Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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A Paixão de Madalena – Capítulo 15

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[Aqui se apresenta o 15º de 35 capítulos do romance que publicaremos em breve em livro. Neste blogue publicaremos ainda mais dois capítulos como forma de oferecer aos nossos leitores uma avaliação do mesmo. Depois… convidá-los-emos para a sua apresentação pública]

A Paixão de Madalena

Livro II – O Cordeiro de Deus

15. Quanto valem cinco anos? Quanta vida cabe nesse tempo? Quantas mudanças? Há cinco anos, Madalena reclamou para si a custódia de Mariana e lhe fez uma festinha pelo seu décimo aniversário. Há cinco anos, Madalena reencontrou Pablo Sentido e com ele iniciou um caminho de estabilidade, de progresso e sucesso. Há cinco anos, Jacob tinha cinco. E agora, que corre o ano da Graça do Senhor de dois mil e cinco, Madalena sente-se feliz por ter sido presenteada com o dom da contemplação. E por isso ficará para sempre grata a Pablo. Madalena vive com desafogo e conforto e tem podido contemplar o crescimento dos seus filhos. Acompanha Mariana na escola, esteve com ela na primeira menstruação, Não minha querida, não tens um cancro e não vais morrer, escolheu os materiais escolares com ela ano após ano, foram às compras, deram passeios só para meninas e ficaram cúmplices. Para sempre. Aprendeu a viver colm Jacob. Com a ajuda de Pablo, tentou perceber exatamente onde se localizava a doença como se, ao identificar a sua localização, pudsesse combatê-la melhor, pudesse olha o mal nos olhos e fazer-lhe frente. Rapidamente percebeu que não poderia ser esse o seu papel. O seu filho tinha nascido com uma deficiência, mas ele era a herança de Kyle,m era o centro do seu universo. Na sua forma de ver as coisas, Madalena não queria que Jacob se adaptasse ao Mundo, pelo contrário, faria todos os possíveis para que o Mundo se daptasse a ele. Controu-lhe a medicação até interiorizar o processo, até o próprio Jacob interiorizar os rituais. Mandou-o sempre à escola, só para estar com outras crianças, para ter amigos. Percebeu que aprender, no caso do seu menino, seria uma processo com ritmos, conquistas e sucessos diferentes da maioria das crianças. Estudou-lhe os gostos, os ambientes que o tornavam mais calmo, as pessoas que o faziam sentir-se mais tranquilo. Jacob sentia-se bem no seu pequeno universo. Dispensava com facilidade a escola. Mariana, Madalena, a avó Bá e Pablo já eram muita gente, mas eram gente com que aprendera a contar. Pablo cumpriu a promessa que fizera a si mesmo, foi um apoio incondicional e determinante para Jacob. O miúdo aprendeu a confiar nele e foi com ele que teve algumas das conversas mais complexas que uma criança com aquele problema consegue ter:

– Pablo…

– Sim, jacob, diz-me…

– Há pessoas boas, não há?

– Claro, Jacob.

– E há pessoas más, não há?

– Sim, Jacob, mas as pessoas más são menos.

– Tens a certeza?

– Sim, tenho.

– Então, porque é que aparecem tantas pessoas más na televisão?

– Ora, porque as pessoas más não têm muito que fazer e gostam de aparecer na televisão.

– E as boas?

– Estão a fazer coisas boas enquanto as pessoas más aparecem na televisão.

– Já percebi, Pablo.

– Claro que percebeste, Jacob.

Havia, contudo, um universo que Jacob adorava para além do conforto da sua casa e dos afetos que habitavam nela: o jardim zoológico. O miúdo adorava animais e entusiasmava-se a percorrer a via sacra das aves, dos répteis, dos mamíferos, o aquário. Tudo o que fosse animal parecia exercer sobre ele um fascínio particular, iluminava-se-lhe o rosto e o peito enchia-se de felicidade. Madalena visitava o zoo com frequência, chegara mesmo a ter rotinas e ciclicamente passava por lá um sábado com o filho, levava um lanche e depois pedia-lhe que fizesse desenhos, mas o que Jacob adorava fazer e foi considerado pelos especialistas como um significativo progresso, era imitar os animais. Os ruidos e os movimentos deles. Os livros e os filmes sobre a vida animal começaram a cair-lhe no colo com grande frequência. Qualquer pretexto servia, um aniversário, o Natal, um anúncio na televisão… em pouco tempo tinha uma assinalável biblioteca e uma considerável coleção de filmes, tudo sobre a bicharada. Madalena preocupo-se em proporcionar-lhe a estabilidade afetuosa que lhe haviam dito ser benéfica, dedicava-lhe muito tempo, tempo de atenções redobradas, tempo de qualidade. E a criança cresceu conversando mais do que é costume nestes casos, interagindo mais do que é costume nestes casos, e tudo isso o roubou aos grandes silêncios, aos dias consecutivos sem sair do seu casulo de pensar. Não se entusiasme, caro leitor, não houve, não haverá, nunca, cura para o mal de Jacob, mas o ambiente que Madalena construiu à sua volta fez dele um menino curioso e dinâmico, desperto para a vida. E na vida, por improvável que pareça, Jacob encontrou o seu lugar, encontrou acolhimento. Em tempo oportuno contaremos como veio tal a suceder.

Precisamente em dois mil e cinco, Madalena seria confrontada com um desafio. Nada a que estive ou ficasse obrigada, mas algo a que não resistiria por duas razões. O compromisso com dar o melhor a Jacob, e certo saudosismo adormecido no seu peito. Certa manhã de domingo, depois de folhear calma e pacientemente um livro sobre animais, de ter visto o mesmo filme uma vez mais, Jacob perguntou:

– Mamã, África é longe?

– É sim, bebé.

– Muito longe?

– Longíssimo!

– Nós podemos ir a África?

– Acho que não, bebé, é mesmo muito longe. Tu querias ir a África?

– Queria. Os animais estão quase todos lá. Podemos ir a África, mamã?

Acho que não, bebé, é mesmo muito longe.

– Mamã…

– Sim, bebé, diz-me…

– Podemos ir a África de prenda de anos?

Dizer-lhe que não foi fácil. O difícil foi viver com a consciência de que aquela criança raramente lhe pedira algo, era um menino satisfeito por natureza, tranquilo de caráter, sem solicitações, nem problemas causados. Acordara-lhe um gosto, despertara-lhe uma razão para entusiasmar-se com a vida, havia conseguido isso, que sentido faria, agora, recusar-lhe o alimento para o espírito? Sim, era isso que Jacob acabara de pedir-lhe, alimento para o espírito.

Estava há quatro anos na empresa. Não tinha faltado um único dia. Apresentou a ideia de se ausentar por nove meses em missão humanitária com a Cruz Vermelha que aceitara a sua candidatura e o primeiro critério fora tratar-se de alguém que já tinha estado em missão antes. Iria para os arredores de Joanesburgo, no High Veld, para uma missão cuja tarefa principal consistia em prestar cuidados a vítimas do HIV, sobretudo crianças que já nasceram infetadas. Escreveu longos e-mails a Mark e Marcelle contando tudo acerca do seu projeto. Ambos lhe deramimenso apoio. Pablo Sentido prontificou-se a ficar com Mariana e acompanhá-la nos estudos. Ainda ponderaram ir os quatro, mas Pablo não podia. Eram muitos os compromissos de trabalho e, além disso, Madalena percebeu que após cinco anos de vida conjugal, Pablo ia apreciar aquele tempo só para ele. Assim que a empresa lhe deu luz verde, confirmou tudo com a Cruz Vermelha e poucos meses depois estava a embarcar.

