Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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A Dissolução da Assembleia e a Demissão do Ministro

[Presidente Jorge Sampaio (Portugal) aceita a demissão do primeiro-ministro Pedro Santana Lopes. Presidente Jorge Sampaio (Portugal) convoca eleições para 20/02/2005. Terremoto de 5,4 graus na escala Richter atinge o cabo de São Vicente. Eleições presidenciais e parlamentares em Moçambique.

[Data da primeira publicação: 17 de Dezembro de 2004]

A Dissolução da Assembleia e a Demissão do Ministro
Querida mana,

As famílias têm destas coisas. E estas coisas são as oscilações nos relacionamentos entre os que compõem as famílias. Hás-de lembrar-te, como eu, de dias intermináveis de entendimento em que parecia ter baixado à terra um qualquer halo de entendimento e comunhão, em que todas as pessoas das pessoas todas que nos interessavam pareciam ter acordado para sorrir, para oficiar a simpatia. Eram dias de tolerância e de uma humanidade melhor. Um almoço em comum com viagens de sacrifício, esperas de preocupação sem telemóveis para as encurtar, a alegria do reencontro, as lágrimas, os abraços, e a falta de originalidade das perguntas que não nasceram para ser originais, tão só a expressão sincera de estarmos juntos: “estás com bom aspecto!”, “como corre a vida?” “a viagem foi boa? Fiz uma receita de bolo rei…” Ou um piquenique de areias brancas, fatos-de-banho à anos setenta e talhadas roídas de melão a espreitar, inconscientes e despreocupadas, da areia vulnerável ao ser português que vem morrendo sem consideráveis melhoras da areia. Ou noites infindas de natais maravilhosos de dormir pelo chão, conversar as conversas todas, provar todos os doces, beber de todas as taças e contar as histórias todas já todas ouvidas mas sempre bem-vindas aos momentos de estarmos juntos!
Nestas alturas fomos uma união, um grupo coeso, sem brechas no horizonte.

Fomos uma célula coesa da sociedade que gravitava em volta. Não nos dissolvemos nem nos demitimos do que escolhêramos ser!

Também te lembrarás, com menos razões para sorrir, dos dias mais cinzentos (perdoe-me o cinzento pela parcialidade cromática), das vozes iradas, das grandes discórdias. E lembrar-te-ás, com apreensão no teu rosto de menina que nunca te vejo mulher, dos gestos de que a família se arrependeu ou devia ter arrependido, das decisões a abrir facções de opinião, do não pensarmos todos o mesmo. Lembras-te, de certo, dos períodos mais ou menos longos, mas sempre condenáveis em que alguém não conversava com alguém. Em que o peso de afirmar-se na vida e nas convicções pessoais rasgou a coesão e a vontade de estarmos em uníssono. Eram momentos de dor para os envolvidos e de dor eram esses momentos para os que observavam o processo com conselho daqui, opinião dali. Quase parecia, nesses momentos, que o mundo fazia menos sentido. Que a razão de estarmos vivos se nublava na frente dos olhos e perdíamos, um pouco, perante a imensidão do mundo sem a coesão dessa célula a que fomos chamando família por hábito e tradição.

Não fomos, nesses momentos, uma célula coesa da sociedade que gravitava em volta, contudo, mana, a menos que a memória me atraiçoe o raciocínio eu diria que nem mesmo nesses momentos algum de nós se atreveu a dissolver a célula ou a demitir-se dela!

O que seria de nós se o avô deixasse de ser avô, se as tias deixassem de ser tias, se o pai deixasse de ser pai, se a mãe deixasse de ser mãe, se a avó deixasse de ser avó? O que seria de nós se nos tivéssemos dissolvido e demitido deste compromisso que é ser eu teu irmão e tu a minha mana?

Beijo,
Mano.


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Um homem no mundo

[Presidente Jorge Sampaio (Portugal) aceita a demissão do primeiro-ministro Pedro Santana Lopes. Presidente Jorge Sampaio (Portugal) convoca eleições para 20/02/2005. Terremoto de 5,4 graus na escala Richter atinge o cabo de São Vicente. Eleições presidenciais e parlamentares em Moçambique.

[Data da primeira publicação: 3 de Dezembro de 2004]

Um homem no mundo

Querida mana,

Há homens que vivem a vida que os escolheu.
Há homens que nunca chegam a saber que estiveram vivos.
Há homens que passam ao lado da vida empunhando bandeiras de nada e ideais que nunca o foram de tão vazios.
Há homens que vivem perdidos porque já nasceram perdidos na imensidão humana de um universo que os assusta e os apouca como se a mesquinhez do universo fosse grande.
Há homens que tentam ávidos ou desesperados a dignidade e procuram-na, diligentes, por todo o lado menos por onde se pode encontrar a dignidade.
Há homens que se enganam a vida julgando enganá-la.

E há o nosso avô. Esse colosso de existir que sepultámos há poucos dias. Essa perda para o mundo mais do que para ele.

