Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


Deixe um comentário

Reflexo da Dor

Naquele dia,
Naquele fim de tarde
De cores difusas,
Encontrei Deus e perguntei:
Que fazes aqui?
A Potestade,
Com olhar supremo e doce,
Respondeu:
Vim cuidar de ti.
Como não acreditasse,
Incrédulo e surpreso,
Que a Divindade
Viesse ver uma só faúlha
De todo um fogo aceso,
Repliquei com a voz trémula:
De mim?
E olhei em volta.
E Deus,
Como se soubesse tudo,
Falou comigo
Tal pai aconselhando o filho:
Não haja surpresa nisso
Que são insondáveis,
Para os humanos,
Os motivos do seu Criador.
Em tua face
Está um olhar.
Nesse olhar
Brilha uma lágrima.
No brilho,
Mostra-se uma emoção.
Na emoção,
Baila uma mulher.
Nessa mulher,
Vive uma morte.
Dessa morte,
Nasce uma revolução.
Na revolta,
Estende-se uma mão.
Junto com a mão,
Revela-se um braço.
Ao cimo do braço,
Está um peito
Onde bate um coração.
O coração prende a dor
Que vim libertar.
Mas, respondi,
Não poderias ir direto
Ao peito sofredor?
Não, filho.
Toda a chuva
Tem um céu,
Toda a luz
Tem um sol,
Toda a noite
Tem um breu,
Toda a dor
Tem uma estrada
A ser vencida,
Passada a passada,
Até que o pó do sofrimento
Seja alimento
E brilhe de novo um olhar.
Só então,
Teu Deus te virá libertar.
E, como veio,
Deus partiu.
E quando saiu,
A tarde já se fizera manhã.

jpv


Deixe um comentário

Círculo Perfeito

Nem Deus
Nem o Diabo
Me chamam.
São os teus braços.

Nem a luz
Nem o breu
Me convocam.
São os teus braços.

Nem a coragem
Nem o medo
Me incitam.
São os teus braços.

Abraços de luz.
Olhos trémulos,
Lábios de amor
E uma palavra que conduz
Ao Mundo e…
De volta aos teus braços.

jpv


Deixe um comentário

De Rerum Natura

Rosa do Deserto denominada “Bárbara Dias”

Não é…

Este texto não é sobre a Covid-19. É sobre coisas realmente importantes. Não são urgentes. São importantes. Não são mediáticas nem vão vender jornais ou fazer subir audiências. São só importantes. E o que é importante, hoje, tem muito pouca importância.

Não é porque não reajo que não vejo o que fazeis ao meu redor. Como vos reunis à volta da minha carne e farejais o sangue. Eu vejo. Não reagir é uma opção consciente e calculada. É um gesto de preservação da minha serenidade e da minha paz. Só depende de mim. Oiço música tranquila, neste momento em que escrevo à brisa de uma sombra fresca. E ninguém, nem nada, me tira isso. Não estou interessado em mais nada. Só na brisa e na frescura da sombra.

Não é porque não me insurjo que não percebo a injustiça e a ignomínia. Como conjurais com base em argumentos falaciosos construídos com conhecimento quase nulo de coisa nenhuma. Eu percebo. Mas não sinto. Não sentir é uma opção consciente e calculada. Nada do que digais ou façais tem o poder de, sequer, bater-me à porta da consciência tranquila em que me cerro e encerro.

Não é porque não veja o afastamento delicado e maquinado que não o denuncio. Eu vejo bem todo o direito e todo o avesso conjurado da trama. Sei por onde passa, para onde vai e que objetivos tem. Não denunciar é uma opção consciente e calculada. Porque, ao contrário de vós, eu já sou feliz e não careço da conjura para realizar-me e ser o que já sou. Porque a minha paz não se alimenta dessa matéria pútrida e fétida que alimenta a vossa existência. Por vezes, é melhor não existir do que cheirar mal. É melhor deixar correr os rios de lama do que cais na inglória e vã intenção de pôr-lhes diques. A lama corre sempre.

Aqui, onde me encontro, chegam sons da Natureza e dos Homens e a brisa e a sombra fresca e afetos simples e caseiros. Aqui, chega o tempo de ter tempo, chega a paz da contemplação e nada abaixo disso trepa os muros que lhe coloquei à volta. Neste Olimpo de serenidade, a conjura não tem como formar-se, crescer e subir porque é de outro universo. Um universo que não se cruza com este. Correm realmente paralelos.

Ainda há pouco aqui veio Deus perguntar-me o que mais queria para ser feliz, quem queria que resgatasse ou condenasse, um desejo só, que falasse e concretizar-se-ia. Vai pelos outros e dá-lhes do meu viver, disse-Lhe. E Deus foi, amuado e com um sorriso semi-desenhado na face imprecisa. Foi educado. Pediu desculpa por interromper. Eu fiz-Lhe um aceno desajeitado e reconfinei-me à minha efémera, perecível e doce felicidade. A felicidade de quem assoma à proa da vida e conduz o Destino de forma consciente e calculada. Esse nauta vê a borrasca no horizonte e vê-a aproximar-se e passa por ela e recupera o sol na pele e o céu limpo a fundir-se com o mar no olhar. Não se debate com a ondulação enfurecida. Navega-a, impassível e imperturbável. Sem hesitação nem temor. É que o nauta tem um segredo. Sabe onde fica o porto seguro. E tem uma bússola no coração. E tem um sextante na alma.