“Os outros chamam-lhe África, nós chamamos-lhe a nossa casa”. Era assim que estava escrito no aeroporto internacional de Joanesburgo. E Madalena sentia-se em casa. Nunca percebera porquê. Já da primeira vez, com Kyle, se sentira acolhida não obstante as dificuladades da viagem. Agora via-se envolvida num projeto menos ambicioso. Seria menos tempo e teria um objetivo único e muito preciso. E, contudo, sentiu-se de novo em casa. Havia qualquer coisa na atitude dos africanos, qualquer coisa no clima, qualquer coisa na organização ou na falta dela, que a atraía e lhe fazia medo ao mesmo tempo. Mais atração. Estava há pouco tempo no acampamento, ainda a aprender os ritmos e em que poderia ser útil, haviam passado meros cinco sóis e outras tantas luas, quando a chamaram da enfermaria improvisada à entrada do acampamento. Alguém queria falar com ela. Eram Mark e Marcelle. Foi um longo abraço a três, foram beijos incontáveis, foram lágrimas escorregadias, foi ouvirem-se a voz. Tinham passado três anos desde que estiveram juntos e parecia que fora ontem. Trocavam e-mails e com eles fotos e vídeos e acompanhavam-se de perto, mas nada disso substituía um abraço verdadeiro com o calor do corpo do outro estreitado no nosso. Não puderam todo o tempo da missão, mas estiveram três meses juntos. Quase juntos. Mark comprou uma máquina fotográfica e um jogo de lentes para Jacob e foi com ele explorar o interior e ver os animais. Saíam num dia, voltavam no dia seguinte, dois dias depois, ou mesmo uma semana mais tarde. Por vezes Marcelle acompanhava-os, outras vezes ficava com Madalena. Tiveram conversas infinitas e por esses dias voltaram a ser o inseparável grupo dos três emes. Aos fins-de-semana estava juntos. Sobretudo ao domingo. Um dia Mark desafiou-as:

– Este sábado vai haver um bush fire na Suazi. Devíamos ir.

– Devíamos? Perguntou Marcelle.

– Claro. É o melhor de África. A noite imensa, uma fogueira a arder, carne assada, música, conversa.

– Eu concordo com o Mark – disse Madalena – não há nada como uma fogueira na noite africana.

E foram. Dançaram, beberam, conversaram até quase de manhã. Enrolaram-se em mantas leves e ficaram a riscar o chão com um pau, a traçar loucas teorias de vida. Jacob dormiu enrolado em mantas e sentiu-se confortado pelo ruido à sua volta. Era já quase madrugada quando regressaram à cabana que haviam alugado num lodge ali perto. Madalena foi aconchegar Jacob e juntou-se aos outros dois na sala onde a luz que havia emanava de dois candeeiros a petróleo.

– E se jogássemos o nosso indiscreto jogo das apostas?

– A menina gostou!

– Claro. E agora estou mais preparada.

– Ah, quer dizer que andou a pensar em indiscrições?

– Claro que sim! Não é o que toda a gente faz?

– Não temos cerejas com chocolate.

– Mas temos chocolate, ando sempre com chocolate, parte-se aos bocadinhos e vai ter de servir.

Marcelle começou. E o jogo não viria a ter mais do que uma pergunta. Escolheu Madalena como alvo:

– Aposto em como já fantasiaste fazer amor comigo e com o Mark…

Madalena colocou um pedacinho de chocolate entre os lábios e estendeu o pescoço para a amiga que o veio buscar demoradamente, com saudade e volúpia e, enquanto o fazia, Madalena estendeu uma mão para Mark, encontrou a mão dele e encaminhou-a para o seu sexo. Ele percebeu e acariciou-a e depois quis compensar Marcelle e ela deixou e quando a aurora despontou e a luz natural começou a enfraquecer a dos candeeiros, três corpos cúmplices tombaram no chão da sala enrolados em mantas e sacos-cama, semi-nus e semi-cobertos. Saciados para a vida.

Não espere o leitor que esta comunhãi se repita. O improvável e inseparável grupo dos três emes vai separar-se dentro de dias e os três nunca mais estarão juntos. A vida não quererá. O Mundo não está preparado para pessoas como Madalena, Marcelle e Mark. E muito menos está preparado para que se encontrem e fiquem juntos. Serão inseparáveis nos seus corações. Mas só isso. A seu tempo saberemos o que reservou o Destino para cada um deles, mas sabemos já que não lhes reservou mais nenhum momento em conjunto. Onde há demasiado amor, onde há demasiada ausência de preconceito, costuma vingar o próprio preconceito. Estranha condição… disse o poeta e essas palavraslhas roubamos agora precisamente porque o amor que unia estes três sufocou em si mesmo, impediu-se antes de se ter tentado, nunca foi mais do que um desejo reprimido. Impedido. Impossibilitado para que cada um pudesse, por si, ter uma vida. E, contudo, de que vale a vida sem esse mesmo amor? Por mais que nos amemos e nos lavemos os pés e nos purifiquemos, há sempre um pó que se agarra à pele, se cola à carne, às roupas e nos mancha a existência.

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A Paixão de Madalena – Capítulo 14

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A Paixão de Madalena

Livro II – O Cordeiro de Deus

14. Há palavras que nos afastam da realidade. Que nos empurram para uma espécie de universo paralelo. Porque nos transportam para um sonho, porque nos alegram, porque nos entristecem, porque nos chocam. Foi este o caso. Choque. Em abono da verdade, Madalena não conhecia aquelas palavras. E esse foi o primeiro sinal de alerta. Hipertensão Crónica do Líquido Cefalorraquidiano. Dispraxia. Desfasamento Etário do Desenvolvimento Emocional. Jacob tinha um problema e ela desconhecia as palavras necessárias para o identificar. Estava, por isso, longe de perceber o que se passava com o seu menino e mais longe ainda de perceber o caminho da cura. Rápido lhe disseram que nestes casos não se tratava de cura, não estávamos, ainda, nesse patamar. Por agora, a Medicina contentava-se com tentar perceber o problema que, como ela entenderia, era raro. Poucos casos no Mundo inteiro. Seriam necessários mais exames, novos testes, seria necessária medicação, cumprir com rigor a terapia, e… muito amor. Madalena levantou os olhos para o médico e resmungou:
– Muito amor? Mas acha que lhe tem faltado amor? Se a falta de amor fosse o problema, o meu filho não teria doença nenhuma!
– Não duvido, minha senhora, o que estou a dizer-lhe é que estes pacientes… enfim, o pouco que se sabe sobre eles é que reagem muito bem a climas equilibrados de forte afetividade.
– Preciso de ajuda. Não sei o que ele tem, não consigo perceber, sequer, onde é a doença e não sou inculta, doutor, mas essas palavras não são do meu universo.
– Penso que o seu… penso que o Dr. Sentido poderá elucidá-la em relação a esse aspeto…
– O Pablo tem a vida dele.
– Sim, mas o Dr. Sentido mostrou-se muito preocupado com toda a vontade de colaborar.

– Interessado? Tu mostraste-te muito interessado? Mas quem é que tu julgas que és?
– Pois, tens razão. Eu não sou ninguém.
– Pois não! O médico hesitou, quase ia dizendo que eras meu marido.
– E não sou? Qual é a diferença? Eu nunca serei nada que não queiras que eu seja, mas não podes negar-me os afetos. Nós vivemos juntos, eu, tu, a Mariana, o Jacob…
– Desculpa…
– Estás assustada.
– Pior do que isso. Estou perdida.
– Eu ajudo-te.
– Desculpa!
– Não continues a pedir desculpas ou ainda as aceito!
– Safado!
– Dá cá um abraço.
– Sou uma parva, não sou? Tu é que reparaste nisto, conseguiste a consulta e eu fui uma ingrata.
– Assustou-te a possibilidade de eu te dar como garantida, ter a ousadia de me anunciar como teu qualquer coisa.
– É a minha liberdade, sabes. É a única coisa que tenho, a única coisa que sempre tive e de que nunca abdiquei.
– E não precisas abdicar dela para sermos um casal. Nem sequer somos um casal comum.
– Pois não. Tens razão.
– Afinal, qual foi o diagnóstico?
– Um monte de palavras que eu não percebo.
– Tu ajudas-me com as contas, eu posso ajudar-te com essas palavras…
– Só preciso que me digas…
– Eu sei. Eu digo-te: vai correr tudo bem, Madalena.
– Vai mesmo?
– Vai mesmo!