O nosso avô Velez caracteriza-se facilmente. Um corpo imenso como convém para abrigar uma alma também ela imensa. Um corpo de enfrentar as agruras, de segurar as investidas que os cornos da vida fizeram numa geração que sofreu tudo o que havia para sofrer. Um homem de encher uma sala de risos ou lágrimas que ele próprio derramava numa antítese figura-corpo para quem o não conhecesse mas, digam o que disserem, a fazer todo o sentido para quem cresceu à sua beira. Um homem cuja primeira palavra era honra e a última também. Um carinho a brotar de um corpo imenso no elogio dos netos, das filhas, do mundo que o rodeava. Um dinamismo de querer viver a vida toda de uma vez na avidez de segurar cada momento. Uma presença inigualável. Uma saudade que magoa mas adocica a memória de lembrar o que vivemos com ele.

O avô Velez tinha duas características e lembro-me do o ver viver sempre de peito erguido para a vida empunhando-as como a lemas, como espadas de defender-se, como a lemes de conduzir-se, de conduzir quem o acompanhava. Uma era a força das suas virtudes. Irrompia com ela pela vida de quem se cruzasse. Desempanava automóveis na beira da estrada, dava boleias a quem já se cansara de esperar, distribuía o que tinha como se tivesse muito e, por vezes, pouco era. Distribuía alegria como quem dá tudo o que tem: o dom de viver a vida sempre pelo lado do sol… uma só palavra, uma só honestidade, uma só cara, uma só seriedade e, com elas, a força de encarar o mundo e o que ele trouxesse. A outra característica era a coragem dos seus defeitos. Assumia-os como quem dá a cara a ver se dói. Assumia-os como que para garantir a sua humanidade e nunca se escondeu deles, nem os ocultou de quem tinha o privilégio da sua companhia. E era neste tactear de defeitos e virtudes que nos mostrava como vive um homem no mundo.

O que mais aprecio no homem que agora nos deixa saudade é um aspecto que me parece um tanto esquecido por quem quer ser homem nos nossos dias: a integridade e a verticalidade. Um homem que nunca fugiu do seu mundo mas o encarou, o trabalhou, o amou e por fim, o deixou com a serenidade de que só os heróis são capazes quando enfrentam a negra e derradeira inimiga.

Paz à sua alma.

Beijo,
Mano


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A Joana e a Carmo são

[Durão Barroso aceita ser presidente da Comissão Europeia e é substituído por Santana Lopes no Executivo. O Prtesidente da República, Jorge Sampaio, dissolve o Governo e convoca eleições antecipadas. Realiza-se o XXVI Congresso do Partido Social Democrata – PSD (Barcelos). Tem Início o julgamento do processo de pedofilia na Casa Pia de Lisboa. XVII Congresso do Partido Comunista Português (Almada).

[Data da primeira publicação: 19 de Novembro de 2004]

A Joana e a Carmo são

Querida mana,

À medida que os anos passam e se alonga e expande a teia de memórias que me faz homem e à medida em que os pratos da balança em que colocamos a vida vivida e a vida por viver se vão aproximando até trocarem, inexoravelmente, as posições originais alteram-se-me na alma as perspectivas do mundo ou, quem sabe, altera-se o próprio mundo. Quando era pequenito e passeava contigo no carrinho de bebé rua abaixo, rua acima, perguntei, certa vez, à mãe o que é que o papá era… é exactamente aqui que quero parar para reflectir contigo. O verbo, à altura, altura de anos poucos e verdes não foi reflectido, foi intuído pela intuição que nos traz o senso comum, a vida que nos rodeia. Lembro agora o quotidiano de então, os amigos, as conversas dos adultos e sempre que encontro na memória alguém a perguntar a alguém qual o seu trabalho, encontro este perturbante verbo ser. As pessoas de então não faziam para ser, eram para fazer. Era-se professor, era-se camionista, era-se engenheiro, era-se pedreiro, era-se médico, era-se empregado de balcão e devido ao que se era fazia-se o que se devia. A profissão instituía-se, nas diversas áreas, com foros de vocação de ser para uma vida inteira, pressupunha um indagar interior, um descobrir das capacidades, das tendências e exigia a dedicação de ser-se o que se tinha escolhido para sempre. Excepções à parte, que as há-de haver sempre, os profissionais tinham esta peculiar e inusitada característica: eram o que escolhiam ser, eram uma profissão, só uma, eram-no para sempre. Conheci mesmo pessoas que, aos cinquenta ou sessenta anos tinham sido aquela escolha sempre e só!

O pai foi comerciante, o senhor Sá foi alfaiate, a Nô foi médica, a Paula David foi professora.
Foi-me a memória remexer o sótão das ideias e levantar a poeira dos tempos porque tenho reparado nas mudanças que estas coisas sofreram. Hoje não se pergunta às pessoas o que elas são, pergunta-se o que elas fazem: “dou aulas”, “faço projectos para a Câmara Municipal”, “atendo ao balcão”, “dou serventia”, “arranco dentes”, “faço próteses”, um sem número de coisas que toda a gente faz ninguém é…

Talvez seja altura de nos perguntarmos como veio isto a ser assim. Talvez que a sociedade tão afanosamente construída e alicerçada em princípios de pluralidade cultural, princípios de economia global, princípios de generalização universal, tenha esquecido a especificidade dos povos e, claro, das gentes. Decorre daí que, ao formarmos os jovens, ao apontarmos as saídas do presente e as entradas do futuro, não estejamos a induzir essa tão básica mas tão fundamental questão posta por um grego antigo, velho e desactualizado já só visto na secção dos bustos alvos dos museus ou nas páginas esquecidas de livros da especialidade: conhece-te a ti próprio. E a formação dos homens e das mulheres que hão-de tomar conta do nosso mundo assenta em profissionais que o vieram a ser com base em questões intrigantes e perturbantes: “Que saída tem este curso? Dá emprego?”, “O que é que eu posso fazer que chegue para um apartamento e um carro?”, “Quanto ganha um…?” “Em que universidade é que há este curso? A que distância fica ela? Quanto custam as propinas?”

