[Presidente Jorge Sampaio (Portugal) aceita a demissão do primeiro-ministro Pedro Santana Lopes. Presidente Jorge Sampaio (Portugal) convoca eleições para 20/02/2005. Terremoto de 5,4 graus na escala Richter atinge o cabo de São Vicente. Eleições presidenciais e parlamentares em Moçambique.
[Data da primeira publicação: 17 de Dezembro de 2004]
A Dissolução da Assembleia e a Demissão do Ministro
Querida mana,
As famílias têm destas coisas. E estas coisas são as oscilações nos relacionamentos entre os que compõem as famílias. Hás-de lembrar-te, como eu, de dias intermináveis de entendimento em que parecia ter baixado à terra um qualquer halo de entendimento e comunhão, em que todas as pessoas das pessoas todas que nos interessavam pareciam ter acordado para sorrir, para oficiar a simpatia. Eram dias de tolerância e de uma humanidade melhor. Um almoço em comum com viagens de sacrifício, esperas de preocupação sem telemóveis para as encurtar, a alegria do reencontro, as lágrimas, os abraços, e a falta de originalidade das perguntas que não nasceram para ser originais, tão só a expressão sincera de estarmos juntos: “estás com bom aspecto!”, “como corre a vida?” “a viagem foi boa? Fiz uma receita de bolo rei…” Ou um piquenique de areias brancas, fatos-de-banho à anos setenta e talhadas roídas de melão a espreitar, inconscientes e despreocupadas, da areia vulnerável ao ser português que vem morrendo sem consideráveis melhoras da areia. Ou noites infindas de natais maravilhosos de dormir pelo chão, conversar as conversas todas, provar todos os doces, beber de todas as taças e contar as histórias todas já todas ouvidas mas sempre bem-vindas aos momentos de estarmos juntos!
Nestas alturas fomos uma união, um grupo coeso, sem brechas no horizonte.
Fomos uma célula coesa da sociedade que gravitava em volta. Não nos dissolvemos nem nos demitimos do que escolhêramos ser!
Também te lembrarás, com menos razões para sorrir, dos dias mais cinzentos (perdoe-me o cinzento pela parcialidade cromática), das vozes iradas, das grandes discórdias. E lembrar-te-ás, com apreensão no teu rosto de menina que nunca te vejo mulher, dos gestos de que a família se arrependeu ou devia ter arrependido, das decisões a abrir facções de opinião, do não pensarmos todos o mesmo. Lembras-te, de certo, dos períodos mais ou menos longos, mas sempre condenáveis em que alguém não conversava com alguém. Em que o peso de afirmar-se na vida e nas convicções pessoais rasgou a coesão e a vontade de estarmos em uníssono. Eram momentos de dor para os envolvidos e de dor eram esses momentos para os que observavam o processo com conselho daqui, opinião dali. Quase parecia, nesses momentos, que o mundo fazia menos sentido. Que a razão de estarmos vivos se nublava na frente dos olhos e perdíamos, um pouco, perante a imensidão do mundo sem a coesão dessa célula a que fomos chamando família por hábito e tradição.
Não fomos, nesses momentos, uma célula coesa da sociedade que gravitava em volta, contudo, mana, a menos que a memória me atraiçoe o raciocínio eu diria que nem mesmo nesses momentos algum de nós se atreveu a dissolver a célula ou a demitir-se dela!
O que seria de nós se o avô deixasse de ser avô, se as tias deixassem de ser tias, se o pai deixasse de ser pai, se a mãe deixasse de ser mãe, se a avó deixasse de ser avó? O que seria de nós se nos tivéssemos dissolvido e demitido deste compromisso que é ser eu teu irmão e tu a minha mana?
Beijo,
Mano.

Por vezes penso que gostaria de perceber como fui educado para usar a mesma receita, a mesma estratégia. Mas não há receitas nem estratégias. Os seres são singulares e quem vem a ser pai ou mãe tem traçado um inexorável caminho de sorrisos e lágrimas que não pode controlar. Ainda assim, tento aprender pela memória processos, gestos ou palavras que tenham resultado comigo. E sabes que concluo? Que educar não é como dar aulas. Penso que nós, professores, por defeito de profissão tendemos a confundir um pouco as duas coisas. Mas não podes planificar uma educação e colocar um filho num plano de apoio para o reduzir a uma estatística. Penso, sobretudo, que educar se faz muito menos pelas palavras que pelos actos. As palavras perdem-se na imensidão do tempo e no poço da memória. As palavras da certeza, hoje, esfumam-se na neblina de ontem.
Ora, mana, hoje venho cantar a nossa mãe. Venho lembrar-te as pequenas coisas que a fizeram grande. O tom calmo e pausado que punha na voz com propriedades verdadeiramente anestésicas para o medo que lhe acabáramos de revelar. O tom despreocupado com que dizia “isso não foi nada” depois de um sopro no local da ferida. A firmeza com que nos defendia dos outros quer tivéssemos razão, quer não… as contas ajustavam-se portas dentro. A zanga no desrespeito, a exigência de fazer crescer, a palmada no momento certo… às malvas a pedagogia. Crescer é sofrer para aprender a resistir. O ir connosco no primeiro dia de escola, o leite quente de manhã, o preparo do piquenique de casa às costas até com um saquinho de detergente e outro de sal. As batatas fritas, o “até amanhã se Deus quiser” e o riso…