Foi no Outono tardio. O ar de Genebra já estava frio, o bafo das pessoas já desenhava nuvens de vapor junto ao nariz e as mãos procuravam a face para encontrar o calor do ar expirado. Cachecóis, casacos compridos e um sol doirado, pendurado sobre a cidade como que a iluminar o frio. Marcelle levou-a. Chegaram à porta da universidade e Madalena disse-lhe, como quem antecipa, Espera aqui, eu vou lá sozinha. Procurou o átrio, depois as vitrinas, as pautas, o seu nome, viu as classificações e a vida voltara a recompensá-la. Saiu sorrindo, entrou no carro, abraçou Marcelle longamente enquanto as lágrimas lhe corriam pela face. Depois, beijou-a suavemente nos lábios. Não havia ali desejo. Só gratidão. Contra todas as probabilidades, Madalena acabara o curso dois anos antes do seu final regular. Fora um processo de sofrimento e sacrifícios, mas agora muitas portas se abriam. Agora, só lhe apetecia correr para os braços de Pablo e beijá-lo também, e agradecer-lhe também. E queria trabalhar, queria conseguir o tal trabalho digno que a libertaria de todas as dependências. Poucas semanas depois, ainda antes de terminar o ano de dois mil e um, receberia um convite que aceitaria de olhos fechados. Gesto impetuoso e sôfrego de que não viria a arrepender-se.

 Logo após as notícias preocupantes acerca do problema de Jacob, Pablo Sentido preocupara-se com a possibilidade de ela não resistir à adversidade e entrar em depressão e foi por isso que fez a sugestão mesmo pensando que ela não aceitaria:
– Porque não terminas já o teu curso?
– Porque faltam dois anos.
– E depois? Esse é um curso modular. Podes sempre propor-te aos exames finais.
– Seriam muitos.
– Faz um plano de trabalho, propõe-te aos exames e conclui.
– Não é humanamente possível. Já houve quem tentasse…
– Sim, mas tu não tentaste.
– Estás a empurrar-me?
– Estou.
– Pablo!
– Para quê fingir? A ocupação é o melhor que pode acontecer-te neste momento.
– Mas eu trabalho!
– Trabalho mal pago, não especializado, ou seja, se alguma vez tiverem de dispensar alguém, serás a primeira a sair. Além disso, eu não disse para deixares de trabalhar…
– Pablo! A Mariana, o Jacob, o trabalho, tu…
– Eu?
– Sim… tu és o meu mestre e o meu mestre tem desejos…
– Tu és capaz. Tu sabes que és capaz. Além disso, não suportarás viver a tua vida sem saber se terias conseguido ou não.
– Aquilo tem despesas…
– Que eu pago.
– Não sei…
Mas soube. Poucos dias depois anunciou a sua intenção.

 No primeiro mês trabalhou com particular dedicação. Nem acreditava que lhe pagassem o que estava escrito no contrato. Passou o mês a imaginar que iriam inventar descontos e impostos até ficar o valor que recebia até então. E o final do mês chegou e ela foi verificar o saldo da conta e as lágrimas correram-lhe face abaixo. Normalmente teria de trabalhar quatro meses para chegar àquele valor. Começou a imaginar tudo o que poderia fazer, todas as necessidades que poderia suprimir, os mimos com que iria presentear os seus meninos. Nessa noite quase não dormiu. Amou vigorosamente Pablo, levantou-se e foi fazer contas. Decidiu criar um fundo de emergência para o qual contribuiria mensalmente, decidiu o que melhorar no seu dia a dia e decidiu convidar a avó, Marcelle e Pablo para almoçarem juntos nesse fim de semana. Pagaria ela. No novo trabalho, o acolhimento havia sido fantástico. Pelo facto de ser uma Técnica Superior de Contas, de ter a formação, o diploma, todas as portas pareciam abrir-se, até as da simpatia. Era quase como se tivesse entrado para um clube exclusivo. Renasceu em si a determinação de não esquecer os tempos das dificuldades, de os honrar com trabalho honesto e competente e, como que num retorcido paradoxo mental, cresceu em si, ao mesmo tempo, a determinação de nunca mais voltar a esses tempos.

 Como qualquer outro sentimento, a resignação pode apoderar-se da mente humana  e tolhê-la, impei-la de crescer. A libertação de uma mente pode ser um processo tão demorado e penoso como o seu aprisionamento. Madalena levou tempo a habituar-se às suas novas possibilidades, levou tempo a descobrir o que poderia fazer com a independência conquistada. Levou tempo a soltar-se dos sacrifícios, dos ritmos e dos rituais que tinha antes e houve mesmo pequenos gestos que nunca perdeu. Guardar um fósforo já riscado dentro da caixinha para poder usá-lo de novo ao acender um segundo bico, despejar o óleo de fritar usado num frasquinho para poder reutilizar, ou  cortar a bisnaga da pasta de dentes com uma tesoura para poder rapar todo o conteúdo. Reaprendeu a viver, em primeiro lugar, através das crianças. Começou por comprar-lhes roupa com mais frequência, a renovar o material escolar mais vezes, a encher a despensa com o essencial, mas também com o que noutros tempos seria dispensável. E só depois reaprendeu a cuidar de si. Quando chegou o ano de dois mil e dois, decidiu oferecer-se duas prendas. Uma mais ligada ao trabalho e à matéria. Ofereceu-se um computador portátil. Seria mais fácil transportar o trabalho, poderia, em certas circunstâncias, trabalhar a partir de casa e poderia gerir a sua carteira de clientes com outra eficácia. E uma segunda prenda, de um universo diferente. O dos afetos. Nesse ano, Madalena fará vinte e nove anos, o último aniversário dos seus vintes, uma década que se despede, uma outra que se anuncia. E decidiu, por isso, celebrar esse aniversário com amigos. Alguns colegas do trabalho, um ou outro da faculdade, a avó Bá, Pablo, Marcelle, um ou outro amigo de Kyle cujo paradeiro Pablo conhecia. E estava reunindo numa lista aqueles que por uma razão ou por outra lhe diziam um pouco mais, quando se lembrou de Mark Merrit. Que seria feiro dele? Uma rápida visita a uma caixa de cartão onde guardava coisas antigas foi suficiente para encontrar o número que ele lhe dera em África. Por certo não funcionaria. Ainda assim, tentou ligar. Para sua surpresa, o telefone tocou e uma voz feminina atendeu:
– Bom dia. Com quem deseja falar?
– Com Mark Merrit.
– Só um momento… quem devo anunciar?
– Humm… Kyle, Kyle Mckenzie.
– Senhora Kyle Mckenzie?
– Não. Senhor Kyle Mckenzie. Eu sou a secretária dele.
– Ah! Com certeza. Só um momento…
Quando Mark atendeu o telefone, a sua voz soou inconfundível e Madalena, ao ouvi-la, quase conseguiu sentir o cheiro do café aquecido numa fogueira crepitante na noite africana. Recompôs-se e falou:
– Mark?
– Kyle? Esta voz não é do Kyle.
– Infelizmente…
– Madalena!
– Não era suposto tomares conta de mim?
E reataram laços em poucas palavras. As justificações absurdas de quem não tem nada para justificar, a notícia de que Kyle morrera pouco depois de o conhecer, uma breve e sincopada história dos dias vividos desde então, em Genebra, os contornos da situação atual. E Mark correspondeu com o pouco que reuniu de improviso acerca de si próprio, momentânea carta de reapresentação, a sua saúde, a intermitência na relação com o seu companheiro que ora era tórrida e apaixonada, ora depressiva e distante, o trabalho cada vez mais volumoso e uma vida faustosa de que quase não conseguia usufruir. Madalena perguntou-lhe se não teria nenhuma viagem programada para a Europa nos próximos tempos e Mark Merrit não poderia ter sido mais claro na resposta:
– Não tenho, mas por ti vou de propósito. Devo isso ao Kyle…
– Não é um bocadinho excessivo? Acho que nos conhecemos de umas noites à fogueira a beber café num local inóspito de África.
– Por isso mesmo. Por ter sido tão pouco e ter significado tanto. Diz-me, madalena, achas que as nossas vidas teriam sido as mesmas se não nos tivéssemos cruzado?
– Concordo que não, mas isso pode ter sido mais por causa da missão do que por nossa causa…
– Nós éramos a missão! E só nos tínhamos uns aos outros… de resto… porque me telefonaste?
– Porque… – fez uma pausa – estava à procura de pessoas especiais…
– Eu sou especial?
– Acho que sim.
– Vês, além da honra, isso vem dar-me razão. Uns meses perdidos no deserto à procura do sentido da vida, umas noites à fogueira e é quanto basta para sermos especiais uns para os outros.
– Tens razão, Mark, foi a qualidade do tempo passado. O Kyle gostava muito de ti. Eu admirava a tua irreverência e a tua autonomia. Para mim, és o exemplo do sucesso conquistado a pulso.
– E afinal porque me ligaste?
– Como te disse, vivi uns anos difíceis. As coisas estão a correr melhor e eu decidi celebrar os meus vinte e nove anos. É só daqui por um par de meses…
– Conta comigo!
– Tu vens? Dos Estados Unidos aqui?
– Claro! Dinheiro não é problema, felizmente, estou a precisar de descansar, a precisar de distanciar-me disto tudo, incluindo daquele tipo que aparece de vez em quando lá em casa e a que chamo namorado… vou uns dias antes do teu aniversário e fico uns dias depois, se concordares.
– Isso seria magnífico. Tenho uma amiga que vais adorar… vocês são tão parecidos… podes ficar em casa dela…
– Naaa… não me parece… não te preocupes com isso, a minha secretária vai planear-me a viagem, alojamento incluído.
– Ok.
– Ok. Combinado. Olha…
– Sim…
– Vai ligando…
– Certo. Tens e-mail?
– Claro.

