Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Crónicas de África – O Homem do Pau

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Crónicas de África – O Homem do Pau

Maputo, 3 de abril de 2015

Uma das irrevogáveis conclusões de quem se muda para o grande continente vermelho é que ‘África desformata-nos’. Tínhamos acabado de conversar sobre isto e não sabíamos ainda que dentro de momentos a nossa adaptabilidade seria de novo posta à prova.

O facto é que África tem uma força e um poder tremendo sobre as pessoas e obriga-as a tornarem-se mais fortes, mais adaptáveis e menos formatadas. Somos forçados a construir as nossas próprias soluções e sabemos que a única coisa absolutamente previsível é a imprevisibilidade.

Quisemos passar meia dúzia de dias junto ao mar, revisitar Vilankulos pareceu uma solução fantástica, sobretudo porque a escassos 30 minutos de barco fica a ilha de Magaruque e o seu recife de coral com milhares de espécies diferentes de peixes. Nadar ali é como entrar num gigantesco aquário de água quente. Ora, o nosso cão, Poloni, é companhia fundamental e por isso mesmo a escolha do alojamento teria de o incluir. Quando finalmente encontrámos um lodge de que gostávamos, dentro do nosso orçamento, e que anunciava ser ‘Pet friendly’, que é como quem diz, amigo dos animais, desconfiámos. Telefonámos. E do outro lado da linha a senhora confirmou, em tom entusiasmado, que podíamos levar o cãozinho, ela gostava muito e também tinha os seus. Ficámos satisfeitos. Pois, isto é África. Deveríamos ter feito mais perguntas. Entretanto, de entre a vasta oferta de quartos, quartinhos, quartões, casas, cabanas e chalets, reparámos que havia uma cuja descrição parecia muito confortável e até tinha dois chuveiros e uma cozinha. Não demos muita importância ao nome, ‘Payota’, porque nestes casos os nomes são simbólicos. Devíamos ter dado.

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A viagem, como sempre, foi fantástica. Como já aqui se escreveu, a estrada nacional 1, em Moçambique, está prenhe de vida. E, como tal, os 730km e as 11 horas de viagem levam-se bem. A primeira paragem foi em Xai-Xai, é uma cidade à saída de Maputo pois dista somente 200km da Capital. Parámos no ‘Pontinha’ e comemos uns deliciosos pregos no pão às 7 da manhã a conselho da Isa. Excelente conselho. Excelentes pregos. Pelo caminho fomos comprando fruta e quando estávamos a chegar ao destino, já percorridos alguns quilómetros em terra e areia, sim, que o Paraíso é maravilhoso, mas os acessos são tramados, e conversávamos sobre estarmos menos formatados e mais resistentes, a tal da resistência foi de novo invocada! À chegada ao lodge Dona Soraya, propriedade da própria Dona Soraya, uma senhora alta, muitíssimo empreendedora e determinada, indefetível contadora de histórias, com ascendência indiana, inglesa, espanhola e alemã, casada com o dinâmico e empreendedor Pieter, um suíço a viver em Moçambique há quase vinte anos, fomos recebidos por uma matilha de sete cães façanhudos, com ar de poucos amigos, rosnadela fácil e o pêlo a eriçar-se no lombo. Quando ela disse que também tinha CÃES, eu sabia que CÃES era plural, mas estava longe de imaginar tanto plural. Ora, o Poloni tem o seu feitio e não se ensaia nada para dar uma rosnadela feroz, mas estou convicto de que o meu cão não sabe contar, é que, até eu que fui para letras, percebi de imediato que eles eram muitos. E não acharam piada nenhuma ao caráter do novo amiguinho e fizeram-se a ele e vai de o morder até eu os conseguir afastar a todos. Mais tarde, ainda fiz uma nova tentativa de aproximação amigável e diplomática, mas nova saraivada de mordidelas, com o Poloni sempre a ajudar à festa com seu rosnanço grosso, fez com que Dona Soraya me desse uma lição. Uma lição e um pau. A lição foi eu não perder tempo a tentar fazer que eles ficassem amigos porque quando os animais não querem é porque não querem. E o pau foi para eu marcar território e mostrar quem manda. ‘E se for preciso dê-lhes com ele!” Não foi preciso. Assim que os sete façanhudos me viram de pau na mão, nunca mais se aproximaram de mim quando eu estava com o Poloni. Ficavam a olhá-lo de longe e a respeitar a minha autoridade que na verdade não era minha, era do pau. Mas há mais. Quando eu passava por eles sem o Poloni e sem o pau vinham abanar-me a cauda e lamber-me as mãos e até foram comigo à praia e guardaram-me as coisas enquanto fui ao mar. Assim, mais ou menos como se eu fosse um deus na terra. Ora, durante aquela semana, quem me via de pau na mão, via-me com um cão junto a mim e sete ao largo. Quem me via sem pau na mão, via-me a ser venerado por sete façanhudos e eriçados muito dóceis cãezinhos!

Ora, Soraya fala tudo. Português, inglês, francês, alemão e espanhol. Algures entre o português e o espanhol, com algum inglesamento, ela agarrou na palavra ‘palhota’ e converteu-a em ‘payota’. Palhota é uma casa de palha e foi isso que alugámos. Confortável, claro. Com os tais dois chuveiros e a cozinha que mal usámos e uma vista ultrajantemente bela a partir do jardim do lodge. Em todo o caso, é uma casa de palha. Ou seja, o contacto com a Mãe Natureza é mesmo muito próximo. Eu fiz amizade com um lagarto que dormia por cima da minha cama, no teto, e juro que não foi preciso ar condicionado porque o ventinho corria à vontade por entre a palha da palhota. Tudo aquilo foi uma imersão em padrões africanos a exigir adaptabilidade e a proporcionar umas férias genuínas de lume aceso onde eu, o Pieter e o Werner discutíamos política, finança, técnicas de acender o lume e resolvíamos os problemas do mundo enquanto grelhávamos uns bifes e umas salsichas de nome impronunciável. Foram uns dias muito bem passados e eu senti-me particularmente bem, assim como uma espécie de chefe da tribo. Afinal de contas quem tinha o pau era eu!

jpv


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Crónicas de África – Roteiro Gastronómico de Maputo (1)

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Crónicas de África – Roteiro Gastronómico de Maputo (1)

Maputo, 13 de outubro de 2014

Precisei de tomar banho. Às vezes, lá muito de vez em quando, acontece-me. A caminho da banheira, passei pela balança e assim que vi o número escarrapachado no visor, a pergunta estalou-me na cabeça como uma bomba:

– Mas como é que isto aconteceu?!

Foi ao tentar elaborar uma resposta para aquela pergunta que esta crónica me surgiu. Desde já aviso que isto não pretende ser um roteiro exaustivo, nem sequer pretendo aconselhar ninguém a ir a lado nenhum, nem tenho comissões, nem sou gastrónomo, nem fiscal. Gosto de comer, descansado, em boa companhia, e gosto das memórias que alguns locais me semeiam quando lá como. Ou seja, mais do que um roteiro, é um caderninho de boas memórias gastronómicas. Estou no meu terceiro ano em Maputo e o meu palato lembra-se de algumas coisas que decidi partilhar.

Maputo tem muito mais oferta do que aquela que vou referir e sei que vou voltar para referir outros locais, daí ter numerado a crónica com um (1)… Em todo o caso, vou registar um ou dois pratos por restaurante, aqueles que me agradaram mais, caso tenha lá comido mais do que uma vez, ou aquele que me causou uma excelente impressão. Claro que vou fazer juízos de valor, mas esses decorrem somente das minhas impressões. Não são nenhuma espécie de lei. Mas isso, os leitores já sabiam.

Piri Piri

É talvez o restaurante mais concorrido da cidade, tem uma clientela muitíssimo variada. Muitobem situado no coração da cidade, com serviço rápido e simpático e algumas confusões nas contas, mas nada de preocupante. É que a azáfama é muita. A oferta é variada, mas isso não interessa para nada. No Piri Piri come-se frango de churrasco. Ponto final. Invariavelmente bem confecionado. Há mais. Sem qualquer espécie de problema, afirmo que é onde se bebe a melhor imperial em Maputo. Sempre bem gelada. Sempre bem viva. Sempre perfeita. Não me lembro de ter bebido uma imperial assim-assim no Piri Piri. A mousse de chocolate termina bem. Gasto médio por pessoa: 500 meticais.

Cristal

Nem dá para pensar duas vezes: caranguejo ao natural. Ponto. É claro que a açorda de garoupa e a massada do mesmo peixe são excelentes, mas na Cristal é caranguejo ao natural. Serviço simpático e célere. Para terminar, tem tarte Tatin fantástica. Gasto médio por pessoa: 650 meticais.