Talvez por isto, a maioria dos jovens chega aos vinte e muitos anos e ainda não é nada mas já fez muita coisa. Contudo, trazem nos olhos a insegurança, a incerteza e ainda não tiveram tempo nem oportunidade para ter a coragem de perguntar o que sou eu?, que quero eu de mim?, da vida?

Por isso te escrevo hoje sobre duas jovens que conheci, acabadinhas de formar: a Carmo e a Joana. Terminava o século vinte, abriam-se os portões sombrios da crise com que se inaugurou o século vinte e um e elas foram para artes. Formaram-se em pintura! Assim, sem mais nem menos, em pintura. E sabiam que não teriam emprego, e sabiam que percorreriam o calvário, que tu própria trilhaste, dos centros de emprego, dos curricula, das cartas de apresentação, e sabiam que a resposta seria um não rotundo e invariável, mas assumiram a coragem de ser e não o imediatismo de fazer! E onde vivem a Carmo e a Joana? Vivem num país que se queixa de falta de mão-de-obra especializada, de falta de formação, de falta de educação, de crise cultural, de crise de identidade, vivem nesse mesmo país que rejeita e atira para as malhas do desemprego e do desânimo as pessoas que tiveram a coragem de aprender e que podiam proporcionar-nos tudo o que nos faz falta. Vivem num país que se lamenta da falta de essência e atira a essência para a valeta da negação e do insucesso.

Aprender, em Portugal, mana, é uma coisa muito perigosa. Perigosa ao ponto de poder dedicar-se uma vida a aprender e depois levar-se com rótulo de inútil e incapaz para a moderna sociedade das tecnologias, da informação, da comunicação, das skills, das visibilidades, das quintas, das celebridades, da negação da essência. Mas tenho esperança em Portugal, mana, enquanto houver uma Joana e uma Carmo que, como tu, teimosa e obstinadamente teimem em ser!

Beijo,
Mano


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A professora Cilita

[Durão Barroso aceita ser presidente da Comissão Europeia e é substituído por Santana Lopes no Executivo. O Prtesidente da República, Jorge Sampaio, dissolve o Governo e convoca eleições antecipadas. Realiza-se o XXVI Congresso do Partido Social Democrata – PSD (Barcelos). Tem Início o julgamento do processo de pedofilia na Casa Pia de Lisboa. XVII Congresso do Partido Comunista Português (Almada).

[Data da primeira publicação: 5 de Novembro de 2004]

A professora Cilita
Querida mana,

A vida tem destas coisas. Institui em algumas pessoas e no percurso que traçam certo estatuto que escapa à quadrícula mesquinha dos impressos onde, por razões diversas, vamos deixando o rasto da vida: nome, profissão, número do bilhete de identidade. Umas ficam marcadas pela alcunha que descreve em poucas palavras toda uma vida e, às vezes, a vida dos antepassados também. Toino Manso, Manel Carrapicho, Quim Meia-Leca, Baltasar Sete-sóis, a menina Augusta, que foi menina até aos seus noventa e sete garbosos anos, altura em que combinou com o Senhor que já chegava e, claro, a Zefa da rua de cima, a Laurinda das lãs e a Clarinha do Felisberto que tentou, em vão, ser Clara como gostava e queria. Outras, marcadas ficaram por essa segunda pele que é o ofício, o labor do quotidiano e a responsabilidade de dar a cara por cumpri-la substitui-se à pessoa que lê, que cozinha, que ri, que chora, que ama, que cria os filhos, que vive e morre sem direito ao nome que lhe puseram, bonito ou feio não vem ao caso. O que importa são as frases que ficaram no ar a vestir a identidade dos humanos que, por vontade própria ou não, se rouparam com elas: “Telefonas ao canalizador?”, “Falaste com o empreiteiro?”, “Passas no sapateiro?”, “Hoje tive de enfrentar o gerente…”, “a senhora professora dá licença?”