Enquanto esteve em Genebra , ao longo de duas semanas, Mark Merrit ficou no hotel somente duas noites. A primeira e a última. A sintonia foi imediata. Com Pablo, tinha em comum a amizade por Kyle, com Marcelle, as ideias progressistas, a irreverência do caráter, a vertigem da independência, o gosto pela crítica envolta em palavras acidulantes e a ternura por Madalena. Com esta, o brilho no olhar e o gosto por noites longas à fogueira das palavras. Enquanto Mark Merrit esteve em Genebra  saíram muito, os quatro. Pablo conduzia, Madalena a seu lado, os outros dois lá atrás. E o entusiasmo da conversa projetava-se no timbre sonoro das suas vozes. Entre Mark e Marcelle nasceu rapidamente a cumplicidade de terem percebido ambos que, não sendo heterossexuais, homossexuais também não eram. Eram só pessoas. À procura de outras pessoas. A lutar contra rótulos. Mente aberta, preconceitos ao largo. O animado e improvável grupo fez o percurso dos pubs, dos restaurantes, dos teatros e dos pubs de novo. E tudo parecia convergir, lá em casa, noite dentro, com um porto entre as mãos e as palavras a bailar embaladas por espíritos inteligentes e motivadores. Normalmente, Pablo ia deitar-se primeiro, depois era Madalena quem se despedia e os outros dois ou ficavam por ali mais um pouco ou retiravam-se para casa de Marcelle onde Mark se havia instalado em definitivo e onde a conversa continuava até ao raiar do dia. Por uma ou duas vezes, adormeceram no sofá enroscados um no outro, cobertos por edredãos de penas e com os copos da longa noite poisados ali por perto. De manhã, ou saíam para as suas camas ou iam diretos para o chuveiro. Primeiro eu, depois tu. Numa dessas manhãs, Marcelle acordou primeiro e foi para o duche e já saía da casa de banho com as linhas do corpo a verem-se à transparência da túnica  de tecido fino que vestia, quando Mark se levantou para dirigir-se ao seu quarto. E viu-a vir, a silhueta elegante, o ar angélico, o aroma do duche perfumado e algo em si acordou. Foi ao seu quarto, depois tomou um duche em pouco tempo, sem ser convidado, entrou no quarto de Marcelle, entrou na cama, ela virou-se para ele à procura do desejo que lhe vira há pouco quando se cruzaram e encontrou-o. Nesse dia não saíram de casa. Nem do quarto. À noite, jantaram com Pablo e Madalena que viu no olhar de ambos a satisfação do corpo. Sorriu. Sorriram. Quando Pablo se foi deitar, Madalena não resistiu a sondar o incomum casal:
– Então e como é que vocês se estão a dar na minha ausência? O Mark tem-te tratado bem?
– Muito bem – retorquiu Marcelle – e sendo muito honesta e muito direta contigo… aconteceu hoje e foi libertador. Sublime!
– Marcelle! Mark! Que bom! Como fico feliz por vocês! Mas vocês… quer dizer… como é que… ai… não sei se me faço entender…
– Então, Madalena, os meninos têm uma pilinha e as meninas têm uma vagina!
E largaram os três a rir riso cristalino e Madalena retomou:
– E esconderam isto de mim todo o dia, toda a noite e só agora… por causa do Pablo! Não quiseram falar à frente dele.
– O Pablo é um bom homem, Madalena – disse Mark – mas é demasiado masculino, demasiado impetuoso.
– Sim, Madalena, gira tudo à volta do pénis dele. Com o Mark foi libertador porque sendo ele homem, não foi impositivo, e é dotado de uma sensibilidade especial.
– E sendo a Marcelle mulher, Madalena, percebeu o que eu precisava e completou-me.
– O meu Pablo é um bom homem, ele não vos iria recriminar.
– Claro que não. Mas também não iria perceber.
– E eu? Porque me contam com esse entusiasmo a vossa aventura?
– Primeiro, porque tu perguntaste. Depois porque foi uma descoberta. Foi mais uma descoberta. É simples, Madalena, Marcelle e eu falámos em ti durante o dia e pensamos que também tu és uma alma livre como nós, capaz de nos compreender e até de partilhar alguns momentos connosco.
– Soa a convite.
– Não é. É só a constatação de que tu tens uma mente livre e aberta como nós.
– Até posso ter, mas neste momento estou muito concentrada no Pablo e em todas as coisas boas que me estão a acontecer.
Conversaram até muito tarde. Sobre as suas opções de vida, sobre os seus trabalhos, sobre arte, sobre livros. Eram leitores compulsivos. Compararam autores, estilos, falaram das obras que mais os haviam marcado, falavam de cada livro como se tivesse sido um momento único nas suas vidas, uma revelação. Falaram de música, das suas canções preferidas, falaram das outras pessoas, de algumas em particular, falaram do preconceito, do sofrimento e do sucesso e falaram, claro, de sexo.  E cada um disse o que tinha para dizer, sem máscaras, com naturalidade. Perceberam a sintonia entre si, as experiências de vida fortes e marcantes que os tornavam cúmplices e fortaleceram uma amizade. E quando foram dormir foi como se o Mundo se tivesse tornado um local melhor para se viver, mais acolhedor, mas harmonioso. E foi esse sentido de harmonia que guardaram nos seus corações e levaram para o aniversário de Madalena, daí a dois dias.