Zambi

O ambiente deste restaurante é muito agradável, sobretudo, se decidirmos comer na rua, sob as palmeiras. Da variada oferta, que não conheço, nem é preciso, elejo o prato que comi quando lá fui a primeira vez e que sempre repito quando lá volto. Arroz de pato. É ao sábado. Deve acompanhar com a soberba sangria de champanhe e maracujá. No fim, há um petit gateaux de chocolate com bola de gelado que é divinal. Gasto médio por pessoa: 900 meticais.

Costa do Sol

Dizem as vozes da cidade que o restaurante Costa do Sol já foi bom, que já não é o que era, etc e tal. Mas isso diz toda a gente em relação a tudo. A não perder a decoração interior. A não perder os camarões grelhados com batata frita e molho acre. Tem uma boa imperial. Serviço simpático e célere. Gasto médio por pessoa: 600 meticais.

Mimmos

É um daqueles restaurantes de comida pré-feita, uma espécie de franchising de pizzas e massas ao estilo italiano. A imperial deixa a desejar. Mas o macarrão de galinha assada é delicioso. Vale a pena. O serviço é invariavelmente lento. Gasto médio por pessoa: 450 meticais.

Kalus

Ainda que tenha zonas cobertas, a sala de jantar deste restaurante é, basicamente, num jardim, no centro do qual ficam enormes assadores de carne. E é essa a especialidade da casa. Carne grelhada na brasa. A dita carne compra-se ao balcão, ainda crua, e só depois de feita a aquisição do naco é que ele vai a cozinhar. Ideal para quem quer fazer uma churrascada sem ter de lavar a loiça. O serviço é lento, mas carne grelhada não promete outra coisa. Gasto médio por pessoa: 400 meticais.

Hotel Cardoso

Esqueçam lá a comida. Aquilo é bom por causa da paisagem. O restaurante fica numa varanda com vista sobranceira ao mar. O naco na pedra é excelente. Ambiente super agradável. Serviço muito bom. Gasto médio por pessoa: 1000 meticais.

Clube Marítimo

A localização é convidativa. A esplanada do restaurante fica encostada à rebentação do pacato Índico. O som do mar é a música de fundo e a brisa é inspiradora. Todas as massas italianas são muito boas, mas o que mais me atrai neste restaurante nem é um prato, é uma salada. A salada de marisco é simplesmente divinal. Servida fria, claro, tem um equilíbrio fantástico entre o sabor do marisco e o das ervas usadas para aromatizar o prato. Aconselha-se a caipirinha de maracujá para empurrar. Além disso, este restaurante tem a melhor sobremesa de Maputo. Bolo de mousse de chocolate. É de comer e chorar por mais. Gasto médio por pessoa: 650 meticais.

Mundos

Também é um restaurante de comida pré-preparada. O ambiente é muito agradável. A sala central tem uma cobertura típica de África, feita de ramos muito juntos e apertados, o que a torna fresca e agradável. A espetada de galinha com molho shutney é muito boa. Boa imperial. Gasto médio por pessoa: 500 meticais.

A Casa do Peixe

Aqui está outro restaurante onde o que mais me atrai não é um prato principal. Claro que o filete de garoupa grelhado é soberbo, mas ir à Casa do Peixe e não comer uma sopa rica do mar, é como ir a Roma e não ver o Papa. A sopa é perfeita. É um generoso creme de frutos do mar. Generoso na qualidade da confeção e na quantidade servida. O serviço é simpático e célere. Para fechar, tem um bolo de chocolate que vale bem a pena, na boca, as calorias que hão instalar-se mais abaixo. Gasto médio por pessoa: 1000 meticais.

Marginal

Dar um passeio pela marginal até à Costa do Sol, ir à praia, sentar nas esplanadas improvisadas e comer com as mãos um frango no churrasco com uma 2M a acompanhar não é má ideia. Pezinho na areia e batatas fritas daquelas enormes como a minha avó fazia. Gasto médio por pessoa: 200 meticais.

E pronto, para já é tudo. Agora tenho de ir dar uma corridinha… Um dia destes, conto mais!

jpv


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Crónicas de África – Antes a Multa!

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Crónicas de África – Antes a Multa!

Maputo, 6 de outubro de 2014.

É comum encontrar nas ruas de Maputo, em particular, escrito em muros ou em vedações metálicas temporárias para realização de obras, inscrições que ameaçam com multas quem urinar no local. É verdade, também, que as multas variam e a amplitude do valor cobrado é muito grande. Já vi locais onde a multa é de 50 meticais, mas também já vi de 100, 200 e mesmo 500.

O que eu nunca tinha visto, e por isso registei, foi uma oferta diversificada. Uma coisa do tipo ‘à escolha do freguês’! A verdade é que, quem quer que seja que mora ali, trabalha ali ou passa ali, parece determinado a não ser incomodado com o mijar alheio.

Ora, a coisa cheira-me a discriminação mictória. Vejamos. Qual o critério que determina a diferenciação do valor a pagar? O volume da tiragem, o tempo de micção, o aspeto do infrator? É o infrator que escolhe o meio de pagamento? Assim, do género, ‘Não trago aqui dinheiro, posso, em vez disso, levar um enxerto de porrada?’  Enfim, seria útil esclarecer o critério. Mais útil e pertinente seria informar a população acerca dos critérios que implicam a coima mais agressiva. Simpaticamente designada de ‘PURADA’, mas, a meu ver, a anunciar maleitas físicas significativas no infrator porque, ou muito me engano ou, onde se lê ‘PURADA’, deve ler-se ‘PORRADA’.

Para os menos entendidos nestas matérias de índole legal eu transcrevo a inscrição:

‘NÃO MIJAR AQUI. MULTA 150-200MT OU PURADA’

E aproveito para a esclarecer porque as coisas em linguagem legal são sempre um pouco opacas. Sentido da inscrição:

‘NÃO URINAR AQUI. MULTA DE 150 A 200 METICAIS OU AINDA A POSSIBILIDADE DE TE PARTIRMOS A OSSADA TODA!’

E pronto, por hoje é tudo. Se me dão licença, vou ausentar-me, tenho de ir ali e já venho!

jpv


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Crónicas de África – O Senhor M

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Crónicas de África – O Senhor M

Preserva-se a identidade do senhor M. Mas revela-se o que mais interessa. O espírito.

É difícil não gostar dos moçambicanos. São incrivelmente alegres e felizes, são bem dispostos, não sofrem de stress, não têm rancor e têm uma relação com a vida e com as palavras repleta de genuinidade e ternura.

É pintor. Pinta casas, portas, paredes, vedações e mais ou menos tudo o que possa ser coberto de tinta. Eu precisava de um. Deram-me o contacto dele e logo pelo telefone me pareceu uma personagem interessante como, de facto, se viria a revelar. Combinei encontrar-me com ele cedo, mas não a uma hora violenta. Vai daí, marcámos para as sete horas. Trazia um ajudante com um pequeno saco de plástico que mais parecia a mala da Mary Poppins. É que, mais tarde, viria de lá a sair um panal para proteger o chão, fita adesiva, uma espátula, um pincel e a roupa de trabalho. Pois, pelas sete da manhã, o senhor M não apareceu em traje de trabalho. Veio de fato. Eu senti-me respeitado e tive pena de não estar um pouco mais arranjado. Calça de ganga e camisa de manga curta por fora das calças não faz justiça a um fato.

Enquanto cruzávamos a avenida marginal com o mar a embalar a manhã, rolando suavemente na estrada acabadinha de fazer e quando eu me preparava para elogiar a estrada para desbloquear conversa, ele avançou:
– Essa estrada não é boa ideia.
– Ai não?
– Não. Fizeram em cima o mar. Ele há de vir buscá-la.

Achei a observação curiosa porque a história das estradas de Maputo está repleta de episódios em que o mar as engoliu.

Eu tinha comprado tudo. Rolo de pintar, tabuleiro, trinchas, fita adesiva e até a tinta. Era fácil, bastava comprar tinta branca e pronto. Não consegui deixar de sorrir à forma como ele avaliou a qualidade da tinta que eu comprara. Agitou vigorosamente a lata de 20 litros, abriu-a, mexeu-a, colocou um pouco de tinta na tampa da lata, chegou-a ao nariz, inspirou profundamente e ditou a sentença:
– Eh… gastou o dinheiro, mas essa tinta aqui não há de ter qualidade.
– Então?
– Não cheira a tinta de qualidade. Havemos de aproveitar para os tetos.
Depois deu duas pinceladas com a tinta mal cheirosa na parede, vagueou pela casa e num local onde havia desperdícios da recente passagem do canalizador, ele voltou a sentenciar:
– Eh… depois dizem que os pintores sujam as casas. Tudo vai de como se mergulha o rolo na tinta. Pode vir um homem, começar a pintar e parece que está a chover tinta, mas eu, quando começo a pintar, até podia pintar com o fato vestido!
– Mas não faz isso…
– Eh… não! A minha mulher havia de se zangar.

