Esquece, ’tá resolvido!

Enganam-se!
As pessoas que estão a ler esta crónica, sobretudo os homens, mais sobretudo se não viverem em África, já estão com a ideia arrogante de que eu preciso é de um eletricista. Enganam-se. O meu quadro foi todo revisto e estabilizado e a minha instalação foi parcialmente substituída por cabos novinhos em folha… isto são fenómenos próprios de um continente onde tudo tem mais força, até mesmo aquilo que não compreendemos. Não se luta contra, não se tenta consertar África. Mergulhamos em África, deixamos que África tome conta de nós e vivemos em África como se vive em África. Deliciosamente despreocupados com essas coisas menores! Quem é que pode deixar de ser feliz porque não percebe como é que uma lâmpada que ardeu funciona na perfeição, melhor do que uma ficha tripla acabada de comprar? Ninguém! A felicidade, em África, não passa por aí!

A Máquina Andante
A minha máquina de lavar roupa anda! Anda para a frente. Já foi calibrada, recalibrada, ajeitada, inclinada, presa com um cordel e calibrada outra vez, o chão já foi nivelado e até já a ameacei que lhe dava dois murros no tampo. Nada resultou. Anda sempre para a frente cerca de vinte centímetros e quando está mesmo para cair da plataforma de betão onde está empoleirada, pára! Simples. Se não chega a cair, não constitui problema. Empurra-se para trás e pronto.

O Milagre da Chuva no Duche
Quando aluguei a casa, fiquei feliz porque além do chuveiro de mão, tinha um chuveiro de parede, daqueles que a gente se põe lá de baixo e a água jorra avonde e toma-se uns duches muito retemperadores. Acontece que nunca consegui rodar as torneiras desse chuveiro. Tentei desmontá-las e nada. Tentei rodá-las vezes sem fim e nada. Usei chaves para as rodar e nada. Nem a água fria, nem a quente. Era um desconsolo. Um tipo ia para a banheira e tinha de agarrar no chuveiro de mão com o outro ali ao lado a fazer negaças. E fui tentando ao longo de vários meses até desistir por exaustão. Um ano e meio depois de estar na casa, num dia em que nem sequer ia tomar banho, fui só lavar os dentes e pensei, Já para aí há um ano que não marro contigo, deixa cá ver… e rodei devagarinho, com a força que até uma criança de cinco anos consegue fazer. E ela nem gemeu, nem ofereceu resistência. Abriu-se e choveu água fria. Tentei na da quente e o milagre repetiu-se. De lá para cá, tenho tomado banho mais assiduamente para aproveitar não vão um dia destes as torneiras fartarem-se e voltarem à primeira forma…

Televisão Seletiva
A televisão anda muito seletiva ultimamente. Só dá som nos canais que lhe apetece. Não, não é nada com os cabos. Já tirei os cabos, já revi os cabos, já reinstalei os cabos e acontece sempre o mesmo. Há dias em que o som é geral, ouve-se tudo cristalinamente em todos os canais. E tem dias em que o som é seletivo. Alguns canais são sonoros, outros são mudos. A imagem? Hehehe… a imagem é perfeita em todos! Não, nem pensem que vou gastar energias a arranjar. Um dia destes volta tudo pelo mesmo caminho que foi. Ou por outro. Isso importa pouco!

Net Intermitente
Se tiverem oportunidade de ler esta crónica, é porque correu tudo bem com a net que ultimamente anda meio… como é que é aquele nome técnico? Ah, já sei, manhosa! As páginas não carregam. E lá aparece aquela coisa do “Ups! A sua página não carregou!” e eu a pensar, É preciso ser estúpido para escrever esta mensagem, se a página carregasse, eu tinha notado! Pensei ter um problema no browser e experimentei outros, o FireFox e o Internet Explorer, mas o resultado foi igual. Descobri entretanto que, se refrescasse a página – tecla F5 – elas recarregavam na perfeição. E pronto, fui ser feliz até esta coisa ir abaixo de vez.

P’ra Acabar…
Se estes fenómenos me incomodam? Nem um bocadinho. Danço ao som da música. Vivo com o que Deus me dá e os homens me deixam ter. Contorno algumas situações e só dou importância ao que for verdadeiramente grave. África tem este efeito interessante, por nos tornarmos menos seletivos com as pequenas coisas, aquelas com que gastamos energias desnecessariamente, tornamo-nos mais seletivos em relação àquilo que realmente interessa na nossa vida. África ensina-nos a apartar a nuvem e ir diretos a Juno. Acho, perdoem-me o erro de raciocínio, se o houver, que África nos torna, em termos comportamentais e reflexivos, mais puros, mais objetivos, mais próximos de nós próprios. África despe-nos de muita coisa que não interessa e ao mostrar-nos as nossas fraquezas desnudas, fortalece-nos!