E chegados aqui à senhora professora, fico a ver, na segunda carteira da fila da janela, um miúdo de olhar posto no entusiasmo da vida a sorver as palavras de encanto e magia que a professora Cilita tem para revelar. Nunca soube, como não sei hoje, o nome da minha professora da primeira classe e, contudo, marcou-me os dias de crescer devagarinho com as primeiras letras lidas, os primeiros traços atabalhoados de escrita. Uma carreirinha de as, uma carreirinha de bês, “vá lá, não te esqueças: para cima, para baixo, mais um pouquinho para cima e agora a perninha, isso, vês que bem…” Revelou-me o mundo mágico das histórias e um dia ofereceu-me um livro. Que milagre aquele. Um livro inteiro só para mim, dado pela minha professora…
Na comunidade em que vivíamos poucos saberiam, à excepção da família porque lho puseram, o nome da professora Cilita. Professora não era nome. Cilita era meio nome ou um nome a fazer de conta de outro nome. A expressão junta, professora Cilita, era uma alegria de ir pela manhã de pasta às costas, era um respeito de tratá-la como aos próprios pais, era o poder mágico e inimaginável de ver o giz desenhar milagres no quadro negro. Era o mundo pela frente nas mãos de uma voz suave e firme, de uma bata branca a cheirar a aprender, de um olhar que dizia, a cada momento “vai, aprende e toma o mundo que é já teu ainda que o não saibas…”
Esta autoridade natural, este respeito pela figura do professor, este acreditar tranquilo na transmissão do saber e do universo de geração em geração foi sendo conquistado pelas modernas teorias do ensino, da aprendizagem e da aprendizagem da aprendizagem. Da professora Cilita, entretanto desactualizada, jubilada pela idade, fica só a memória. O presente é que sim, é que está bem, é que ensina. Se não vejamos: para começar, o ano lectivo acaba muito mais tarde e começa muito mais cedo! Logo, o tempo de aprendizagem é maior! A coisa vai até Julho com uns a acabar e outros a continuar como convém à tranquilidade e à especificidade do clima mediterrânico! E começa logo em Setembro, sem tempo a perder. Aliás, para que precisam as famílias de férias em Setembro se tudo enlatadinho em Agosto faz muito mais jeito às carreiras turísticas formatadas pelas agências? Brincar não serve, a brincar não se aprende. De resto, quem é que guardava as crianças? Onde é que as enfiávamos? Depois, bem, depois, os professores são electronicamente colocados e claro que o computador adivinha com a exactidão de quem não sabe o que é errar qual a especificidade humana mais compatível com as características de certa região, determinada população. Por isso estão os de Bragança em Faro e vice-versa! Mas há mais. Vêm aí as novas tecnologias e anunciam-se os tempos em que um bom orador pode facilmente ser substituído por um monitor e duas colunas de som. Em que um conselho, um olhar, uma intuição, uma metodologia e um acompanhar como quem embala serão substituídos pela voz metálica das instruções multimédia! Repara mana, repara bem, o professor continua lá: estuda as metodologias, passa-as aos técnicos que as colocam nos cd’s e na web que são vendidos aos alunos que lêem os professores em diferido, assim é que é: futuro a valer!
Faz-me falta, mana, a tranquilidade de ser professor. A naturalidade de ensinar, a força de não ter vergonha de transmitir conhecimentos, esse pecado pedagógico com que andámos anos a fio a traumatizar as criancinhas! Esse pecado com que me mutilou a alma a professora Cilita. Mutilada está, sim, de saudade…

Beijo,
Mano


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Não sou um construtor desta modernidade

[Assinatura de acordo relativo à Constituição de um Mercado Ibérico da Energia Eléctrica. 8ª Conferência Nacional de Ambiente – Centro Cultural de Belém – Portugal. Morte do poeta português José Maria Machado de Araújo. Timor-Leste torna-se membro do International Finance Corporation – IFC.

[Data da primeira publicação: 22 de Outubro de 2004]

Não sou um construtor desta modernidade

Querida mana,

As palavras que te escrevo hoje têm a intitulá-las uma frase que assume foros de anacronismo a desafiar a contradição. Tentarei deixar-te marcado na alma o percurso que me levou a tal síntese. Tentarei que percebas as voltas que levam um homem do seu tempo a negar a sua construção. O natural é sermos todos construtores de tudo o que nos rodeia. Activa ou passivamente, bem entendido.

Quando a memória me deixa, vagueio pelos tempos passados à procura, neles, das coisas, dos pensamentos, dos sentimentos e das atitudes que mais sentido fizeram como que a pedir-lhes reedição para este presente que vivemos. O tempo é nosso. Usamo-lo como queremos. Até me espanta que se gaste por esse mundo fora tanta verba em investigação sobre máquinas de viajar no tempo quando a melhor delas tem-na cada um de nós nesse precioso acervo que o cérebro vai coleccionando do quotidiano que hoje é e amanhã foi!

Em São Pedro d’Alva não havia dias amenos. Ou as manhãs acordavam frias de deixar a roupa hirta de gelo nas cordas de estender depois de noites que cobertor algum conseguia aquecer, ou o sol despontava forte a queimar, a pedir águas para as sedes, sombras densas para os calores. E foi debaixo de um sol assim que o nosso avô se sentou num banco à porta da loja tantas vezes que parece que ainda o lá vejo quando por lá passo. Os homens passavam, entravam ou não, mas saudavam-no sempre. Ali, o tempo tinha tempo. Por vezes, como que a desafiar a monotonia da tranquilidade, dos dias sem surpresas, os homens demoravam-se um pouco mais. Falavam do clima, contavam das eiras, dos valados, dos pinheiros, das batatas, da vinha, como se falassem de filhos pequenos a crescer. E por vezes, também, a criar uma nota diferente na conversa, surgiam frases atiradas ao vento e aos ouvidos como quem lança uma sorte, desafia um destino: “aquelas terras ali abaixo daquilo do compadre Celestino eram boas para o compadre…” Não eram precisas mais palavras que outras tantas como estas: “eram sim senhor, e quanto quer vossemecê por elas?” Ajustava-se a verba e sem mais palavras nem papéis que aquelas que haviam sido ditas nem mais garantias que “ser eu quem sou e vossemecê quem é” o negócio fechava-se digno e justo na confiança dos homens.