E eu a pensar que podemos ser diferentes em muitas coisas, mas no que respeita ao que as mulheres pensam da roupa que usamos para as bricolages, estamos de igual!

Lá fomos comprar tinta de qualidade. Ele aconselhou, eu segui o conselho, comprei a tinta que ele escolheu, com direito a desconto por ser ele cliente da casa e ter transferido o privilégio para mim. Enquanto íamos no carro e falávamos um com o outro, ele contou um pouco da sua história. Mas eu retive só uma parte dela porque a minha mente ficou presa numa frase tão deliciosa que até desejava ter sido minha, mas não foi. O poeta foi ele. Eu, hoje, sou só o cronista.

– Uma vez aceitei o trabalho de pintar uma casa lá no Tete. Xiii, nunca mais… Perdi dinheiro nesse trabalho aí. É longe.
– E como é que foi?
– Fui no chapa. Primeiro era até ao Chimoio, depois mais uma terra lááááá, depois outra, xiiii, só chegámos três dias depois. E mais três dias para voltar e eu a perder trabalhos aqui ao pé de casa. Mas isso não foi o pior…
-Então?
– Esses chapeiros são perigosos a guiar, não respeitam a velocidade, adormecem, xiii, lá no Tete houve uma curva onde até morremos um bocadinho.
– Como assim?
– Eh… o chapeiro entrou pelo mato…

E fiquei a pensar na curva onde o senhor M morreu um bocadinho. A naturalidade com que aquilo lhe saiu, a invejável facilidade com que formulou uma frase tão elegante, tão bela e genuína e, contudo, tão complexa…

Depois, chegámos a casa e ele a olhar as paredes com um olho aberto e outro fechado como quem lhe tira as medidas e voltou lá onde tinha dado as pinceladas na parede e essa tinta já estava seca. Ele esticou o dedo mindinho de unha comprida, arranhou e a tinta cortou-se.
– Eu não disse que não tinha qualidade?

E pronto, foi-se vestir e dar a primeira camada, como ele disse, para matar a cor que estava por baixo.

Amanhã vou revê-lo e espero renascer mais um bocadinho.

——————————- jpv ——————————-


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Crónicas de África – Um Dia em Inhaca

Às seis e meia da manhã estávamos no Continental a tomar o pequeno-almoço. Para mim, café duplo e pastel de nata. Quentinho! Uma só mochila, uma toalha, protetor solar, água e umas sandes que foram e vieram. A máquina fotográfica, pois claro. É conhecido em Maputo pelo barco da Vodacom porque a transportadora é patrocinada pela telefónica. É um catamarã simples que percorre os cerca de 40km entre Maputo e a Ilha de Inhaca em uma hora e quarenta minutos. A brisa marinha e o odor do oceano semeiam aventuras na imaginação e a verdade é que, à medida que nos afastamos da capital e nos aproximamos da ilha, o oceano vai-se limpando e o seu azul vai-se tornando cada vez mais forte e límpido. Chega a uma altura em que o azul do mar é tão forte e desenha um linha de horizonte tão definida que quase parece irreal.

A chegada à ilha fez-se com maré baixa. Vai de mudar de barco para barquinho e depois fazer os últimos cem metros com água pelo joelho e a receção não poderia ter sido mais espetacular. Centenas de Estrelas-do-Mar dos mais variados tamanhos e cores receberam-nos em admiração pela fartura  e pelo espetáculo proporcionado. Foi possível pegar-lhes e sentir que estavam vivas pelo movimento dos filamentos na parte inferior. Os curadores da ilha surgem a avisar para as devolvermos ao mar.

Escolhemos um passeio numa carrinha pick-up 4×4 até ao farol. A estrada está ladeada de palmeiras e cruza diversos povoados. O farol está construído em alvenaria por fora, mas por dentro é um gigantesco cilindro metálico com uma escada em caracol muito estreitinha. Cento e dezasseis degraus contou o Rodrigo e nós acreditamos. Ao subir, há vários troços onde o breu é total e torna-se necessário progredir só com a orientação do tato. Lá em cima, além da imponência e da beleza da paisagem, observámos uma família de baleias em brincadeira dominical. Numa das paisagens há duas linhas no horizonte tão definidas que parecem melhoradas com PhotoShop. Mas não são. Trata-se do verde intenso e cerrado da vegetação a mergulhar no azul profundo do mar e este a demarcar-se  do suave céu.

Depois visitámos uma das muitas praias. Fomos ao banho por entre as centenas de anémonas que por ali andavam. Sem problemas. Não havia a perigosa variedade bluebotle cujo contato provoca dores fortes. O Renato distingue-as bem! Uma ondulação suave e uma temperatura cálida das águas convidavam a mergulhos demorados. Tudo isto sempre acompanhado de uma variedade imensa de aves de canto cristalino e generoso. Um sol forte a pedir muito protetor solar e muita aguinha para beber.

Almoçámos no Restaurante Lucas. É gerido pelo próprio senhor Lucas, um natural de Inhaca, muitíssimo simpático. Caranguejo, frango assado, uma deliciosa salada de couve e umas geladinhas para acompanhar. No regresso, dormitámos sonhando com um dia diferente, em boa companhia, a conhecer e a usufruir do melhor de Moçambique. Anémonas bailavam à volta do barco e aves passavam rasando o oceano. Esta terra merece a Paz. Ainda bem que os homens se estão a entender.

Ao final do dia, já em casa, uma conclusão era evidente: um dia não chega para conhecer Inhaca. A ilha é enorme e tem tantas coisas para ver, tantas praias para visitar, coral a descobrir, aves a fotografar… e a Ilha dos Portugueses, mesmo em frente, a pedir um passeio na maré baixa pelos seus extensíssimos bancos de areia. Havemos de voltar.

Por agora, o regozijo de ter descoberto um pouco mais da encantadora nação moçambicana.

Aí ficam algumas fotos deste dia fantástico!

jpv

Fotos de Um Dia em Inhaca

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Regresso com Maputo ao fundo.

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Sorrisos ao final do dia.

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Ilha de Inhaca.

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Azul profundo.

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Ilha dos Portugueses ao longe.

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Ave autóctone em pose altiva.

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Sanduiche.

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Renato a vigiar anémonas.

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Tourist Stile.

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Baía no ‘Saco de Inhaca’.

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O casal maravilha. Primos fantásticos.

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O splash da baleia.

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Suave ondulação.

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Linhas definidas.

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Palmar em Inhaca.

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Bancos de areia em Inhaca.

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Mar e terra.

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O farol de Inhaca.

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Comité de boas-vindas.

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Palmeiras bordejando a estrada.

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Rodrigo a vigiar o pai.

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Espetáculo de cor.

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Espetáculo de cor.

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Tantas!

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Só por este sorriso voltava lá todos os dias!

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Pesca em Inhaca.

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Pescadores vigiados por ave boiando.

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Inhaca à chegada.

Nota: nenhuma foto sofreu qualquer tratamento, contudo, a sua definição foi reduzida para facilitar a publicação. Clicando nas fotos poderá vê-las um pouco maiores.


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Crónicas de África – Coisas do Quotidiano (2)

crónicas de áfrica - african chroniclesCrónicas de África – Coisas do Quotidiano (2)

Há pormenores sobremaneira interessantes e curiosos nesta vida africana em Maputo. O encanto dos primeiros dias mantém-se, acontece que agora está filtrado pela experiência e algumas coisas que nos poderiam incomodar ou fazer gastar energias são encaradas à maneira africana: não queiras consertar o mundo, resolve o teu problema do momento. Este tipo de atitude tem de se aprender e interiorizar caso contrário andaremos quixotescamente a demandar moinhos metamorfoseados.

O que se passa é que esta Crónica de África tanto poderia chamar-se Coisas do Quotidiano (2), como Problemas de Bricolage, ou ainda A Casa Assombrada. Qualquer um deles assentaria que nem uma luva dependendo da perspetiva por que optarmos. Em nome do pragmatismo blogueiro, escolhi o primeiro. Mas admito que prefiram outros umas vez lidas as linhas que se seguem.

Nós gostamos da nossa casa. Tem muito boas condições. Cozinha nova, casa-de-banho nova, chão impecável, bons espaços, bom estado geral, excelente varanda, garagem, água e luz regulares, bairro seguro. Um tanto cara, mas há opções que é preciso fazer… Tenho mesmo para mim, porque andei visitando casas anunciadas e verificando o seu estado, o que tinham para oferecer e os preços, que esta casa é um oásis em certo deserto… Ainda assim, para quem possa pensar que viver no estrangeiro é pera doce, aqui ficam alguns pormenores que, num passado recente, nos têm assombrado o quotidiano… em casa!