jpv


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Citação do Amor

bíblia coríntios
“O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. “

Coríntios 13:4


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O Efeito Linus Van Pelt

t-shirt jpvideira mpmi

O Efeito Linus Van Pelt

Lembram-se do Charlie Brown? Devem lembrar. Mas, se não lembrarem, pelo menos, lembram-se do Snoopy que era o cão do Charlie Brown… Pronto, se já se lembraram deles, agora esqueçam. Eu nunca gostei particularmente da banda desenhada ‘Peanuts’ do Charles Schulz, mas as coisas são como são e eu acabava sempre a ler mais um livrinho ou a ver mais um episódio da série animada e a razão era simples, chamava-se Linus Van Pelt. Também conhecido só por Linus, era o melhor amigo de Charlie Brown e de longe, mas mesmo de muito longe, mais interessante que o Charlie ou o cão estúpido-teimoso-arrogante-domesticador-de-humanos-com-a-mania-que-tem-piada, o tal do Snoopy.

linus-van-pelt-charlie-brown-snoopy

Linus era equilibrado, tinha uma visão racional das situações, não se deixava levar pelas parvoíces do Charlie Brown, enfim, às vezes deixava, era inteligente e, sobretudo, era uma personagem mesmo interessante, de bem consigo, sem grandes dilemas interiores, nem dúvidas em relação às suas opções. Nada ao meu alcance, portanto. Ainda assim, havia um aspeto que me fascinava mais do que todos os outros: Linus tinha um cobertor que levava para todo o lado. Nunca achei a ideia muito higiénica, mas sempre pensei que ter um amigo constante, fofinho, a quem confessamos os nossos segredos, pedimos conselhos, desabafamos e que, em última análise, também serve para limpar as mãos, era muitíssimo reconfortante. Talvez por isso, sempre quis ter um cobertor como o do Linus, mas a vida nunca mo trouxe. Quando comecei a namorar, deixei-me de parvoíces e atirei-me às raparigas. Boa jogada, o tempo veio a provar. Mas o tempo passa. A vida adquire novas cores e perspetivas e já ia com trinta e muitos, quando comprei uma t-shirt, a da foto, propositadamente tremida para não verem o estado em que está, que se viria a revelar uma das melhores aquisições da minha vida. Foi há mais de dez anos e nunca me lembro da t-shirt alguma vez ter sido nova. Pouco depois de a comprar, sofreu um pequeno, quase impercetível, rasgão que a impede de ser uma t-shirt de sair à rua. Não poderia ter vindo mais a calhar, o rasgão. É que a t-shirt tinha e, passados todos estes anos, ainda tem, um toque suavíssimo, um tamanho perfeito, um cair delicioso, um vestir super-hiper-mega-confortável. E assim, meu Deus, o que vou escrever a seguir, estragará o que resta da minha reputação, transformei-a na minha t-shirt Linus Van Pelt. Serve para ler, para dormir, para ver televisão no sofá, sobretudo se estiver a dar o Benfica, para arrumar a casa, para escrever, para cozinhar, para lavar o carro, para ir à praia e proteger do sol, para fazer bricolages e, quando há tempo, é perfeita para fazer nada com uma chávena de café quente na mão. E só não saio à rua com ela para ir comprar o pão ou fazer uma investida ao supermercado porque a minha mulher proibiu-me de o fazer. Aliás, cá em casa, a minha t-shirt Linus Van Pelt tem uma ameaça pendente: já várias vezes lhe foi sentenciada a pena de ir parar ao caixote do lixo. O funesto evento só ainda não aconteceu porque eu me comprometi a enfiá-la na máquina com frequência e porque, quando a visto, além de irresistível, devo ficar com ar de inigualável felicidade.

A verdade é que quando visto a minha t-shirt, abate-se sobre mim o efeito Linus Van Pelt. Fico tranquilo, feliz, equilibrado, de bem com a vida. E só escrevo estas linhas porque quero homenageá-la! Pois, devo estar mesmo mal, é do cansaço! Já vou na fase de homenagear peças de roupa. Sinto-me subitamente feliz e realizado, sinto-me confortável e bem enquadrado no Universo. Quando visto aquela t-shirt sinto-me em casa onde quer que esteja. Não se estranhe por isso que, com limite de peso na bagagem e tanta coisa para trazer, quando vim para Moçambique, há dois anos, a primeira coisa a fazer, foi guardar um espacinho na mala para minha t-shirt Linus Van Pelt.

jpv


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Satisfaz… Pouco!

satisfaz - satisfactionSatisfaz… Pouco!

O teste da foto foi classificado com Satisfaz!

Com Satisfaz Pouco ficou classificado o meu domingo, inteiramente dedicado à correção de testes de avaliação. A empreitada começou pelas sete da manhã, intervalou para um breve frango no Piri-Piri, e continuou tarde dentro até ser noite. Entre testes e fichas, corrigi cerca de oitenta documentos de avaliação!

Agora ia dormir… mas fiz uma promessa de trabalho e vou cumpri-la!

Se eu podia passar um domingo sem corrigir testes? Podia! 🙂

jpv