São estes gestos simples mas absolutos, de uma integridade a desafiar futuros incertos, de uma honestidade de homens rectos, erguidos na vida do chão ao céu, com o corpo maltratado, mas a face limpa, que vão escasseando e fazendo falta à nossa modernidade.

Entristeço-me, hoje, com a poeira que as palavras levantam a tentar ocultar verdades que se não podem esconder porque estão à vista de todos. Entristeço-me com os atletas olímpicos que tomam substâncias dopantes, dizem que as não tomam e vêm depois pedir desculpas por tê-las tomado! Entristeço-me com as mães que lastimam os filhos raptados que elas próprias, afinal, haviam subtraído à vida! Entristeço-me com os políticos que ontem tinham provas inequívocas da existência de armas que hoje sabem nunca ter tido a certeza de existirem. Choca-me a impunidade de tudo isto mas, sobretudo, magoa-me a forma como se maltrata a dignidade humana. Magoa-me a leviandade com que se vive com duas caras. Magoa-me o coração de pai, a facilidade com que se mal educam os nossos jovens. A palavra dita não vale muito. A palavra, mesmo escrita, vale muito pouco! O que hoje se diz amanhã se nega. Vivem-se os materialismos e os interesses inerentes e esquecem-se os princípios que deveriam reger as relações entre os homens.

É neste sentido, mana, que não quero ser um construtor desta modernidade. Prefiro erguer a face, o corpo e o carácter e fazê-los fustigar, erectos, pela imoralidade que graça, do que ceder aos jogos de palavras, aos arranjinhos, ao diz que não disse… prefiro um gesto verdadeiro que doa do que um sorriso meigo sem verdade nem dor.

Este homem que sou veio ao mundo pelas mãos honestas de seus avôs, de seu pai e, mais tarde, de seu sogro. Este homem que sou não quer esta modernidade para si. Não é esta a herança que quero deixar ao meu filho. Este homem que sou há-de viver a sua honestidade, há-de sofrê-la, morrer com ela seja qual for a face da modernidade.

Espero só que, enquanto vivo os meus dias, consiga fecundar no carácter do meu filho e dos jovens que me passam pelas carteiras da escola umas quantas sementinhas de verdade e de integridade a ver se amanhã a modernidade é outra!

Beijo,
Mano


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O feliz dia cinzento!

[Realizou-se o VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais – A Questão Social no Novo Milénio. Rebeldes tomam escola em Beslan – Rússia e fazem 350 reféns. Presidente Bush encerra a convenção republicana prometendo um mundo ‘mais seguro’. Estados Unidos vetam proposta de países árabes p/ o fim de ações israelenses na Faixa de Gaza. Augusto Pinochet é interrogado pelo juiz Juan Guzmán Tapia sobre a Operação Condor. Secretário Colin Powell afirma que capturar Osama bin Laden continua a ser a prioridade dos EUA. A Rússia aprova adesão ao Protocolo de Kyoto.
[Data da primeira publicação: 24 de Setembro de 2004]
O feliz dia cinzento!
Olá mana!
Esfuma-se-me nos horizontes da memória o dia em que, pela primeira vez, fui ao cinema. Era uma tarde de Domingo na minha infância. Duma infância a que tu ainda não pertencias. Os cartazes, de nomenclatura ainda não ofendida pelo anacronismo que hoje são, eram mesmo de cartão e ostentavam num colorido preto e branco o nome que a pequenada queria ouvir: Trinitá. Não interessava se os actores eram bons ou maus, de facto, os actores não interessavam para nada. Aliás, se bem me lembro, à altura, não havia actores! Nem passava pela cabeça de ninguém perguntar se o filme era bom. Trinitá, o nome, bastava. Era, por si só, garantia de emoções fortes, aventuras inigualáveis, tarde bem passada, semente de brincadeiras emocionantes e ruidosas. Os adultos não podiam entrar e a pequenada enchia a sala de gritos de incentivo: “dá-lhe, dá-lhe, Trinitá!” ou, voluntariosa, prestava ajuda ao herói. Aquela ajuda que mais tarde se reconheceria fundamental: “Cuidado, Trinitá, ele está atrás de ti!”. O filme desenrolava-se na tela e para cá dela, saltos nos assentos irrequietos, correrias abaixo e acima ao longo das filas de cadeiras, tiros de indicador em riste e polegar dobrado a disparar. No final perguntaram-me cá fora quantos tinham morrido e a resposta surgiu esclarecedora: “Deles, muitos. De nós, nenhum!”. Por essa altura todas as coisas me surpreendiam e a minha vida não tinha personagens-tipo mesmo que o fossem. O meu quotidiano era marcado pela singularidade de cada gesto, cada palavra e tudo o que presenciava era um milagre original da vida. Talvez tivesse nascido comigo uma crença natural no mundo que me rodeia, um optimismo inquebrantável de português que olha o mar e acredita que África é já ali, a América um pouco mais adiante e a distante e inalcançável Índia dos outros logo ao virar de uma esquina, de um cabo, de uma nau, de uma vontade. Contudo, tal como a Índia aos olhos dos portugueses, também o meu sonho de mundo viria a crescer, a amadurecer, a moldar-se por outros olhos que, entretanto, nasceram em mim. E veio a faculdade, a descoberta de coisas maravilhosas, caminhos inexplorados do pensamento. Ideias fenomenais de homens e mulheres mais fenomenais ainda. Pensar tornou-se concreto, palpável como a terra, moldável como o barro e, por vezes, esguio como a areia por entre os dedos. E deixei-me perder por entre milhares de páginas de descoberta, milhares de horas de aventura no papel original ou fotocópia, milhares de olhares no vazio à procura das respostas e das perguntas para elas e das respostas para as perguntas delas… pouco depois na vida julguei ter muito na mão. E tinha. Tinha um homem em vez de uma criança. Tinha as reflexões acerca dos ambientes, das personagens, dos tempos, das acções, dos autores se os houvesse porque entretanto morreram e viveram de novo. Tinha, na mão aberta, uma rede de pensamentos e magia a que chamam conhecimento. Parei um instante e perguntei-me: “a que preço?”. O preço fora a morte do meu Trinitá genuíno. O preço fora o reconhecimento de uma personagem-tipo, sem vida própria, com nome de actor por trás. E tive de viver com estes estereótipos como tive de viver com outros que o estudo foi consagrando. O encarnado prenunciando desgraça, a noite anunciando morte, e o dia cinzento anunciando infelicidade peripatética.
E foi aqui que quis chegar. O dia está cinzento. Uma cinza que não permite o brilho do astro que nos anima o espírito. Abafado, como se sufocássemos mesmo antes de tentarmos respirar. Nas páginas de um romance este seria o dia ideal para a infelicidade. Este seria o dia das más notícias e das desgraças anunciadas. Mas o meu Trinitá antigo, o genuíno “cobói” que chega em cima da hora rebrilhando metais nas botas chegou no sorriso da médica que estava lá dentro com a nossa mãe e veio trazer-nos um feliz dia cinzento: “a senhora pode deitar um foguete”, disse. E eu sorri contigo e com ela e fomos almoçar sob o alegre cinzento daquela manhã de Junho.