Não é porque não vejo a rebentação feroz das ondas na tempestade que não me debato com elas. Não debater-me com elas é uma opção consciente e calculada.

jpv


2 comentários

Tempo

Tempo

Tempo

O verdadeiro Deus

É o Tempo.

Sempre certo,

Sempre isento.

De leis simples

E universais.

Sempre justas,

Sempre benévolas,

E sempre fatais.

Sem piedade, consome

O espírito e o corpo do homem.

E aceita uma única e singular

Oferenda de adoração

Em seu magnânimo altar:

Exige, em regime exclusivo e absoluto,

A entrega do crente

E o seu usufruto.

Não tem catedrais,

Nem mesquitas,

Nem sinagogas.

O templo do Tempo

É a praia

E a sombra generosa

De uma pinheira mansa.

É esta cadeira em que me sento

E a minha pele

Como palco da dança

Da brisa leve que me acaricia.

É o sorriso de uma criança,

E o olhar meigo

De um idoso

Que teve o que quis:

Morreu tranquilo e feliz

E primeiro que os seus.

A esta regra e a esta ordem

Obedecemos todos.

Até mesmo Deus,

Seja qual for o seu credo,

A sua fé,

Ou a sua raça,

Observa o tempo que passa

E curva-se ao seu passar.

Já foram os dias

De não ter consciência.

Já foram as horas

De conquistar a independência.

Já foi o tempo

Das impetuosidades todas.

Já foram as certezas.

Já quis consertar o mundo.

Já foi o tempo

De saber o que quero.

Agora, só e resignado,

Espero.

É o tempo de cada minuto.

É o tempo de descontar.

É o tempo

Do Tempo absoluto.

É o tempo

Do Tempo passar,

Cortante,

Por mim.

É o tempo das rugas.

São os dias do fim.

Não dobram, já, os joelhos,

Como costumavam.

As raparigas que passam,

Não olham

Como olhavam.

Estão mais longe, as distâncias,

Mais pequeninas, as letras impressas.

Não há razão para ter pressas.

Deixa-O passar… devagar.

Evitam-se os espelhos

Que nada têm para espelhar

Que não seja decadência.

Perdi a fé na Ciência

E no Homem também.

Recordo meu pai

E minha mãe

No tempo de antes de mim.

E sei

Que já nem eu

Sou assim.

Esta cadeira, de novo.

O papel.

A tinta deslizando

O desenho das palavras

Como um arado

A rasgar a terra.

Sou mais um capítulo

Que se encerra

Neste poço sem fundo.

Já pouco me resta.

Já só me falta

Erguer

E conquistar o Mundo.

jpv


5 comentários

De Rerum Natura – Basta!

bastaDe Rerum Natura – Basta!

É bom que Deus, o Diabo, o Destino e todas as outras forças que gerem esta patranha a que chamamos vida se entendam. Há um limite para o que uma pessoa consegue suportar em relação à agressividade e sinuosidade com que a tal vida a trata. Cada um tem o seu. Limite. Cada um reage com as armas que tem. Há quem vá à bruxa, há quem vá à igreja, há quem faça romarias, há quem se revolte e passe a agredir tudo e todos à sua volta, há quem se interne num hospital psiquiátrico e há os que, em meio da turba de contrariedades, tentam manter o equilíbrio. Sou desses. Tento ser. Percebe-se como… escrevo. Mas, à parte estar de boa saúde, tudo o mais parece ter-se combinado para me chatear os cornos.

Está na hora de dizer basta! Chega! Vade retrum ou, como me sabe melhor, puta que pariu!

É bom que Deus, o Diabo e o Destino e mai-lo rai que parta a todos se ponham de acordo e vão bater noutro ceguinho. Um semestre a levar pancada das forças superiores é muito tempo para o que um reles mortal pode suportar. E há mais: o próximo gajo que, referindo-se ao facto de eu estar emigrado em África, disser a expressão ‘Rica vida’ ou mencionar as belas praias do Índico, ouve uma saraivada de impropérios como não julgou ser possível produzir.

Estou farto da ignorância, da perfídia, da desonestidade descarada, estou farto da chico-espertice, estou farto da dissimulação, estou farto das presunções, estou farto de estar farto e estou farto da impotência e da vulnerabilidade perante a impunidade alheia. Estou farto da Humanidade.

Deus, o Diabo, o Destino, o Karma, que se ponham de acordo e escolham outro. Para mim, BASTA!

jpv


2 comentários

Deus ou o Diabo

fccc1-sexy-red-dressDeus ou o Diabo

Essa cristã dicotomia.
Esse excelso apartar.
Essa terrível chaga
De por cada um no seu lugar.
Esse prémio e esse castigo,
A salvação do justo
E a condenação do iníquo.
Essa opção um dia,
Todos os dias.
Esse se
Pendendo sobre o que farias.

O meu suor na tua cama,
Outro corpo suado que me chama.
O meu corpo sobre o teu
E a sombra de outro
Desenhada no meu.
Uma visita furtiva
E um pouco de amor no regaço.
Palavras incendiadas de prazer
E outro prazer no meu espaço.
O sexo e a tentação.
As horas que passo
Em teus domínios.
E logo me chamando
Outras vozes
E outros desígnios.

Há um céu e um inferno
Um gesto brusco e outro terno.
Há um chegar e um partir.
Há uma fuga de mim
E um perseguir
O sonho de querer-te,
Ser feliz…
Rotina de paixão sem fim.

E há uma oração
Em teu corpo nu e ajoelhado
Traçando com precisão
A distância entre Deus e o Diabo.

jpv