Tomadas
Na sala, há duas tomadas de energia elétrica. Estão em paredes diferentes, vêm em cabos diferentes do mesmo quadro. Uma está na parede da televisão atrás de um móvel e outra atrás de um sofá. Aqui há uns tempos, a televisão e tudo o que estava ligado a essa tomada, desligou-se. Verifiquei, limpei, desinstalei, voltei a instalar e nada. À boa maneira africana, deixei ficar. Que se lixe! pensei. Há de voltar. E voltou. Dois dias depois. Azar dos azares, mais dois dias volvidos e voltou a pifar. Acontece que, quando os fenómenos se repetem, nós tendemos a procurar aquilo que está igual e aquilo que está diferente. Ora, o que estava igual é que sempre que a tomada da televisão deixava de funcionar era porque tínhamos algo ligado à tomada que está atrás do sofá! Medo! Muito medo. Se for um telemóvel a carregar na tomada atrás do sofá, tudo normal. Se for o router da net, tudo normal. Mais do que isso, mesmo dois simples telemóveis a carregar e a televisão e toda a parafernália que está na tomada do outro lado da sala despedem-se e não voltam mais… Das duas uma, ou chamo um exorcista ou um eletricista! Sendo que em Maputo a diferença entre estes cavalheiros está muito esbatida! Não acreditam? Uma vez veio cá a casa uma pessoa que mandou fazer um furo na parede sabendo-se que estava um cabo nesse local. Ele olhou o homem do berbequim e disse, Tem fé! Fura! Por Alá! O outro furou e não aconteceu nada. Ele apressou-se a dar uma gargalhada, olhou o outro com ar incrédulo e disse-lhe, A Fé faz milagres!

A Lâmpada Que Geme
A lâmpada do meu escritório geme! Não, não são os vizinhos de cima que aquilo é tudo gente tranquila e educada em quem se pode confiar, é mesmo a lâmpada que geme. Primeiro, começou por ser um leve ruído. Depois um zumbido e agora é um inequívoco gemido como se alguém se estivesse a queixar das dores do reumático…

Quebra Parcial
Um dia destes faltou a luz. Um daqueles fenómenos em que as luzes todas se apagam e no instante seguinte retomam o seu normal funcionamento. Claro que obriga a acertar os relógios digitais e a ligar de novo a Tv e a net, mas não é nada do outro mundo. O que já não me parece tanto deste mundo é o que me aconteceu no sábado passado. Faltou a luz por momentos e logo, logo, voltou, mas… foi só nas lâmpadas! Os eletrodomésticos ficaram incólumes à quebra! Vantagem: não foi preciso acertar relógios digitais!

Só ao Pontapé!
Tenho um candeeiro no meu quarto que é teimoso. Uns dias acende. Outros não. A ficha tripla que está no chão deve ser a causadora. Já a limpei, abri, endireitei os condutores, e ela volta ao mesmo. Ora jorra luz, ora apaga-se. Mas descobri mais. Sempre que lá vou tratar dela com carinho, ela fica indecisa. Umas vezes funciona, outras não. Se lá chego e lhe espeto um pontapé, funciona sempre. Há coisas que não dá para entender. Mas se funciona assim, tomei uma decisão, ligo sempre o candeeiro antes de me descalçar. Leva o pontapezinho da ordem e fica a funcionar às mil maravilhas…

Fogo de Artifício
Já aconteceu cá em casa algo de muito curioso e até com certa aura transcendental. Na cozinha, por ser grande, há duas lâmpadas. Uma cá, ao pé da porta. Outra lá, ao pé do lava-loiças. Acendem num interruptor, cá, ao pé da porta, que tem dois botões, um para cada lâmpada. Aqui há uns meses, ao acender a lâmpada de lá, aquilo deu um estoiro, largou uma carrada de faíscas que iluminaram a cozinha e se precipitaram para o chão e ficou um leve cheiro a queimado. Como é o tipo de coisa que pede por um eletricista e os tetos aqui têm cerca de três metros de altura, pensei para comigo: Ou compras um escadote e arranjas tu, ou chamas um eletricista. Chamar o eletricista é capaz de não ser grande ideia porque a primeira coisa que ele vai dizer é Boss, por acaso não tens aí um escadote? É que eu preciso subir… Enquanto me decidia sobre que curso de ação seguir, deixei bem claro cá em casa que não se podia acender a lâmpada de lá! Mas, passados uns dias, fui eu mesmo que me esqueci e quando precisei de acender a lâmpada de lá, pressionei o botão do interruptor e a lâmpada… acendeu! Eu nem reparei. Mas a Paula reparou. Entrou na cozinha e perguntou, Então essa lâmpada já acende? Pelos vistos, já. Respondi e fiquei a olhar para ela. É que eu vi claramente visto com estes dois que a terra há de comer aquilo tudo a arder! Funciona? Esquece, ’tá resolvido!

Enganam-se!
As pessoas que estão a ler esta crónica, sobretudo os homens, mais sobretudo se não viverem em África, já estão com a ideia arrogante de que eu preciso é de um eletricista. Enganam-se. O meu quadro foi todo revisto e estabilizado e a minha instalação foi parcialmente substituída por cabos novinhos em folha… isto são fenómenos próprios de um continente onde tudo tem mais força, até mesmo aquilo que não compreendemos. Não se luta contra, não se tenta consertar África. Mergulhamos em África, deixamos que África tome conta de nós e vivemos em África como se vive em África. Deliciosamente despreocupados com essas coisas menores! Quem é que pode deixar de ser feliz porque não percebe como é que uma lâmpada que ardeu funciona na perfeição, melhor do que uma ficha tripla acabada de comprar? Ninguém! A felicidade, em África, não passa por aí!

A Máquina Andante
A minha máquina de lavar roupa anda! Anda para a frente. Já foi calibrada, recalibrada, ajeitada, inclinada, presa com um cordel e calibrada outra vez, o chão já foi nivelado e até já a ameacei que lhe dava dois murros no tampo. Nada resultou. Anda sempre para a frente cerca de vinte centímetros e quando está mesmo para cair da plataforma de betão onde está empoleirada, pára! Simples. Se não chega a cair, não constitui problema. Empurra-se para trás e pronto.

O Milagre da Chuva no Duche
Quando aluguei a casa, fiquei feliz porque além do chuveiro de mão, tinha um chuveiro de parede, daqueles que a gente se põe lá de baixo e a água jorra avonde e toma-se uns duches muito retemperadores. Acontece que nunca consegui rodar as torneiras desse chuveiro. Tentei desmontá-las e nada. Tentei rodá-las vezes sem fim e nada. Usei chaves para as rodar e nada. Nem a água fria, nem a quente. Era um desconsolo. Um tipo ia para a banheira e tinha de agarrar no chuveiro de mão com o outro ali ao lado a fazer negaças. E fui tentando ao longo de vários meses até desistir por exaustão. Um ano e meio depois de estar na casa, num dia em que nem sequer ia tomar banho, fui só lavar os dentes e pensei, Já para aí há um ano que não marro contigo, deixa cá ver… e rodei devagarinho, com a força que até uma criança de cinco anos consegue fazer. E ela nem gemeu, nem ofereceu resistência. Abriu-se e choveu água fria. Tentei na da quente e o milagre repetiu-se. De lá para cá, tenho tomado banho mais assiduamente para aproveitar não vão um dia destes as torneiras fartarem-se e voltarem à primeira forma…

Televisão Seletiva
A televisão anda muito seletiva ultimamente. Só dá som nos canais que lhe apetece. Não, não é nada com os cabos. Já tirei os cabos, já revi os cabos, já reinstalei os cabos e acontece sempre o mesmo. Há dias em que o som é geral, ouve-se tudo cristalinamente em todos os canais. E tem dias em que o som é seletivo. Alguns canais são sonoros, outros são mudos. A imagem? Hehehe… a imagem é perfeita em todos! Não, nem pensem que vou gastar energias a arranjar. Um dia destes volta tudo pelo mesmo caminho que foi. Ou por outro. Isso importa pouco!

Net Intermitente
Se tiverem oportunidade de ler esta crónica, é porque correu tudo bem com a net que ultimamente anda meio… como é que é aquele nome técnico? Ah, já sei, manhosa! As páginas não carregam. E lá aparece aquela coisa do “Ups! A sua página não carregou!” e eu a pensar, É preciso ser estúpido para escrever esta mensagem, se a página carregasse, eu tinha notado! Pensei ter um problema no browser e experimentei outros, o FireFox e o Internet Explorer, mas o resultado foi igual. Descobri entretanto que, se refrescasse a página – tecla F5 – elas recarregavam na perfeição. E pronto, fui ser feliz até esta coisa ir abaixo de vez.

