
Não consigo, mamã. Não consigo este luto impossível. Não é um luto. É uma luta de Titãs com fantasmas e remorsos. Não consigo despedir-me de ti. Não consigo aceitar a tua perda. Não desta maneira. Abrupta. Trágica. Violenta. Não há preparação possível para a morte. Eu sei. Mas, ao menos, um adeus.
Nessa manhã, escreveste-me um daqueles teus elogios em jeito de brincadeira a reavivar o nosso amor e, uma vez mais, me senti orgulhoso de ti. De como aos setenta e três anos dominavas as tecnologias e tinhas o teu espaço nas redes sociais.
A tua comunidade religiosa, a tua maior rede social, homenageou-te sentidamente, mamã. Com gestos simples, mas profundos, com palavras certeiras, com abraços, com leituras, e com o teu cântico preferido. Sabes, mamã, quando nos despedimos de ti, houve saudade e a natural tristeza de ver-te partir, mas não houve desespero. Pelo contrário. Talvez tenha sido o funeral em que senti mais esperança.
Se soubesses como me arrependo de tanta coisa. De como faria, hoje, tanta coisa diferente. E o que mais me revolta é que foi preciso morreres para perceber isso. Tinhas tanta razão. Tantas razões. Todas fluíam de ti com a naturalidade de um ribeiro que caminha para um curso maior.
A Mana está bem. Não fiques preocupada. É capaz de fazer tudo. De enfrentar tudo. Está forte e autónoma e encontrou uma outra irmã, quase de sangue, uma irmã de dor e compaixão, que tem cuidado dela. A Mana tem dúvidas. Ninguém passa incólume de viver contigo a viver sem ti. Mas está a conseguir. Como tu querias. Talvez melhor do que poderias esperar.
E, agora, vamos lá aqui conversar sobre o mais difícil: o teu adorado e tão desejado bisneto nasceu. É um rapagão grande e lindo e saudável. Ias adorá-lo mais do que já o adoravas antes mesmo de nascer. É um milagre de vida. O teu neto e a tua neta nem sabem para onde virar-se no desvelo de cuidar dele… queria tanto que pudesses pegar-lhe ao colo. O teu colo era tão bom! Tão acolhedor!
Soube, recentemente, que, ao longo dos últimos anos, me escreveste periodicamente. Estou ansioso por beber as tuas palavras. Estou ansioso por reencontrar-me contigo nesse plano de entendimento que só a escrita permite. E temo! Temo ter ainda mais saudades. Temo que esta revolta surda cresça ainda mais. A tua morte, mamã, não pode ser uma tragédia, tem de ser uma revolução.
Naquele momento em que tudo aconteceu, sei que te assustaste e sei que sofreste e sei, contudo, que tudo foi demasiado rápido para pensares, sequer, no que estava a acontecer-te.
Mãezinha, não consigo despedir-me de ti. Não sei que merda seja essa coisa a que chamam luto! Que puta de paz nos sobrevém e dá esperança no futuro se nenhum futuro sem ti o é verdadeiramente. Tinhas tanta vida a viver, tantos projetos, tanta pujança. Não consigo perceber a violência da tua partida inesperada e não consigo largar-te da minha mão, do meu próprio colo, dos meus arrependimentos. Não deixámos nada de importante por dizer, mas ficou tanto por fazer.
Não partas já! Vem, de novo, ajeitar-me o cabelo de menino. Vem, de novo, pedir-me para regressar que, desta vez, eu regresso. Perdoa, mamã! Perdoa pelo bem que te não fiz e podia ter feito. Perdoa as minhas fraquezas e as minhas faltas. Não foram por não te amar, por não te querer bem. Foram por cobardia e outras razões que os homens encontram para justificar as suas ações e os seus erros.
E, agora, estás aqui, a encher-me o peito e a povoar-me os dias e as noites com o teu sorriso, com o teu abraço, com as tuas graças, e aquele toque que me davas no ombro quando querias que me risse contigo. E recordo, com dor e saudade, quando pedias um xiripiti depois de almoço ou quando te surpreendia na cozinha às sete da manhã com tudo arrumado e o almoço já orientado e depois preparavas o teu café e o teu pão e ficávamos ali a conversar.
O máximo que consigo, hoje, mamã, é conversar um pouco mais. Não tenho, ainda, força para despedidas, nem lutas com fantasmas, nem o que quer que seja.
Só consigo conversar contigo e pedir-te desculpa por tudo o que não fui e sonhavas que fosse. Só consigo reencontrar-me, em lágrimas de fogo, com os meus erros e as minhas falhas e o teu sorriso e a tua aceitação e a tua resiliência… hoje, não sou capaz de mais…
jpv