Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Dentro da Pegada

Na areia da praia deserta
Ficou a sombra da pegada.
Onde estava uma porta aberta,
Jaz, inerte, uma porta fechada.

No côncavo da areia pisada
Ficou o bater de meu coração,
E lá vive a memória apagada
Do pé que marcou o chão.

Nas palavras não trocadas
E naquelas que troquei
Deixei abandonadas
As pegadas que desenhei.

Dói mais a dor ausente
Quando o sangue brota e corre.
Se for coração de gente,
A solidão dói mais
Do que quando a gente morre.

jpv


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A Tatuagem do Caminhante

Uma voz interior
Acorda um clamor
Dentro do peito exangue.
Uma ave corta o céu
No azul que brilha sobre a mão.
Informes, as nuvens
Desenham futuros em vão.

É uma planície
E é um terreno acidentado
E montanhoso.
É um jovem fogoso
E um velho decrépito a morrer.
E não sabe o velho porque não viveu,
Não sabe o jovem porque não vai viver.
É uma dúvida nua
Cravada no pensamento.
E ter o tempo todo
E gastá-lo como se não houvera mais tempo.
É uma coisa indizível
Sem palavras para a desenhar.
E é outra coisa, igualmente perecível,
Com todos os verbos no lugar.
É um rebentamento devastador
E uma música dolente
No horizonte distante.
É um homem-estátua
Rindo-se do caminhante.

A voz é agora um grito
E o pássaro livre procura, aflito,
Onde emudecer sossegado.
É uma estrada de terra vermelha
Tomando conta do chão macadamizado.
E o caminhante passa descalço,
Pés rasgados a arder,
Continua a rir-se o homem-estátua,
Inerte e imutável, sem Saber
E sem ignorância também.
Ri-se com desdém do desdém
Do olhar azul e altivo
Do caminhante só e cativo
De si e do Conhecimento.

Calou-se a voz interior.
Desfez-se o terreno acidentado.
Morreu o jovem ignaro
E foi a sepultar o velho abandonado.
Não há, já, dúvida,
Nem palavras para a vestir.
Não há música,
Nem homem-estátua a rir.
Só a estrada,
Um cavalo alado que dança,
O asfalto fervente,
A imensidão do vazio
E a linha magra e infinita
Na frente do caminhante
Que sorri de esperança.

jpv


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Poeta sem Palavras

Falta contar
A história do poeta
Que perdeu as palavras
Quando a forma
Do teu corpo
Abandonou o desenho
Das minhas mãos.

Falta contar
A história do ateu
Que saiu de casa
Numa noite de breu
E foi esconder-se
No templo sagrado
Desse corpo abandonado
Ao desejo e à distância.

Não é errância,
Isto,
É um Destino misto
De Fé e indiferença.
É acreditar, violentamente,
E essa crença
Estar dilacerada
E dividida
Entre o abraço
Na chegada
E o adeus
Na partida.
E as únicas palavras dizíveis,
Na medida justa e certa,
Serem as que perdeu
O poeta.

jpv


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Viajante Clandestino

viajante

Viajante clandestino
No porão do teu olhar,
Eu sou.
Coração de menino
No peito a exultar,
Eu sou.
Amante dos gestos,
Realizados e a realizar,
Eu sou.

Não há mais palavras
Para dizer-te.
Tu és as palavras todas.
Tu és o texto,
O poema acabado e perfeito,
Tu és a pergunta e a resposta,
O predicado e o sujeito
Do viajante que levas
Escondido…
No porão do teu olhar.

jpv


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Poesia

 

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Primeiro,
Pressente-se, ao longe,
Esfumada,
E não se percebe bem
O que lá vem.

Depois,
Cresce um pouco,
Um incómodo incerto,
Uma inquietação imprecisa.
Avança tímida e indecisa
E faz-se mais perto.

Agora,
É já uma visível preocupação,
Ou uma alegria exuberante,
Em todo o caso,
É inconfundível a excitação
E a inconstância constante.

Por fim,
Irrompe sob os dedos, em bailado,
A criação.
Um jogo de fúrias e medos em tornado.
E atropelam-se,
Galgam-se desejos e voracidades,
Procuram a frente e as verdades,
Anunciam batalhas, vitórias e perdições.