P’ra Acabar…
Se estes fenómenos me incomodam? Nem um bocadinho. Danço ao som da música. Vivo com o que Deus me dá e os homens me deixam ter. Contorno algumas situações e só dou importância ao que for verdadeiramente grave. África tem este efeito interessante, por nos tornarmos menos seletivos com as pequenas coisas, aquelas com que gastamos energias desnecessariamente, tornamo-nos mais seletivos em relação àquilo que realmente interessa na nossa vida. África ensina-nos a apartar a nuvem e ir diretos a Juno. Acho, perdoem-me o erro de raciocínio, se o houver, que África nos torna, em termos comportamentais e reflexivos, mais puros, mais objetivos, mais próximos de nós próprios. África despe-nos de muita coisa que não interessa e ao mostrar-nos as nossas fraquezas desnudas, fortalece-nos!

jpv


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Crónicas de África – A Força do Contexto

Crónicas de África - African TalesCrónicas de África –  A Força do Contexto

Como é sabido, e difícil de contrariar, Moçambique, e em particular, Maputo, têm um contexto social muito vincado e muitíssimo pujante. É uma daquelas coisas que não convém contrariar sob pena de insucesso. Vale mais tentarmos percebê-lo, adaptarmo-nos e viver de acordo com as suas regras. Negar a força desse contexto é uma ousadia que pode pagar-se caro.

A presente história passou-se com italianos, mas poderia ter sido com espanhóis, com dinamarqueses, com chineses, com búlgaros, com noruegueses ou mesmo com portugueses.

Muitos dos países que referi, e tantos outros, têm instituições de diversa ordem a funcionar em Maputo ligadas à diplomacia ou à cooperação ou a outras formas de intercâmbio e ajuda. A maioria delas, por via de estarem envolvidos dinheiros públicos, recebe, com regularidade incerta, a visita de inspetores ou supervisores das respetivas pátrias a fim de averiguarem se os projetos decorrem de acordo com o estipulado nos protocolos e na legislação. Ainda há dias, a Escola Portuguesa de Moçambique foi visitada por uma equipa de inspectores e avaliadores. Tudo normal. Acerca destas visitas, emergem inúmeras histórias, quase todas ligadas à força do contexto.

Há uns meses, estiveram em Maputo uns supervisores de uma instituição pública italiana com o propósito de avaliar o seu funcionamento, a legalidade de procedimentos e questões de ordem orçamental. Seria uma visitasinha para dez dias de trabalho. O acolhimento foi agradável, mas depressa nasceram algumas discordâncias. Os supervisores puseram em questão alguns procedimentos que os funcionários locais obstinadamente teimavam em justificar com o contexto social. Um dos supervisores perdeu a calma:
– Lá está o senhor com o contexto! O contexto, seja ele qual for, não pode interferir com as leis de Roma!
– Mas a realidade aqui é diferente. Não é a mesma forma de pensar, de viver, e os recursos e a insegurança!
– Nada disso pode interferir com a missão, com os resultados a apresentar, nem com os procedimentos. Deixe-se lá de contextos e cumpra a lei de Roma.

A mensagem não poderia ter sido mais clara. E a visita continuou. O funcionário italiano em Maputo começou a rever procedimentos e tudo parecia estar a levar uma pequena reviravolta. O único problema, é que ninguém tinha perguntado ao contexto o que é que ele pensava do assunto. Num desses dias, ao cabo de uma jornada de trabalho, o contexto manifestou-se. Jantar amistoso num restaurante da cidade. Aconselharam pratos simples aos supervisores e sugeriram que esquecessem as saladas, é que o contexto… Mas o supervisor estava apostado em provar que as leis de Roma e os romanos que as representavam estavam acima de qualquer contexto e vai daí pediu uma salada para acompanhar. E acompanhou.

No dia seguinte, de manhã, o senhor supervisor foi visto a fazer uma viagem apressada do seu gabinete à casa-de-banho e, quando estava a dois ou três metros da mesma, apressou o passo, deu uma corridinha e levou uma mão ao rabo das calças como que se certificando de que estavam enxutas. Alguns minutos passados saiu de lá trazendo com ele uma baforada de cheiro que preencheu todo o corredor. O homem vinha lívido, olheiras enormes, um pouco dobrado para a frente e passava a mão pela barriga como se estivesse a alisá-la de alívio. Conta quem viu que o supervisor se cruzou no corredor com dois dos funcionários italianos em Maputo sendo um deles o seu opositor discursivo dois dias antes. E cumprimentou-os:
– Bom dia!
– Bom dia, senhor supervisor. Precisa de alguma coisa?
-Uma garrafinha de água, por favor.
– Com certeza. É para já.

Assim que o supervisor desapareceu no gabinete, um dos funcionários perguntou ao outro:
– O tipo está esquisito. Sabes o que é que ele tem?
– Sei. Enfim, suspeito…
– Então?
– Acho que ontem teve um encontro com o contexto e hoje está a ter fortes descargas contextuais.

E riram ambos a bom rir. Conta quem sabe que, fosse pela força do contexto, fosse por uma outra insondável razão, quando o relatório de Roma chegou a Maputo, a palavra mais frequentemente repetida era… contexto!

jpv


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Crónicas de África – Coisas do Quotidiano (1)

Crónicas de África – Coisas do Quotidiano (1)

Maputo, 6 de abril de 2014

Acontecem-me, por vezes, alguns pormenores no dia-a-dia que penso dariam uma “Crónica de África”, mas depois, olhando bem, não há assunto para tanto. Decidi, assim, colecioná-los e, em tendo três ou quatro, faço uma “Crónica de África” intitulada “Coisas do Quotidiano”.

É este o caso. São alguns pormenores da interessante e insubstituível vida em África com Moçambique como pano de fundo o que torna tudo ainda mais interessante. Deixemo-nos de demoras e vamos a histórias.

Os Chinelos
Num fim-de-semana próximo, fomos dar um passeio de domingo à tarde. Daqueles em que se lava o carro no rio e se come frango assado na beira da estrada. Revisitámos Boane e a ponte onde o rio fornece a água para o Car-Wash mais ambientalista do Universo. Baldes de água atirados por cima dos carros e mãos laboriosas a lavá-los. Acontece que o caudal do rio tinha subido imenso e não foi possível lavar o carro com a mesma calma. Em vez disso, o Marco, os miúdos e mais uma carrada de pequenitos que já por ali estavam, resolveram atirar-se ao rio e atravessar a ponte… por baixo! Empurrados pela corrente forte, apanhavam boleia da água e já do outro lado da ponte, tinham de nadar para a margem. Exatamente na margem, presenciei um pormenor de partilha que me comoveu. As pessoas de Moçambique são boas. São especiais. São especialmente boas. Eram quatro meninas. De mãos dadas como é comum aqui. Ora, pelas minhas contas, quatro meninas dá oito pernas e oito pés. Mas só havia dois pares de chinelos, quatro unidades ao todo. E elas vinham chegando à margem do rio para ver a rapaziada nadar cada uma com um pé calçado e outro descalço. O sentido de posse cedeu espaço ao de partilha. É verdade que nenhuma estava completamente calçada, mas é verdade, também, que nenhuma estava completamente descalça!

O Ourives
A Paula queria uvas. Parei numa esquina, junto a um tchova carregado de fruta e com umas uvas lindas. E fui comprar. Quando regressava, reparei que, à sombra da acácia imensa, estava um ourives de rua, sentado num banco, com uma mesinha pequenina à frente, alicates e chaves daquelas pequeninas. E agradeci a Deus a providência de o ter colocado ali naquele dia. A verdade é que o meu relógio de pulso andava no pulso, mas parado. A pilha estava esgotada. Ora, o ourives tinha uma invejável fileirinha de pilhas de tamanhos diversos em cima da mesa.
– Tens pilha para este?
– Tenho, boss.
– Sabes mudar?
– Sei, boss.
– Muda lá.
Ele abriu o relógio em menos de três tempos. Tirou uma pilha de um pacotezinho que estava fechado a certificar que era nova e assim que a colocou o relógio começou a trabalhar. Depois vinha a última tarefa: fechar o relógio. Ele fez força até suar, rodou-o nas mãos diversas vezes, pediu a um amigo que estava encostado à árvore e os dois, em conjunto, apertaram o relógio à força toda, mas ele nada, nem sinais de fechar-se, a tampinha continuava solta. Eu fiquei à espera confiando que ele acabaria por conseguir e decidi não interferir com o trabalho dele, mas tive de o fazer quando o vi segurar a tampinha com muito cuidado e levar o relógio à boca. Ele ia fechá-lo à dentada! A visão do visor partido na boca dele não me agradou, como não me agradou ficar com o relógio aberto e por isso interrompi.
– Não, não, não. Não faças isso. Pára, pára… ouve lá, então tu abres o relógio e agora não és capaz de o fechar? Se não eras capaz de o fechar, não o tinhas aberto.
– Ó boss, mas a culpa não é minha!
– Ai não? Então é de quem?
– O teu relógio é que está a complicar!
– O meu relógio? Um relógio é só um relógio, não complica.
– Pois boss, mas esses aí, eu mudei e eles não complicaram. Este é que está a complicar.
– Então agora a culpa é do relógio?
– É!
Ouvi uma gargalhada à minha volta que queria dizer ficaste com o relógio aberto e ainda levas as culpas para casa. Resmunguei mais umas coisas com ele, trouxe o culpado para casa que está a cumprir castigo, todo esventrado, em cima da mesa de cabeceira. Com Deus, ajusto contas mais tarde!