Beijo.
Mano.


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Educar

[Realizou-se o VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais – A Questão Social no Novo Milénio. Rebeldes tomam escola em Beslan – Rússia e fazem 350 reféns. Presidente Bush encerra a convenção republicana prometendo um mundo ‘mais seguro’. Estados Unidos vetam proposta de países árabes p/ o fim de ações israelenses na Faixa de Gaza. Augusto Pinochet é interrogado pelo juiz Juan Guzmán Tapia sobre a Operação Condor. Secretário Colin Powell afirma que capturar Osama bin Laden continua a ser a prioridade dos EUA. A Rússia aprova adesão ao Protocolo de Kyoto.

[Data da primeira publicação: 10 de Setembro de 2004]

Educar

Querida mana,

De todas as coisas que a vida me tem dado e das coisas todas que me tem exigido, uma se ergue em lugar de destaque como o desafio maior, a maior nau na tormenta mais difícil: Educar!
Admiro, hoje, à distância de quem pode olhar para o tempo que passou com calma e traçar-lhe os contornos do percurso feito, a forma admiravelmente simples como os nossos pais assumiam os gestos mais complexos, os mais difíceis. Para eles, penso, educar era toda uma intuição, todo um fruir de instintos, uma fé.

Olhando para os dias em que fomos meninos e relembrando o que ficou marcado na mente e no peito, quase diria que para eles foi fácil.

Só agora, todos estes anos volvidos, com um filho que me quer ultrapassar e que já calça numero maior do que o meu, sei como foi difícil. Como sofreram nas noites em que voltámos mais tarde, como ficaram expectantes pelas nossas prestações num teste, num exame, como se preocuparam quando adoecíamos, como sofreram quando julgaram não nos ter dado o melhor, como riram com as nossas vitórias, como ficaram felizes com o nosso crescer.

Por vezes penso que gostaria de perceber como fui educado para usar a mesma receita, a mesma estratégia. Mas não há receitas nem estratégias. Os seres são singulares e quem vem a ser pai ou mãe tem traçado um inexorável caminho de sorrisos e lágrimas que não pode controlar. Ainda assim, tento aprender pela memória processos, gestos ou palavras que tenham resultado comigo. E sabes que concluo? Que educar não é como dar aulas. Penso que nós, professores, por defeito de profissão tendemos a confundir um pouco as duas coisas. Mas não podes planificar uma educação e colocar um filho num plano de apoio para o reduzir a uma estatística. Penso, sobretudo, que educar se faz muito menos pelas palavras que pelos actos. As palavras perdem-se na imensidão do tempo e no poço da memória. As palavras da certeza, hoje, esfumam-se na neblina de ontem.

Aposto nos actos que perduram. Não falo de actos pensados e programados para as crianças verem como quem assiste a uma peça de teatro. Falo dos actos que repetimos quotidianamente, daqueles que nos saem com naturalidade, daqueles que nos estão sob a pele e vão construindo a nossa conduta, o nosso carácter. Por pequenos que sejam, são esses os actos que hão-de perdurar, são esses os actos que hão-de educar para além das teorias todas e de todos os livros que os homens pensaram mas não agiram.
Ser honesto é educar honesto. Amar é educar no amor. Ser tolerante é educar para a tolerância. Respeitar é educar no respeito. Resistir é educar para a resistência. Educar é ensinar a educar numa linha contínua de transmissão de condutas, sentimentos e actos que se transmite dos pais para os filhos e dos filhos para os filhos dos filhos até que o tempo o deixe de ser.