Foi um dia especial. Em todas as suas vertentes, em todas as suas possibilidades. Madalena há de relembrar o seu vigésimo nono aniversário enquanto tiver memória. Os amigos começaram a chegar por vota das cinco da tarde. Nessa altura, Albertina e os miúdos ainda estavam com eles, as pessoas deliciavam-se com os petiscos que a avó Bá e Marcelle haviam preparado no dia anterior e nessa mesma manhã. Mark encarregou-se da decoração da sala e Pablo comprou um bolo gigante e organizou uma prova de vinhos. Vieram os colegas do trabalho, os da faculdade, alguns amigos de Pablo, e ainda dois ou três do tempo de Kyle, Liberta esteve uns momentos e veio beijar e abraçar a irmã. Soava uma música de fundo, era Jacques Brel e depois Piaf. A noite foi perfeita. Um jantar volante, com as pessoas a circularem animadas pela casa, a petiscarem isto e aquilo, a beberricarem vinhos diferentes sobre os quais opinavam de forma imprecisa mas entusiástica. Fizeram sucesso particular os pastéis de bacalhau da avó Bá. Mark tinha comprado umas garrafas de champanhe que se serviu e muito frio e deu um toque de elegância à celebração. As caras dos convidados transpareciam satisfação e bem-estar, as conversas nasciam a cada canto da casa, a avó Bá saiu primeiro com as crianças para poderem descansar e os adultos ficaram na conversa que começou como uma fogueira, pouco a pouco, e atingiu um auge de trocas de impressões calorosas e crepitantes e era já tarde quando todo esse fogo acalmou e deu lugar a brasas discretas, mas quentes. As pessoas foram saindo, Pablo foi com um dos grupos explorar o resto da noite fora de casa e, por fim, restaram só Madalena, Marcelle e Mark e foi ele que perguntou:
– Já repararam que os nossos nomes começam todos por M?
– Achas que isso é um sinal?
– Não. Nós é que vemos o sinal porque somos atraídos para ele pela nossa própria vontade. Não uma vontade consciente, uma outra mais poderosa que nos contraria a razão.
Levantou-se. Foi buscar uma taça larga que tinha sido cheia com cerejas recheadas de licor e envoltas em chocolate e propôs um jogo:
– Meninas, vamos lá a ver quem merece estas cerejas achocolatadas e cheiinhas de licor. Proponho um jogo.
– Boa, boa, um jogo, que seja interessante…
– Muito. Cada um de nós escolhe uma vítima, um interlocutor, e faz uma aposta em relação a ele, uma espécie de pergunta já com resposta. Algo que o outro já pensou, já pensou fazer, já fez, deseja fazer. Se acertar na aposta que fez, o outro, a vítima que ele escolheu tem de vir aqui à taça tirar uma cerejinha, coloca-a entre os lábios e oferece-a ao outro, assim como se fosse um beijinho achocolatado.
– Espera lá, esse teu jogo tem uma falha.
– Não tem nada.
– Tem, tem.
– Qual é?
– Quem é que garante que a aposta estava certa ou errada?
– O próprio. O desafiado. A vítima.
– Mas a vítima pode mentir.
– É, concordo com a Madalena.
– Meninas, muito mais do que sobre beijos achocolatados, este jogo é sobre confiança. A confiança é a chave disto tudo. A confiança e a partilha.
– Então e sobre o quê podem ser as perguntas?
– Tudo! Desde as coisas mais insignificantes como um livro que tenhas lido, um local onde gostes de passar a tarde de domingo, até às mais privadas e íntimas e reveladoras.
– E é obrigatório responder?
– Se não for, não estamos preparados para jogar, não somos ainda suficientemente próximos. É obrigatório, mas é obrigatório porque cada um de nós aceita isso. Jogamos?
Elas olharam uma para a outra, depois para ele e responderam sorrindo e em uníssono:
– Jogamos!
E jogaram. e, assistindo nós ao jogo, ficámos sem saber onde acabava a sedução e começava o sexo. Sexo não houve. E sexo não deixou de haver. Tudo se passou com certa gradação. Começaram por desafiar-se com apostas fáceis e simples e pouco embaraçosas e talvez por isso as recompensas eram oferecidas sem volúpia. Um simples tocar de lábios, um passar de cereja, Ainda agora era minha, tua se fez. Já aqui se disse que tinham as cerejas licor e é sabido que o licor, mormente administrado em pequenas e persistentes doses, acaba sempre por ter seus efeitos. E teve. Libertou as línguas que começaram a perguntar mais desinibidamente o que as mentes queriam saber. E à medida que as perguntas ficavam mais complexas, mais profundas, e geravam maiores hesitações e inquietações, as respostas vinham mais sérias e pausadas e quando acontecia estarem corretas as apostas, a cereja do vencedor era entregue com maior cuidado, mais demoradamente, prenhe de volúpia. E o que era suposto ser um encosto de lábios, transformou-se numa carícia demorada e em pouco tempo em beijos molhados e ardentes. Todos se recompensaram. Recompensou Mark a Marcelle. Recompensou Marcelle a Madalena. Recompensou Madalena a Mark. Recompensou Marcelle a Mark. Recompensou Madalena a Marcelle. Recompensou Mark a Madalena. Arriscaram. Erraram. Acertaram. E sempre que acertaram foram recompensados de cerejas e chocolate e licor e lábios e língua. E nunca se negaram a uma aposta. Expuseram-se sempre. E, para o final do jogo, já quase não erravam nas apostas que faziam porque se ficaram a conhecer profundamente. Intimamente. E a noite envelheceu. E Mark, como quem sela uma união, foi buscar três copos e uma garrafa de champanhe. Abriu-a. Encheu os copos. Levantou o dele e disse:
– Ao inseparável grupo dos três emes!
Elas ergueram os copos em reflexo do gesto dele e repetiram a mesma frase. Estranha ironia. Inseparável, disseram eles. Separar-se-iam daí por minutos pois Mark e Marcelle rumariam a casa dela. Separar-se-iam daí por cinco dias pois Mark voltaria aos Estados Unidos e ao seu trabalho. Separar-se-iam daí por dois meses pois Marcelle aceitaria uma proposta de trabalho no Canadá. Partiria. Preferia isso a conviver partilhando Madalena com Pablo Sentido. E quererá a vida que se reúnam outra vez. Será à volta de uma fogueira. Em áfrica!

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A Paixão de Madalena – Capítulo 13

A Paixão de Madalena

AVISO
O texto que a seguir se publica faz parte do romance “A Paixão de Madalena” e contém passagens de teor erótico. Se se sente ofendido com textos, imagens ou quaisquer conteúdos sobre erotismo e sexualidade, por favor não prossiga.
Do mesmo modo, o conteúdo desta publicação só pode ser acedido por pessoas maiores de 18 anos.
Assim, caso prossiga com a leitura, o utilizador fá-lo por vontade própria e assume ter idade para aceder aos conteúdos.
Obrigado.
jpv
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A Paixão de Madalena

Livro II – O Cordeiro de Deus

13. É noite.
É um quarto mergulhado na penumbra. Fonte de luz, só uma vela tremeluzindo, colocada no chão e a um canto da divisão. É uma cama no centro. Uma porta à esquerda. Aqui, onde está o nosso olhar, só o olhar, que nós não nos atreveríamos a devassar cena de tanta e tão cúmplice intimidade, está uma poltrona. Fica a um canto e quando a porta se abre quase obstrui a visão. Está vazio, o quarto. Vazia, a cama. Ocupada, só a poltrona, com o nosso olhar. É uma cena de imobilidade por agora. Só a luz trémula e envelhecida da vela parece soprar as sombras num bailado dolente. Entra uma mulher no quarto. Cabelos claros, soltos sobre os ombros. Uma única peça de roupa, uma túnica ao longo do corpo. Nada mais. Chega junto aos pés da cama, deixa cair a túnica e o seu corpo alvo, de formas arredondadas e sedosas, fica exposto à luz fraca daquela penumbra. Dobra-se sobre a cama, abre os braços e agarra-se aos lençóis. Os pés no chão. E espera. Alguns momentos depois, entra um homem no quarto. Está vestido. Não interessa como. É alto e bem constituído. Aproxima-se da mulher prostrada sobre a cama e acaricia-lhe as nádegas alvas e desnudas. Depois toma-lhe o sexo com as mãos e a mulher deixa-se estar prostrada gemendo de prazer e rangendo os dentes de desejo. O seu gemido converte-se numa súplica e o homem faz-lhe a vontade. Afasta-lhe as pernas com a ponta do pé, desaperta o cinto das calças e deixa-as cair até ao joelho, ergue o sexo intumescido, procura-a e penetra-a com suavidade. Segura-a pelas nádegas e inicia um vai-e-vem lento, depois, um pouco mais entusiasmado para terminar vigoroso e frenético. Despeja-se nela com um urro de prazer a sobrepor-se aos seus gemidos que eram agora gritos descontrolados de êxtase. Ele terminou. Recolheu o membro latejante, subiu as calças e abotoou-as. Saiu do quarto. Nunca olhou a poltrona ao canto. Tinha ordens para não o fazer. Nessa poltrona, onde deveria estar apenas o nosso olhar, estava sentado um homem. Era Pablo Sentido. Fez um pequeno compasso de espera após o outro ter saído, levantou-se, aproximou-se da mulher, virou-a, puxou-a para cima da cama e tombou sobre ela procurando-lhe os lábios para pousar os seus. Penetrou-a devagarinho e com ternura e estava dentro dela quando lhe sussurrou ao ouvido:
– De quem és tu?
– Sou tua, mestre!