A Foto
Há umas semanas para cá, andamos à procura de casa. Estamos bem instalados e gostamos da zona, a casa é muito boa e o senhorio fantástico. Mas falta um quintalinho. Coisas de quem não sabe estar bem. Então, compramos o jornal, espreitamos os anúncios, vamos à Internet, vemos a oferta e, ocasionalmente, telefonamos a um agente e vamos ver uma casa. Nos meus contactos, já tenho alguns vinte agentes e já devo ter visitado dois terços das casas disponíveis em Maputo. Começo a conhecer bem o mercado e as oscilações de preços. Mas há sempre espaço para uma surpresa. Ou não estivéssemos em África onde todos os padrões e conceitos mudam.
Vimos uma casa num anúncio na Internet. A foto mostrava uma casinha muito arranjadinha, com um quintalinho simpático sendo o único senão o aparente estado degradado do telhado. O anúncio era do próprio dia. Decidi telefonar e a conversa foi mais ou menos assim:
– Bom dia, como está?
– Estou bem e você do seu lado aí?
– Estou bem, Graças a Deus. Olhe, este anúncio duma geminada tipo 3 no bairro central é seu?
– É.
– E a casa precisa de obras ou está pronta a entrar?
– Pronta a entrar. Não precisa obras nenhumas, só as que forem do gosto do cliente.
– Pois, correto, mas olhe que aqui na foto o telhado parece em mau estado.
– Ahhh… essa foto não é da casa!
– Como? Então essa foto aqui não é da casa que está no anúncio?
– Não.
– Então para que é que colocou aqui essa foto?
– Para ilustrar.
– Para ilustrar? Mas a foto não é da casa!
– Mas é parecida…
– Ah, é uma casa lá perto?
– Não. Eu não sei que casa é essa, eu tirei a foto da Internet!
E pronto… fiquei… a pensar que o conceito de anunciar é diferente, tal como o conceito de ilustrar. Não. Não fui ver a casa. Quando as coisas começam assim, é melhor não dar corda ao destino!

O Guarda
Temos um guarda novo no prédio. Um dos outros dois foi despedido e havia que substitui-lo. Quando me apresentaram o A. fiquei surpreendido. Foi por causa de homens assim, que se inventaram expressões como “grande caparro” ou “cabedal do caraças”. O moço, que não tem uma pinga de maldade em todo aquele corpo, cresce por aí acima até lá para o metro e noventa e tem uma envergadura que há de ser para aí de metro e meio de ombro a ombro. É moço aí para os seus cem quilitos com a particularidade de se perceber que não há ali uma gordurinha, sequer. Aquilo hão ser músculos rijinhos como o ferro. Apresentaram-mo, cumprimentei-o, desejei-lhe bom trabalho e subi para cima que para baixo não havia caminho. Agarrei na trela do cão, um cocker spaniel minúsculo, a rondar os dez quilos, e voltei a descer para a caminhada de fim de tarde como sempre acontece. Quando o meu pequeno cocker se cruzou com o armário que agora nos guarda as noites, ele, o guarda, soltou um grito, Ehhh, e deu uma corridinha de três ou quatro passos rua acima. Depois, fitou o cão e riu-se. Eu sorri, enchi o peito de ar e pensei, É melhor que os ladrões não venham com com cokers!

E pronto, amigo leitor, por hoje é tudo. Daqui, desta África moçambicana que nos surpreende a cada esquina. Eu ficava mais um bocadinho à conversa, mas perdi a noção do tempo, nem sei que horas são!

jpv


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Crónicas de África – Moçambicanização

Crónicas de África – Moçambicanização

Maputo, 22 de março de 2014.

Caro leitor, hoje, por razões que perceberás mais adiante, vou tratar-te por tu. Não leves a mal, não é falta de respeito. É moçambicanização.

Um dia destes, utilizei uma expressão tipicamente moçambicana no discurso e a pessoa que estava comigo comentou:
– Estás mesmo queimado!
Lembrei-me, então, que há por aqui duas expressões para quem está integrado e adaptado. Uma é “estar queimado” e a outra é “estar cafrealizado”. Honestamente, parece-me que há certo tom pejorativo nas expressões, mas nunca tirei isso a limpo. Se estiver a ferir alguma suscetibilidade, desde já, peço desculpa. É pura ignorância. O facto de me dizerem que estava queimado agradou-me. Gosto desta terra, gosto de sentir-me integrado nela. Mesmo que isso implique mudanças. Afinal de contas, as pessoas mudam. Em África, mesmo as mais graníticas, acabam por mudar. As exigências da adaptabilidade falam mais alto.

Alguns dos sinais de mudança, alguns traços de moçambicanização, têm a sua graça, outros são peculiares e todos juntos contribuem para que, sendo os mesmos, sejamos outros.

Ya!
Uma das primeiras coisas a mudar é o registo discursivo, nomeadamente, a oralidade. O tom da voz, o bailado das frases e, claro, as expressões. Ya é a primeira delas. Em vez de sim ou outras expressões de afirmação e anuência, o Ya surge a marcar o início do processo de moçambicanização. Estava em Moçambique há três meses quando, numa reunião, alguém me disse:
– Já apanhaste o Ya.
Depois, lá vem o nice e, se um dia disseres que tens de ir para casa jobar porque ainda não corrigiste os testes todos, aí, estás para lá de moçambicanizado!

O Andar
Deixa de ser enérgico e determinado, mesmo que mantenha alguma energia e determinação. Por aqui, a vida tem ritmos diferentes. Tem compassos e esperas próprios e o andar das pessoas transforma-se numa passada mais arrastada, mais desleixada sem que haja nisso desleixo. É como se as pernas não fossem mas se deixassem ir.

Coleman
Cá não se diz arca frigorífica. Diz-se Coleman que é uma marca delas. A mais popular. São enormes. E, na sua maioria, os vendedores de bebidas frescas de beira da estrada usam Coleman. Se o teu porta-bagagens anda a passear uma Coleman sem razão aparente, enfim, por duas razões, pelo sim e pelo não, então estás mesmo a integrar-te. Eu acho que ninguém sai de Maputo para andar 50km sem levar logo uma azulinha consigo. Devidamente recheada.

O Carro
Não é impossível viver sem carro próprio em Maputo, mas é muito difícil. Assim, amigo leitor, se pensas em emigrar para Maputo, a compra de um carro em segunda mão deve estar nos planos. Os carros aqui são em segunda mão, japoneses, automáticos, a gasolina e, se puderes, 4×4. Não sei como é que leste a expressão 4×4. Provavelmente leste quatro por quatro. Tá maaal. Toda a gente sabe que se diz four by four que é como quem diz for bai for. Ora experimenta dizer isso muito rápido e obtens um vocábulo interessante. O típico fóbáfó!
Há tiques de moçambicanização relacionados com o carro e a condução. Deves desconfiar que estás a ficar moçambicanizado quando notares que:
      – Andas com um objeto contundente junto aos bancos da frente. Já vi homens e senhoras, não é uma questão de género, portanto, com martelos, catanas, tacos de beisebol, de golf, bastões, enfim, toda uma parafernália de objetos da categoria “para o que der e vier”.
      – Trazes o porta-bagagens do carro todo artilhado. Compressor, chaves de diversos tipos e utilidades, jumpers, lanternas, facas do mato, latas de spray anti-furo, um cabo de aço, uma pá, uma tira de reboque e um jerrican para combustível. Nada disto é excessivo. É tudo normal. E muito moçambicano.
      – Atestas o depósito assim que chega a meio. Aliás, fazes de atestar o depósito um hábito regular e tens a preocupação de não correr o risco dele baixar a menos de meio não vá o diabo tecê-las? Pronto, estás moçambicanizado!
      – Foste ao Estrela e mandaste gravar a matrícula nos retrovisores e nas óticas dos faróis? Mocambicanizado! E o mais engraçado é que, quando fores a Nelspruit e estacionares o teu carro, vais sentir-te diferente. O teu carro é o único com rebites nos piscas e matrícula gravada nos retrovisores. Quer dizer, o único não será…
      – Outro aspeto interessante no processo de aculturação a Moçambique e a Maputo, em particular, é a forma como ages e reages no trânsito. A perspetiva muda. Na verdade, mudam duas perspetivas. A primeira é a do relacionamento com os outros condutores. Por aqui, apesar do trânsito caótico, os condutores não espetam o dedo do meio no ar, não ralham e raramente buzinam. A buzina é muito usada mas é para pequenos avisos, para anunciar a passagem. Raramente para ralhar. O dedo do meio espetado no ar dá lugar a um OK de polegar esticado, a um aceno, um sorriso, um vá lá, passa lá. A outra perspetiva que muda é a daquilo que fazes e porque o fazes. Também há regras de trânsito, claro, também se respeitam, obviamente, mas só se não estorvarem mais do que outra regra qualquer. Assim, se deres contigo a conduzir por cima do passeio porque na estrada há um buraco com 60cm de profundidade e 2,5m de largo, se deres contigo a passar um semáforo vermelho porque não vem lá ninguém e tens uma chusma de gente atrás de ti, se deres contigo a inventar uma faixa de rodagem que não existia e tu segues por ela só porque há espaço, se deres contigo a mergulhar em lagos de lama só porque decidiste fazer um atalho, se deres contigo a percorrer quinhentos metros de estrada em contra-mão para não ires à volta e teres de percorrer meia cidade, então, amigo leitor, põe a mão na consciência e pensa lá se não serás mais moçambicano do que outra coisa qualquer. No trânsito, em Maputo, há uma regra de ouro que se sobrepõe a todas as outras, chama-se “desempatar” e para desempatar, às vezes, é preciso usar uma ferramenta, chama-se desenrascar! Estorvar é que não vale.