É por isso, mana, que não me preocupo muito com a lembrança das frases que os nossos pais usaram e, contudo, jamais esquecerei os actos com que nos fizeram crescer. É por isso, mana, que tenho este pensamento interessante: educar deve basear-se na exigência. Numa exigência que os educadores devem ter, antes de mais, para consigo próprios.

Beijo
Mano


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Mãe

[Violenta explosão de um carro-bomba em Mosul, Iraque. Prisão de 2 líderes da Al-Qaeda em Punjab – Paquistão. Prisão de 13 supostos terroristas na Inglaterra. O Banco Riggs (Estados Unidos) inicia auditoria interna nas contas de Augusto Pinochet. Polícia de Inglaterra prende mais de 50 pessoas acusadas de pirataria. O piloto alemão Michael Schumacher conquista o seu 7º título mundial de F1.

[Data da primeira publicação: 27 de Agosto de 2004]

Mãe

Olá mana!
Nem todas as mulheres que têm filhos são mães!

O tempo, a ascese social e polida dos comportamentos humanos têm vindo a aniquilar os instintos primeiros, primários e primordiais do Homem. O instinto maternal não soube escapar a esta malha de embrutecimento educado, envernizado e profundamente estéril.
Já não caçamos. Vamos ao supermercado. O mais parecido que temos com caçar é um ritual de amontoar papéis burocráticos que entopem os canos das armas. Os tiros, quando surgem, já vêm desfalecidos do poder de caçar. Já vem morto o respeito pela presa.
Já não procriamos. Fazemos amor. Como se estas duas coisas pudessem ser uma só!
Já não comemos nem devoramos. Trinchamos, limpamos a comida e quando chegamos a dar a dentada já não sabemos o que estamos a morder! Os alimentos não são o que são. Não cheiram ao que são.
As mães já não amamentam, já não cuidam, já não acompanham. Forçadas a uma igualdade hipócrita e desumana já não parem, dão à luz! Como se parir tivesse algo que ver com luz. Parir é dor e sangue e medo e o milagre de trazer ao mundo mais um de nós. Forçadas ao trabalho quotidiano, despejam as crias numa gaiola de regras e artifícios com todas as coisas naturais e boas para o crescimento excepto as que fazem bem a quem cresce!

Hoje, quando uma criança diz mamã, não fala da mulher quente e fofa, como foi a nossa, que lhe dá a mama, o sorriso, a palmada, o amparo, aquela que cheira ao mundo que a rodeia. A mamã, hoje, é uma senhora que aparece com a noite à porta do jardim-de-infância, conduz o carro até casa e volta na manhã seguinte ao mesmo local.

Ora, mana, hoje venho cantar a nossa mãe. Venho lembrar-te as pequenas coisas que a fizeram grande. O tom calmo e pausado que punha na voz com propriedades verdadeiramente anestésicas para o medo que lhe acabáramos de revelar. O tom despreocupado com que dizia “isso não foi nada” depois de um sopro no local da ferida. A firmeza com que nos defendia dos outros quer tivéssemos razão, quer não… as contas ajustavam-se portas dentro. A zanga no desrespeito, a exigência de fazer crescer, a palmada no momento certo… às malvas a pedagogia. Crescer é sofrer para aprender a resistir. O ir connosco no primeiro dia de escola, o leite quente de manhã, o preparo do piquenique de casa às costas até com um saquinho de detergente e outro de sal. As batatas fritas, o “até amanhã se Deus quiser” e o riso…

Por vezes, quando quero explicar a alguém o que é o sentir materno, a tarefa complica-se por via dessa natural evidência que é eu ser homem e, preconceitos à parte, nunca ter sentido o que é olhar para um ser humano e saber que fui que o pari. Ainda assim, avanço sempre com este exemplo que é o de ter eu quase quarenta anos e, ainda hoje, a minha mãe julgar que só ela me sabe pentear. Esteja o cabelo curto, comprido ou assim-assim ela pergunta: “ó filho, quem te fez isso ao cabelo?”, põe os dedos em garfo e deixa-o na perfeição que só os seus olhos vêem porque mais ninguém me vê assim.

É a essa irrepetível singularidade do ser, do sentir, do pensar, do dizer e do calor das mãos que chamo mãe. É esse o calor a preservar e a reinventar para as gerações futuras.

Beijo.
Mano.


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O Futuro do Passado

[Por Razões de ordem familiar e profissional, a crónica autobiográfica “Mails a minha Irmã” esteve sem ser publicada durante meio ano entre Janeiro e Julho de 2004. No dia 16 de Julho desse ano foi retomada a publicação com o texto que aqui se re-apresenta.

[Data da primeira publicação: 16 de Julho de 2004]

O Futuro do Passado

Olá mana!