Pablo Sentido era espanhol. Facto que o leitor conhece e não estranhará caso tenha prestado atenção ao capítulo sétimo desta Paixão, de Madalena chamada. E por ser espanhol não podia viver em Espanha. Não acontece com todos os espanhóis. Acontece com alguns. Acontece com aqueles que têm tanta Espanha no peito que precisam vivê-la à distância para suportar a sua convivência. A verdade, até agora indesmentida, é que Pablo Sentido se formou em medicina, se especializou em psiquiatria, mas aquilo que realmente lhe interessa é a sexologia, melhor dizendo, a psiquiatria da sexualidade. Ora, foi por ser espanhol andaluz que um tal interesse lhe nasceu no peito e foi alimentado pela sensualidade que rodeou o seu crescimento e formação enquanto criança e jovem. As mulheres de pele tisnada pelo sol, com roupas de praia, os casais toureando uma sevilhana ou uma malaguenha ao som das castanholas e dos gritos de incentivo, o vigor masculino e a força da sensualidade feminina cresceram consigo, em si. Acontece que, primeiro por se desentender com o regime de Franco, depois por ninguém em Espanha precisar de sexólogos, Pablo saiu e nunca mais regressou. Em Espanha não há problemas com a sexualidade e as razões são simples. Ou não os há porque ela se exprime no seu esplendor, ou há-os mas escondem-se. Vive-se aí certa vivacidade machista em que os machos são genericamente dados como competentes e as fêmeas como satisfeitas. Naturalmente que, com um tal ambiente social, um especialista da sexualidade ver-se-ia rapidamente falido. Fosse por isso, fosse por ter ficado eternamente zangado com a pátria ou, fosse, ainda, por se ter dado bem com os ares e as gentes da Suíça, Pablo nunca regressou em definitivo a Espanha. Na Suíça, os casais procuravam-no, aconselhavam-se com ele e pagavam-lhe bem. Talvez por ter um ar exótico, de tipo que não só estudou, mas é oriundo de onde se percebe de sexo, os serviços de Pablo são muito procurados. Seja no consultório, pelos casais, seja fora dele, pelas senhoras dos casais que lhe vêem no bronzeado natural da pele uma terapia e uma solução para os seus problemas matrimoniais. Vive só, mas faz-se acompanhar com frequência, continua a escrever sobre Espanha como se Franco ainda fosse vivo e estivesse no poder, desanca nos políticos e tenta educar os compatriotas incitando-os à revolução. Envia os textos a amigos que em Espanha os fazem publicar no El Pais. Estuda. Estuda sempre.. Investiga, teoriza e publica em revistas da especialidade médica e dá palestras em conferências e congressos e, à noite, pelo movimento no quarto de hotel que lhe reservaram percebe-se o sucesso dos seus discursos. Gosta do reconhecimento e do aplauso das colegas quando, depois da teoria, vêm em busca de um pouco de prática. Vive bem. Bom carro. Apartamento junto ao grande lago de Genebra, equipado com as modernices que um homem eternamente solteiro pode desejar, almoços e jantares onde gosta, com quem gosta. Era um pouco mais novo do que Kyle e por vezes recorda-o e chega mesmo a citá-lo quando se encontra com amigos comuns e relembram o tempo das tertúlias que após a morte do irlandês deixaram de acontecer, assim como que numa tácita manifestação de respeito pelo amigo que partira. O ritmo e a intensidade com que Pablo Sentido tem vivido andam fazendo seus estragos e ultimamente surpreende-se com frequência recusando convites para sair à noite, provocações para fins-de-semana movimentados e, por vezes, olha à sua volta, ao sábado à noite, e vê uma boa garrafa de vinho tinto aberta com um único copo de pé alto a fazer-lhe companhia, a lareira crepitando, um livro na mão e os Waterboys a chorarem In Search of a Rose. E o engraçado é que se sente confortável e não procura contrariar-se. E foi neste estado de mudança em curso que veio a reencontrá-la. Poder-se-ia dizer que mal se lembrava dela, mas seria uma falsidade. O brilho do olhar azul como o céu nunca lhe saíra da mente. Nem isso nem certo sorriso de atrevimento que ela por vezes deixava escapar.

Quando chegou o ano de dois mil e as televisões discutiam afincadamente se o século e o milénio estavam a mudar, tinham mudado no ano anterior, iriam mudar no próximo, ou nada disso interessava porque os calendários haviam sido trocados e as contagens mudadas, Madalena continuava a fazer sacrifícios. Vivia a sua vigésima sétima primavera, estudava de noite e trabalhava de dia num escritório de contabilidade, assumindo tarefas difíceis e responsabilidades sérias a preços módicos pois que, não obstante o gosto, a capacidade e a formação no liceu, faltava-lhe a habilitação superior e profissional que agora buscava. E, contudo, batalhava acreditando em dias melhores que rápido surgiriam. Seria atarefado e repleto de mudanças, este ano que pode ou não ter virado o milénio, mas que virou o destino de Madalena. Mariana vai fazer dez anos e Liberta nunca mais veio buscá-la. Madalena tomará uma decisão a esse respeito, dentro de semanas, para marcar a década. Jacob fará cinco anos e também em relação a ele, centro de quase todos os seus afetos, haverá que tomar decisões. Marcelle tem sido uma companheira e um lenitivo para a dureza da vida, mas a verdadeira e mais profunda mudança acontecerá dentro de dias quando reencontrar o homem que em tempos a inquietou.

Chegou cedo ao escritório, seriam umas oito e trinta, e ainda não se tinha acomodado na cadeira, à secretária, quando lhe atiraram um monte de papéis para cima da mesa:
– Toma. Trata deste cliente.
– Complicado?
– Porque perguntas?
– Costumam dar-me os complicados.
– É um médico que faz acompanhamento no hospital e tem um consultório próprio. A contabilidade não é complicada. Ele é que é difícil.
– Como assim?
– É um indisciplinado. Nunca aparece com os papéis e quando aparece tem uma pontaria tremenda para acertar nos papéis errados.
– Diagnóstico?
– Nada de especial. É espanhol!
– Espanhol? E isso é um defeito?
– Se é um defeito não sei, mas lá que o tipo não bate bem… é um desorganizado e também não é lá muito bem educado. Aqui no escritório, excetuando os homens, acho que já nos perguntou a todas se tínhamos feito sexo anal.
Madalena estremeceu. Aquela memória cinzenta, recalcada e escondida debaixo do sofrimento e do tempo, avivou-se. Seria possível? Pegou nos papéis, folheou as primeiras páginas e o nome lá estava: Pablo Sentido. Ela sorriu:
– Acho que se resolve…
– Estás sorrir?
– Estou.
– Conhece-lo.
– Mais ou menos. Digamos que noutra vida, há muito, muito tempo, ele me fez essa mesma pergunta.
– E tu?
– Bati-lhe com a porta na cara.
– E no entanto sorris…
– Sim. O tempo muda tudo. Este homem liga-me à pessoa mais querida que alguma vez conheci.
– Ok. Esquisito, mas se estás confortável…
– Não sei se estou. Os reencontros podem ser imprevisíveis. Vocês já o chamaram?
– Sim. Vem cá para a semana.
– Tudo bem, eu trato disto. Afinal de contas, ele é espanhol, eu sou portuguesa, para vocês é tudo o mesmo e darem-me este dossiê foi mera coincidência…
– Vá lá, não sejas assim. Por acaso não achas que pensámos isso…
– Se acho? Eu sei que pensaram isso!
– Madalena!
– Deixemo-nos de conversas. Eu trato do caso.

Pablo Sentido entrou no escritório, olhou em volta, fez juízos de valor precipitados sobre a decoração do espaço e nem parou para lançar um olhar atento à moça atrás da secretária. Essa ficaria para daqui a pouco. e, por não estar à espera de ser interpelado, foi surpreendido:
– Senhor Pablo Sentido?
– Sim, o próprio.
– O senhor já praticou sexo anal?