Comprar na Rua
A vida, em Portugal, como se diz agora, é muito indoor. Passamos muito tempo dentro de casa e, quando saímos para o exterior, é para dentro de outros interiores! Centros comerciais, cinemas, lojas diversas, igrejas, casa dos amigos. Todo o comércio é tendencialmente feito indoor. Um dos sinais de moçambicanização é começares a fazer compras na rua. Numa bancada, a um tipo que passa, enquanto estás parado num semáforo. Compram-se legumes, frutas, peixe, amendoim, cajú, o jornal, escovas limpa pára-brisas, crédito para o telefone, filmes, e um sem número de utilidades. Basta um assobio, um aceno, um alô, e tens fornecedor em segundos. Nos primeiros tempos, estranhas um pouco, depois aderes, depois selecionas e compras só determinados produtos a determinados vendedores. Estabeleces uma relação de confiança. Eu, moçambicano me confesso, compro laranjas sempre no mesmo semáforo, o jornal na mesma esquina, as escovas para o limpa pára-brisas do carro sempre no mesmo cruzamento. Para lá de adaptado!

Dinheiro no Bolso
Se dás contigo a levar a mão ao bolso e a tirar umas notas para fazer um qualquer pagamento em vez de sacares do cartão multibanco, isso é… costume moçambicano. O dinheiro, dinheiro, aquele de papel, está mais presente nas nossas vidas do que em Portugal. Há caixas automáticas por todo o lado, todas as lojas têm máquinas de pagamento eletrónico, mas a matriz de vida é diferente. trazer dinheiro é um hábito que decorre de uma necessidade. Ficas munido para imprevistos e os imprevistos, aqui, acontecem. Além disso, o facto de haver muito comércio de rua ajuda ao hábito.

Um Fim-de-Semana em Nelspruit
É sábado. acabaste de almoçar um bom bife, à tua volta há corredores largos e cintilantes, lojas que rebrilham o que têm lá dentro e têm tudo lá dentro, as pessoas passeiam-se em ritmo de lazer e os preços estão em rands! Nelspruit é um gigantesco subúrbio de Maputo. Fica apenas a duzentos quilómetros de distância, duas horas de caminho mais o tempo necessário para passar a fronteira de Ressano Garcia. Já passei os dois lados da fronteira em catorze minutos e já os passei em três longas horas. Depende dos dias e das horas. Muitos moçambicanos trabalham em Nelspruit, muitos outros vão-se lá abastecer de tudo o que necessitam para revender em Moçambique, outros só para abastecerem a despensa e, claro, nós, emigrantes, juntamente com muitos outros moçambicanos, vemos Nelspruit como uma fugida de fim-de-semana, um intervalo na confusão da grande cidade. O trânsito de pessoas e bens entre Maputo e Nelspruit é imenso e uma visita à RSA é também um traço de moçambicanidade. Em jeito de curiosidade, importa dizer que esta cidade criou-se, desenvolveu-se e floresceu após a independência de Moçambique. Antes disso, era meia dúzia de casas num descampado. Hoje é uma cidade enorme, repleta de recursos e equipamentos e muito desenvolvida. Além disso, situa-se na região de Mpumalanga onde fica a zona turística de Panorama que vale muito a pena visitar. Ou seja, se emigraste para Maputo e estás em Nelspruit a falar inglês num centro comercial, a puxar por rands e a olhar para um tipo loiro com 2,10m de altura e 150kg de peso, se entraste num pronto-a-vestir à procura de uma camisa de tamanho L e o S está-te grande, então estás a moçambicanizar.

Coca-Cola
Estava há poucos dias em Maputo quando uma colega moçambicana me disse, Sabes que nos chamam [aos moçambicanos] os Coca-Colas! Ela estava a tomar o pequeno-almoço que consistia numa sandes e… uma Coca-Cola!

Quando cheguei, estranhei não só a oferta massiva de Coca-Cola, que se vende em todo o lado, às vezes, mesmo onde não se vende água, como também o facto de a Coca-Cola ser a bebida engarrafada mais barata de Moçambique, mesmo mais do que a água! De resto, para que o preço não possa ser adulterado, é tabelado e vem gravado nas cápsulas das garrafas. Uma Coca-Cola custa doze meticais, ou seja, qualquer coisa como vinte e cinco cêntimos de euro. Com uma oferta tão vasta do mais popular refresco do país, não admira que quem vive em Moçambique acabe por aderir. Bebe-se Coca-Cola quando está muito calor, bebe-se ao almoço, ao jantar, ao lanche, à noitinha e, como já se disse, é comum beber-se ao pequeno-almoço. Eu cá tenho a teoria de que a Coca-Cola daqui é melhor do que no resto do mundo. Quando cheguei, não gostava de Coca-Cola, não bebia uma garrafa há anos, e hoje consumo com alguma regularidade. E não é que é bom?! Sim, se deres contigo a atravessar a estrada para ires comprar uma Coca-Cola na berma ou, simplesmente, a abrir a janela do carro para comprares uma, estás a moçambicanizar!

Polícia
Se vieres para Maputo, amigo leitor, hás de reparar que há muita polícia na cidade, muitos seguranças, muitas armas. Com o tempo habituas-te. No início, sensivelmente nos primeiros seis meses, mandam-te parar inúmeras vezes e verificam tudo o que houver para verificar. Documentos, chapas de matrícula, pneus, vidros fumados, os selos dos impostos, etc, etc, etc… Depois, assim de reprente e sem razão aparente, deixam de te mandar parar. Quer dizer, não é um “deixam” definitivo, continuam a mandar-te parar uma vez por outra, mas sem aquela frequência inicial e sem aquele frenesim inspetivo dos primeiros tempos. Não sei como é que eles sabem que já não somos recentes, talvez pela matrícula, talvez pelo aspeto, mas sei que, quando a polícia deixa de nos mandar parar por tudo e por nada, isso quer dizer que estamos no bom caminho da integração.

Além destas características ainda há certo enxovalho de roupas, o cantado das frases com uma ou outra palavra em changana que vais aprendendo, as coisas importantes com que deixas de te importar, mas essas que aí ficam registadas, não sendo exclusivas, são bons sinais de moçambicanização. Podes resistir, mas, caso permaneças no país, o mais certo é começares a evidenciar alguns destes sinais, dos quais faz parte falar na segunda pessoa do singular. Não só quando nos dirigimos a outra pessoa. Sempre! Mesmo quando estás a dar um exemplo. Não se diz imaginemos que ou imagine-se que, diz-se logo imagina que…

E pronto, amigo leitor, vai lá à tua vida que eu tenho ali uma Coca-Cola à espera. Fresquinha? Ya, bem nice!

jpv


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Crónicas de África – Diferenças Profundas

Crónicas de África – Diferenças Profundas

Maputo, 15 de março de 2014

Quando se vem viver para África, Moçambique, no meu caso, muitas são as diferenças que se encontram e dessas diferenças fui dando notícia na minha escrita de estranhamento e pasmo a que dei o pouco original nome de “Crónicas de África”.

Há, mesmo, o hábito, qual desporto instituído, de comparar a vida, a nova vida, moçambicana, com a vida, a velha vida, portuguesa. E não há mal nenhum nisso. São só as pessoas a certificarem-se de que o estranhamento é comum e, como tal, está tudo bem ainda que diferente.