Quase todos nós, e o quase, neste caso, serve só para salvaguardar surpresas, pensamos na vida como um percurso, sobretudo, um percurso de trás para a frente, porque temos a tendência para contabilizar o que já somámos e não o que podemos somar ainda. Este hábito, tão naturalmente humano, tem vindo a servir para aprendermos com as acções passadas mas também nos tem limitado o levantar de cabeça para olhar mais longe, mais fundo e profundo à procura e perscruta do pode fazer-se. Resumindo o arrazoado, queria dizer-te que a humana tentação de olhar o passado tem prejudicado, por vezes, a arquitectura do futuro. Que fazer então? Inaugurar as memórias do futuro? Desprezar as do passado?

Não!

Prefiro pensar na vida sem passado nem futuro. Como uma súmula de intermináveis presentes que vamos construindo apaixonadamente, devotos do ser, hoje. Aliás, bem vistas as coisas, não estou sozinho neste intento. Já reparaste como os falantes da Língua que nos viu nascer usam cada vez mais e só o presente como reduto último da expressão das suas vivências? Já reparaste que, mesmo quando as formas verbais que bailam nos lábios dos portugueses surgem em pretéritos ou futuros, elas estão, de facto, no presente? Será que estamos a perder a capacidade de recuperar o que já foi para sonhar com o que há-de ser? Será que o medo de perdermos a vida que inexoravelmente perderemos nos torna hedonistas ao ponto de desperdiçar as construções que o tempo foi urdindo?

Espero que não! Espero que haja, ainda, algum futuro no passado de todos nós. Espero reinventar no presente a raça que fomos no tecer da que havemos de ser…
É por isso que te escrevo de novo.

É um reatar de presentes que ficaram para trás, é um construir do presente que viveremos amanhã. É este sentir partilhado na cumplicidade e no tempo de sermos irmãos hoje, hoje e hoje.
É um bater-te à porta para te acordar as memórias do que falta viver! É um sussurrar-te que a vida caminha pressurosa e diligente pelo tempo que desperdiçamos, pelas coisas que não dizemos nem fazemos. É um tocar-te no ombro com a suavidade das palavras irmãs, impressas nas linhas que te deixo. É um esperar que algures em todo o mundo e em todas as famílias haja um toque assim. Um olá. Um estou aqui. Um como estás. Um abraço.

Um Beijo.
Mano.


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Quanto vale um par de cornos?

[Esta é a primeira publicação deste texto: 3 de Julho de 2009]

Olá Mana,

O título, hoje, pode parecer-te estranho. E é!

A sua estranheza vem-lhe do estranhamento que sinto na evolução do mundo que nos circunda e da inversão de valores que, paulatina e gravemente, se vai operando. Estive para titulá-lo com um mais digno e ilustre “A inversão” mas depois decidi não fugir a este apelo ribatejano e intrínseco de ruralidade e realidade confrontadora!
Eu lembro-me, como tu te lembrarás, de que não tivemos uma infância marcada pela punição física. Nem o pai nem a mãe iam por esses caminhos com facilidade. E lembro-me também de que, quando optaram por essa solução, ela teve sempre duas características, resultou de algo desproporcionalmente grave que pudessemos ter feito ou dito, que é fazer com palavras, e a falha foi-nos explicada. Valha a verdade, nenhum de nós ficou traumatizado ou deixou de fazer o seu percurso por causa de umas palmadas! Enfim…

Ora, estive aqui a tentar lembrar-me que razões poderiam levar os nossos pais a darem-nos umas palmadas pedagógicas ou, com menos pruridos de linguagem, uma tareia à moda antiga. E a primeira, a razão central, é a mentira! A mãe e o pai suportavam-nos as falhas quase todas mas a mentira vinha à cabeça das inadmissíveis. Por exemplo, se um de nós, na malandrice da infância que leva aos primeiros desafios do status representado e mantido pelos adultos se lembrasse de fazer um par de cornos a alguém, levaria, por certo uma repreensão, uns olhos muito abertos, umas palavras mais severas mas nunca uma tareia, umas palmadas… pura e simplesmente não era falta para tanto. Era uma parvoíce e uma falta de respeito mas nada que se comparasse a uma mentira.

Repara como as coisas mudaram. o Primeiro-Ministro mentiu ao parlamento e à nação quando disse que não conhecia o que se passava no negócio PT/TVI que depois, afinal, já conhecia. O ministro Manuel Pinho fez um par de cornos na Assembleia da República. o Primeiro-Ministro continua em funções. O ministro Manuel Pinho demitiu-se! E a demissão foi aceite por quem? Pelo Primeiro-Ministro!

Ambos tiveram um comportamento reprovável na Assembleia mas repara na inversão. Um gesto, reprovável, é certo, mas superficialmente desrespeitoso, uma parvoíce, uma criancice, teve a reconhecida gravidade de uma demissão enquanto que um gesto profundamente desrespeitoso, um dolo, uma fraude de carácter, passa em branco e incólume.

O que me preocupa é que há pessoas adultas e crianças a ver, a assistir, a comentar e há uma mensagem que, subtilmente, passa: mentir já não é tão grave como dantes. Mentir são só palavras ditas ao contrário da verdade. Aquilo que era a essência passa para a periferia dos valores, bons e maus, e aquilo que era a periferia está a tornar-se essência. E porquê? Porque é visível, porque as câmaras mostram! Ou seja, eu não sei, mana, ao certo, quanto vale um par de cornos mas fico apreensivo quando um par de cornos começa a valer mais do que uma mentira!

Beijo,

Mano.