Foi numa conversa com Marcelle que a ideia tomou forma. Apesar da intimidade que as ligava, selada num beijo não repetido do qual nem sequer haviam falado, Madalena não se lembrara de conversar com Marcelle sobre a situação de Mariana de quem tomava conta por uns dias há dez anos. Era domingo. Estava um frio ensolarado e Marcelle oferecera um chá no Bistro’s. Madalena aceitou e durante a conversa animada e diversificada falou-lhe da intenção de fazer uma festinha surpresa a Mariana. Afinal de contas, dez anos é, naquela idade, a grande meta. Os dois algarismos. Uma espécie de superação para crianças que se julgam mais adultas porque já são precisos dois símbolos para escrever a sua idade. E falaram da festa, e Marcelle prontificou-se para ajudar e tiveram montes de ideias em conjunto e veio depois a falar-se da prenda:
– Não sei que lhe ofereça, Marcelle. Ela é tão menina, tão pequenina e, contudo, tão adulta. E… enfim, queria algo especial, mas tem de ser um especial que eu possa pagar.
– Porque não te ofereces a ti mesma?
– Como?
– Sim. Trata da adoção. Fala com a tua avó. Ela pode ver o que a tua irmã pensa disso e estou certa de que não se oporá. Seria uma hipocrisia. Tu criaste essa criança, ela chama-te mamã, deste-lhe todo o amor do mundo. Sê mãe dela por inteiro. Depois compramos-lhe um fiozinho de ouro com um pendente em forma de coração que se abre e fecha e tem lá dentro a tua foto de um lado e a data do nascimento dela do outro.
Madalena tinha os olhos brilhando de emoção e algumas lágrimas mais precipitadas vieram ver a luz do dia. Estendeu a mão para segurar a de Marcelle por cima da mesa:
– A tua ideia é perfeita. Como tu me entendes!
Cruzaram um olhar e saíram dali no carro de Marcelle para irem estudar um pouco em casa dela. Subiram. Marcelle abriu a porta. Madalena entrou. Marcelle segurou-a pela nuca, puxou-a para si e beijou-a longamente. Desta vez, sem surpresa. Madalena deixou-se ir e retribuiu o beijo terno e molhado. Com gestos inaugurais e prudentes foram-se acariciando, desvendando segredos, procurando o seu próprio prazer no prazer da outra. Tombaram as roupas, tombaram as mulheres desnudas no sofá, andaram mãos vagueando corpos e línguas incendiando desejos. Quando terminaram aquela dança, trocaram um último e apaixonado beijo. Não voltariam a fazê-lo, nem tão pouco a falar disso. Por vezes, a realidade tem pesos que as pessoas não suportam. Este era um assunto encerrado. Adormecido. Até que um homem inusitado o viesse acordar.

– Miúda?! Será possível que tu sejas tu? Como é possível?
– Sim, Pablo, eu sou eu.
– Dá cá um beijo!
E avançou para ela, puxou-a para si e beijou-lhe as faces com ruído. E abraçou-a. Um abraço longo. Demorado. Vamos interromper aqui o abraço. A ele voltaremos já. Pelo perfil de Pablo Sentido, pela sua história de vida e pelas circunstâncias que vive Madalena, será lícito que o leitor pense que o velho lobo vai atirar-se ao cordeirinho.  Desculpado está o leitor pelo juízo que fez, se o fez, porque o que vai passar-se é estranho, mas compreensível. Não será o lobo a atirar-se ao cordeirinho, será o cordeirinho a agarrar-se ao lobo. As razões, eles as explicarão um ao outro. Quando terminavam o abraço, que as coisas têm um tempo, mesmo quando não se conta o tempo delas, Pablo fez menção de separar-se de Madalena, mas ela não deixou. Agarrou-se muito a ele, fez-lhe uma festa na nuca e absorveu profundamente o odor do seu pescoço. E ali ficou, estreitando-o entre o seu peito e os seus braços, como se agarrasse uma bóia de salvação e se estivesse transportando numa máquina do tempo. Pablo percebeu. E, sendo perspicaz, sentiu necessidade de dizer-lhe o que a seguir se revela:
– Eu não sou ele, miúda.
– Eu sei…
– Escuta… eu não sou ele, nunca serei ele e provavelmente nem sou muito parecido com o teu irlandês teimoso. Eu tenho as minhas próprias virtudes, graças a Deus são poucas, e tenho os meus próprios e incontáveis defeitos. Eu conheci o velho Kyle, vivi e convivi com ele, éramos da mesma geração, muito amigos, mas nada mais. Nada há em mim igual ao teu Kyle…
– Há pois.
– O quê?
– O gosto por mulheres…
– Presunção tua!
– Não. O próprio Kyle dizia que tu só não avançavas para mim por eu ser a menina dele, mas ele reparava na forma como me olhavas.
– E que forma era essa?
– A do predador olhando a presa.
– Enganou-se o teu velhote.
– E porquê?
– Porque, por uma vez na minha vida, a presa fui eu…
Fez-se um silêncio profundo. O que era óbvio para ele, ela teve de interiorizar, processar, e só depois arriscou:
– Tu… tu gostavas de mim?
– Gostava, não…
– Pablo! Este tempo todo?
– Sim.
– E não disseste nada? Não me procuraste?
– Sabes, miúda, eu percebo muito de sexo, mais precisamente de sexualidade, mas entendo pouco de amor. Quando eras do Kyle, eras do Kyle, depois perdi-te o rasto porque me perdi a mim mesmo e era preciso dar-te tempo. O que querias? Que no fim do funeral do meu velho amigo te declarasse amor e te convidasse para viveres comigo?
– Pois… talvez não.
– Aí tens. Quanto a não te ter procurado, estou aqui, não estou?
– Quer dizer…
– Quer dizer que te encontrei através da tua avó e entreguei a contabilidade a estas idiotas a ver se te via, se me reconhecias.
– Como poderia não te reconhecer?
– Sei lá… o tempo faz coisas esquisitas.
Ela soltou-o e soltou-se dos braços dele:
– Deixa-me olhar-te, espanhol  revolucionário. Deixa-me ver como te encontras. Bem conservado!
– Por fora. E respondendo à tua pergunta: sim.
– Sim, o quê?
– Já pratiquei sexo anal.
– Parvo!
– Garota atrevida.
E abraçaram-se de novo. Um abraço mais curto. Só para confirmar e selar o reencontro.
– Então, estás com problemas com a papelada?
– Tal como no coração, está tudo desorganizado. E também já não sei se sou eu que não sei trazer o que estes tipos me pedem ou se eles não sabem pedir-me o que precisam.
– Tens isso onde?
– Parte aqui, parte no consultório e parte em casa. Aqui está o que me pediram. No consultório, as coisas do consultório e em casa os papéis do hospital e umas coisas que eu não sei bem onde pertencem, recibos e assim…
– Olha, que me dizes ao seguinte, eu organizo isto, um dia destes vou ao consultório e trago de lá o que for preciso e depois passo por tua casa e trago o resto. Daqui por um mês tenho isto organizado.
– Impossível!
– Vais ver.
– Se fizeres isso, dou-te um prémio…
– Pablo!
– Dinheiro, em dinheiro.
E largaram a rir. As visitas aconteceram, foram muito profissionais e, mais uma vez, Madalena resolveu um problema difícil. E foi quando tudo ficou pronto que ele a convidou para jantar. E no convite já se revelou o Pablo que ela conhecera em tempos. Duas flores, rosas encarnadas, e um cartão de visita e no cartão iam estas palavras: Vem buscar o teu prémio!
E o cartão, sendo um convite, soou-lhe a uma ordem. Assim como se Pablo exigisse que ela fosse reclamar o prémio. Não lhe dizia quando, não lhe dizia onde, não lhe dizia o que era e isso era o mais fácil de adivinhar, somente aquela frase, com aquele ponto de exclamação no fim e uma leve rubrica no canto inferior direito. Mas somos assim, nós, humanos, andamos nesta vida perguntando o que já sabemos, dizendo o que os outros já sabem, confirmando confirmações, quando, na verdade, já conhecemos a maioria das coisas que falta saber.
E Madalena sabia. Até nisso apreciou o bilhete. “Até”, escrevemos nós, porque, sendo curto, teve várias coisas de que ela gostou, o colorido das flores, a força da mensagem, como se o homem lhe segurasse na mão e a orientasse, e a sua singeleza. Poucas palavras, um universo de informação. Todo o excesso, todo o ruído cortado, anulado, e restava só um homem, uma mulher, um passado e uma ordem.