Ao cabo de um ano e meio de vida em Maputo, noto que os ritmos se vão interiorizando e as diferenças esbatendo porque me acomodo àquilo que inicialmente tanto estranhamento causou. Chama-se a isso adaptação.

Há, contudo, aspetos que continuo a estranhar e já sei que são diferentes e já toda a gente sabe que são diferentes e, mesmo assim, sempre que os presencio, sempre que me cruzo com eles, sinto aquela indefinida e familiar sensação de Isto não era assim. É desses aspetos que venho falar-vos. São as diferenças profundas.

As Cores do Verão
O meu verão português e europeu foi sempre seco e amarelo. As searas, as ervas secas, a vegetação moribunda, eram a paisagem. E, onde antes houvera água, deixara de a haver e a paisagem secara. Em África, o Verão é verdejante e húmido. Caem chuvadas torrenciais como se fosse inverno e essa água pródiga, abundante e ruidosa, de pingos largos e pesados, seca em minutos e dá lugar ao mesmo sol que lá estava há pouco. Ainda hoje estranho o facto de estarem trinta e muitos graus, um calor arrasador, e a paisagem ser verdejante e a chuva cair invernia.

A Temperatura da Água
Em Portugal, há duas razões por que evitamos apanhar uma chuvada no lombo. Ficarmos molhados e o gelo da água a incomodar a pele. Aqui, a água, qualquer água exceto a do frigorífico, é quente. Sempre que tenho de cruzar uma chuvada, encolho-me, como toda a gente faz, por causa do friozinho da água, e depois surpreendo-me. A água da chuva é tépida e, como tal, não é agressiva ao toque. Por outro lado, é tanta e tão cerrada que, tentar escapar a uma chuvada é uma tolice. Ao cabo de duas passadas, estamos molhados até às cuecas! Da mesma forma, quando olhamos as águas cristalinas de um rio, ou intensamente azuis do mar, pesamos duas vezes antes de entrar porque a água sempre é fria. Engano nosso. Isso é a realidade portuguesa. Por aqui, os rios e o mar não parecem vir de uma nascente, mas antes de uma longínqua caldeira e ainda trazem parte do calor originário. Molhar os pés é sempre uma surpresa agradável.

Os Rios Correm ao Contrário
Esta diferença pode parecer-vos esquisita. A mais esquisita. Acontece que estranho com frequência a direção dos rios. Eu bem sei que os rios correm todos, ou quase todos, para o mar, mas, ainda assim, o mar aqui está do outro lado! Eu explico… Quando vivemos em Portugal, se vamos para Norte, o mar fica à nossa esquerda, logo, os rios surgem da direita, e se vamos para Sul, o mar fica à direita, logo, os rios surgem da esquerda. Ora, como o mar, aqui, está do lado errado, os rios correm ao contrário. Quando vamos para Norte, o mar fica à nossa direita, logo, os rios surgem da esquerda, e se vamos para Sul, o mar fica à nossa esquerda, logo, os rios surgem da direita. Assim, quando vou a conduzir e me aparece um rio do lado contrário, fico sempre com a sensação de que vou a subir para baixo ou a descer para cima! Confuso? Naaa… Geografia pura!

A Rota do Sol
Que o sol nasce no mar e se põe em terra, habituamo-nos rapidamente. Estranha-se, mas entranha-se. O que custa mais a entranhar é por onde é que ele passa! É comum, andar de cabeça no ar à procura do sol. Em Portugal, até de olhos fechados sei de onde vem e para onde ele vai. Aqui, não consigo achá-lo e tenho esta sensação esquisita de que em Portugal ele me passa pela frente e em Moçambique me passa por trás! O Marco diz que aqui o sol faz um arco não sei das quantas. Sei lá se é um arco. Sei que ele nunca está onde era suposto estar, mesmo já incluindo o facto de andar sempre em marcha-atrás!

A Lei da Oferta e da Procura
Esta é das diferenças mais interessantes em termos culturais. E estranha-se sempre. A verdade é que nos habituámos, em Portugal, ao comodismo de termos o que pedimos e até a exigir o que queremos. Ou seja, de acordo com as regras do mercado, na lei da oferta e da procura, manda a procura. E isso gera expectabilidade e conforto. Pois os livros das leis do mercado, em Moçambique, têm de ser reescritos porquanto, na lei da oferta e da procura, manda a oferta!  Quero com isto dizer que, aqui, os consumidores também procuram, mas só compram o que procuram, se houver. Se não houver compram outra coisa! Não vale a pena habituarmo-nos a um certo sumo, uma determinada compota, um chocolate específico, um creme de barbear ou uma carne e a razão é simples, o facto de estar hoje no supermercado e ter sido consumido, não quer dizer que o produto vá ser reposto. Pode ser. Pode não ser. Há múltiplos fatores que fazem oscilar a fiabilidade da oferta, logo, a expectabilidade e o conforto só existem na seguinte medida: se hoje há o que querias, compra! Amanhã pode não haver, podem mesmo passar-se meses sem que seja reposto. Até já me aconteceu um episódio engraçado. Fui comprar um sumo de maçã ao supermercado e pedi sumo de maçã da marca xis a um funcionário porque não estava a encontrá-lo nas estantes. Ele apontou os sumos de maçã e disse, Está aí! Eu olhei, não vi o sumo e disse-lhe que não estava. Ele voltou a apontar e esclareceu com ar admirado, Quer sumo de maçã? Está aí sumo de maçã! E sorriu. Eu também e trouxe de outra marca.

Os Supermercados Mandam Menos
Uma coisa a que paulatinamente nos fomos habituando em Portugal e depois deixámos de estranhar é a ditadura dos supermercados em relação ao calendário. Em Portugal, são as grandes superfícies que decidem quando termina o verão e começa o regresso às aulas, quando chega o Natal, quando vem a Páscoa, o verão e depois as aulas outra vez. Aqui não. Primeiro, porque há muito poucos hipermercados. Depois, porque eles não têm uma presença tão vincada na vida das pessoas como em Portugal. Verdade, verdadinha, a festa aqui faz-se quando os moçambicanos querem e normalmente eles querem de oito em oito dias porque o fim-de-semana é um oásis. Além disso, datas já muito esbatidas em Portugal, são aqui motivo de celebração entusiasta. O dia da criança, dos namorados, da mulher e todos os feriados nacionais. As pessoas festejam o que querem, quando querem, quer os supermercados queiram, quer não.

Religião Vigente
Em Portugal, o Estado é laico e, não obstante a liberdade na escolha da religião que cada um quer professar, há, por razões culturais, uma evidente predominância da religião Católica. Isso nota-se na organização do calendário, nas celebrações, no discurso oficial e institucional. Em Moçambique nota-se que não se nota isso. Não sinto que haja uma religião vigente, não sinto que haja uma e as outras. Sinto que há diversas comunidades religiosas, todas muito vincadas, todas muito fortes, todas em natural e quase sempre harmoniosa cohabitação.

Caos e Boa Disposição
Nos últimos vinte meses, não me lembro de ter visto um moçambicano zangado, exaltado. Eles devem zangar-se como as outras pessoas todas, mas têm uma latente e constante boa disposição. E porque é que eu estranho? Sei lá, porque há situações do quotidiano, no trânsito, no supermercado, no banco, na polícia que seriam potencialmente de grande discussão em Portugal, dedo em riste, voz alterada, palavrão célere, e aqui vejo tudo isso ser tratado com muita contemplação e com muita paciência e sempre com um desconcertante sorriso. Certa altura, a minha mulher estava a dar um raspanete a um aluno e ele continuava a sorrir, vai daí ela disse-lhe que ele devia levar aquilo a sério e ele respondeu com o mesmo sorriso nos lábios, Eu levo a sério, setôra, eu sou mesmo assim. E era! E é! Ele e os moçambicanos quase todos. De contagiante boa disposição. Já não tão contagiante, mas admirável, é o caos de Maputo. O caos no trânsito, na ordenação do parque habitacional, nos mercados, nos transportes, na forma como as pessoas se deslocam e organizam. Em Maputo, tudo parece desorganizado e, contudo, a vida faz-se, acontece e desenrola-se com naturalidade. Não há falta de ordem. Há outra ordem. E nós aprendemos a viver com ela, mas estranhamos sempre.

Um ano e meio! De diferenças. De adaptação. De ritmos que mudam. De perspetivas que se alteram. Foi tão pouco tempo e parecem já décadas. Tudo é intenso em África. Mas não é uma intensidade frenética. É uma intensidade profunda e tranquila que nos transforma por dentro. Não sei se alguma vez mais me vou embora. Estou a moçambicanizar-me. Há sinais evidentes disso e serão esses sinais o motivo da próxima crónica…

jpv