São só palavras
Desenhando emoções.
São só estas linhas imperfeitas.
São só esta coisa absurda
Que tenho no peito,
Este reduto último
De quem vive dilacerado e desfeito.

Cada palavra rasga-me a carne
E cada verso é escrito a sangue,
Cada estrofe é uma coisa que arde
E exala de meu cadáver exangue.

Palavras…
Arrancadas
À noite e ao dia.
Em minha mente
Torturadas…
Poesia.

jpv


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Só…

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Só,
No deserto árido das palavras.
Só,
No glaciar impenetrável das emoções.
Só e perdido,
Afogado no grito próprio
E na mudez da tua ausência.

Só e perdido,
Na memória antiga que se esvai
E no tempo que não volta.
Eu já não sou filho
E tu já não és pai.
E contudo, vives aqui,
No espaço de não ver-te,
Na ilusão de prender-te
Entre os braços,
De querer ser como tu
E não ter a sabedoria
De esperar.
Já vai longa a agonia
E não oiço
A voz desejada.
Seu peito
É uma amurada deserta
E traz a herança certa
De quem rasgou sulcos breves.
Têm de ser leves
As passadas do agricultor
Quando joga ao vento
Semeaduras de amor.
Mas têm de ser fundos, os rasgões.
Esse arado com que lavras
Meu peito
E semeias ausências
E silêncios sem palavras
Anda-me roubando a vida.
Causa inglória e perdida…

Só…
Já nem me negas…
É na ilusão do teu colo que me deito.
Filho abandonado,
Pai sem jeito.

Só…

jpv


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Tenho Poemas

palavras

Tenho poemas inteiros
Escritos a sangue
No peito.
E tenho poemas inacabados
No peito rasgados
A sangue.
Tenho palavras soltas
Sem destino nem jeito.
Restos de vida,
Gotejar impreciso
De um ideário morto.
Tenho linhas a direito
Com sentimentos a torto.
E tenho este grito
Que não sai.
Este mudo vociferar
Contra mim
E contra o fim
Que tarda em chegar.
Tenho palavras salgadas
E doces mentiras.
Tenho musas inspriradoras
E suaves liras.
E tenho este muro de impotência,
Esta coisa que não é Deus
E também não é Ciência.
Um sacrifício absurdo,
Um caminho doloroso.
Um querer tanto,
E tanto brilho,
Que torna mais penoso
O trajeto na escuridão.
Tenho tanto Sim
E vivo tanto Não.

jpv


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Poesia das Palavras Indizíveis – Pediatria

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Poesia das Palavras Indizíveis

Pediatria

Era negra, a menina.
Era negro, o destino.
Era negro e franzino
O gajo atrás do vidro.

E desfalecia, a menina.
Desfalecia, a vida
No vórtex da indiferença
De uma fila comprida.

Tempo de desespero,
A mãe com a criança
Entre os braços.
Estreitam-se ainda mais
Os já muito estreitados laços.
Um olhar triste.
Um olhar conformado.
Um olhar sem revolta
Na revolta de um olhar molhado.

E uma espera.
Uma noite longa e quente.
Um corpo pequenino e indefeso.
Um homem distante e ausente.

Sem piedade,
A urbe adormece,
Embalando nos seus braços
As teias que a vida tece.
E há dor.
E há vida e luz.
E há destinos de outra gente.
Gente que a gente produz…

E abandona às trevas da morte.

jpv


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Tenho Palavras

Tenho palavras
À janela da tentação.
Tenho palavras
Bailando na mão.
Tenho Palavras,
Mas não tenho tempo para elas.
Tenho palavras
Que morrem antes de escrevê-las.
Uma viúva de negro
Sulcada de rugas
E desesperada.
Um homem amordaçado
Em princípios e valores
E outro que rouba sem consciência
Nem pudores.
E há um cavaleiro que vem salvar uma donzela.
Emerge da noite
Em luminosa e moderna tela.
E vejo um homem que mendiga
Repudiado
E um outro vivendo incólume
Num conforto roubado.

Tenho palavras
Que não posso dizer.
Tenho histórias
Que não posso contar.
As palavras hão de morrer
E as histórias terão de acabar.

jpv