Madalena foi. Sexta-feira. Às vinte. Bateu-lhe à porta e foi maravilhoso aquilo a que assistiu. Pablo esperava-a. Com cenário.
– Como sabias?
– Sabia. Há coisas que sabemos e pronto. Sexta-feira era o dia das nossas tertúlias, quer dizer, mais ou menos, mas é também a entrada do fim-de-semana e da esperança que vem com ele, é a noite de todas as promessas.
– Podias ter-te enganado. Eu poderia ter vindo noutro dia… ou não ter vindo de todo.
– Mas vieste e isso muda tudo!
Pela casa ecoa a voz ímpar de Maria Callas chorando a área das áreas, a síntese da existência humana em música, Un bel di vedremo de Madame Butterfly, a peça que coloca Giacomo Puccini no coração de todos os amantes. Desde a porta até à sala e desta até ao quarto há velas pequeninas a boiar em pequenas tacinhas de água e há um perfume de flores, são pétalas espalhadas pelo chão, e na sala, onde se percebe uma mesa de centro junto a um jogo de sofás, há uma taça com uvas frescas. O perfume da música e o das pétalas, a luz única das velinhas a rebrilhar na água das tacinhas de cristal, tudo aquilo cria uma atmosfera inconfundível. Madalena quis complicar-lhe a vida, colocar-lhe uma pergunta difícil, entrou devagarinho, com o pescoço esticado como se estivesse espreitando antes de entrar em cada espaço, e estava na sala, junto à mesinha com as uvas, quando perguntou:
– És tu o meu prémio, Pablo?
– Não, Madalena, o teu prémio és tu!
E enquanto ela esboçava um sorriso semi-surpreso, Pablo aproximou-se, acariciou-a por cima da roupa, olhando-a nos olhos, beijando-a longamente enquanto as suas mãos iam despedindo peças da roupa dela, e estavam ainda de pé, frente a frente, salivando de desejo arfado, quando ele pegou num pequeno bago de uva e espalmou o fruto frio contra o sexo quente dela, a diferença de temperaturas fê-la estremecer, as pernas fraquejaram, Pablo deitou-a num sofá, trouxe o fruto esmagado para a sua boca e saboreou o sexo dela e trocaram as línguas e ela saboreou também. O fruto. O sexo.
Adormeceram com os corpos encostados e quando acordaram não se mexeram. Estava escuro, a luz das velas era menor, algumas haviam-se apagado, pressentiram a respiração um do outro mais ativa e falaram na escuridão:
– Pablo…
– Sim, miúda…
– Eu posso amar duas pessoas?
– Essa pergunta tem tantas respostas.
– Dá-me uma.
– Dou-te todas. Quer dizer, todas as que sei. Uma resposta é que tu podes amar quem quiseres, quando quiseres. Não há limites, sabes. Os limites são culturais, são invenções nossas…
– Somos nós que criamos os limites?
– Estranho, não é? Conhecemos o amor, queremos amar, apaixonamo-nos, sabemos o quanto isso é maravilhoso, mas depois limitamos isso a um número de pessoas, a uma circunstância… enfim, o importante é que saibas essa resposta. Ama quem quiseres, quem o teu coração te pedir para amar.
– Mas…
– Não há mas, há outra resposta e essa outra resposta é um pouco mais complexa, não tentes perceber logo, pensa no assunto e forma uma opinião quando entenderes que estás pronta para isso. É o seguinte, não confundas sexo com amor.
– Onde queres chegar?
– Quero chegar a dizer-te que o amor é mais exclusivo, exige tempo e dedicação, podes amar quem quiseres, quando quiseres, mas precisas ter muito cuidado porque facilmente quem ama se torna possessivo ou se magoa. A questão é que o processo envolve mais do que uma pessoa. Sempre. Não podes pensar que amas uma pessoa e geres isso sozinha. Quando amas uma pessoa, essa pessoa está implicada no teu universo, tem sentimentos e razões e direitos. Já o sexo é mais libertino. Pode decorrer do amor, mas pode também ser circunstancial. Desde que duas pessoas adultas estejam de acordo e consintam, tudo é válido.
– Estás a dizer que posso amar só uma pessoa, mas ter sexo com várias…
– Estou.
– Mas, assim, onde onde ficamos em relação aos tais sentimentos e razões e direitos da pessoa amada?
– Depende de quem amas, da relação que tens com a pessoa.
– Isso é muito confuso.
– Não é confuso, miúda, é complexo.
– É confuso! Onde é que se encontra uma pessoa assim?
– Aqui!
– Aqui? Que queres dizer? Que temos uma relação? Que vamos ter uma relação?
– Não. Estou a dizer que tenho mais uma resposta para a tua pergunta inicial…
– Qual?
– Ora, qual? Começaste por perguntar se podias amar duas pessoas…
– Ah, sim, isso… e…
– E se essa pergunta era sobre teres amado o Kyle e agora a mim, é importante, mesmo muito importante, que saibas que eu não sou o teu irlandês teimoso. Eu não sou o Kyle McKenzie. Partilhei a vida com ele, conversámos imenso, fomos amigos do coração, mas eu não sou ele. Sou diferente. Terei as minhas virtudes e tenho os meus defeitos, tenho os meus hábitos e os meus espaços. Amei-te muito naquela altura. Ainda amo. É uma paixão que não se apagou, só a sosseguei, mas entretanto cresci e criei as minhas rotinas. Não sei se vais perceber-me, Madalena, mas tenho de to dizer. Eu posso amar-te, posso cuidar de ti, dos miúdos, será uma alegria, mas eu não sou monógamo. Adoro sexo. Contigo. Mas não só contigo. Também contigo. E haverá alturas em que sairei numa viagem de trabalho e posso estar fora uma semana ou duas, ou mesmo um mês e dir-te-ei que vou sair, mas não quero mais perguntas sobre isso. E reconheço-te o direito de fazeres o mesmo. Acho isto mais saudável, mais honesto do que a mentira.
– E é. Mas eu não sei se consigo viver com isso. Tens de dar-me tempo para pensar. Amar-te e abrir mão de ti é esquisito.
– Sim, é. Mas é também a essência do amor. Amar é libertar. Se não for, não resultará.
– Se aceitar esse tipo de relação, será porque te amo muito. Tenho de perguntar ao meu coração.
– É importante que o faças.
– Só não quero uma coisa…
– Sim…
– Não quero saber nada delas e não quero mentiras.
– Isso são duas coisas. Não saberás. E este tipo de relacionamento anula a mentira à partida.
– Não sei, Pablo. Não estou tão certa assim…
– Pensa, miúda…
– Pensarei…
Pablo Sentido veio a ser a mais interessante, a mais longa e duradoura relação de Madalena com um homem. Ainda hoje se amam. Apesar da brecha que a mentira abriu.

Seguiu o conselho de Marcelle, pediu ajuda a Albertina, que falasse com Liberta, lhe dissesse que aquela situação não era para ninguém, ninguém aproveitava nada com aquela indefinição. Era ela que olhava pela menina, que lhe dava um teto e a alimentava, que a tratava na doença, que a levava à escola, que a acompanhava nos estudos, não fazia sentido estar a pedir-lhe que assinasse papéis para isto e para aquilo. Seria melhor que os assinasse de uma vez por todas e lhe concedesse a custódia da filha que, na realidade do dia-a-dia, dos afetos, das alegrias e dos aborrecimentos, era sua filha e não da outra que a parira. E, por favor, avó Bá, não leves uma eternidade, queria dar isso de presente à Mariana agora quando ela fizer dez aninhos e já só faltam uns meses. Vou ver o que posso fazer, filha, mas não fales da tua irmã como se te fosse uma pessoa distante ou indiferente. Vó Bá, sabes bem que não finjo o que sou ou sinto, ela é-me indiferente e distante. E selou a conversa com esta contundência. Estranhou, quinze dias depois, pela celeridade das notícias, quando Marcelle lhe disse que a avó queria falar com ela, que fosse lá a casa no sábado à tarde. E porque falou ela contigo? Porque tu teimas em não ter telefone! Telefone custa dinheiro, lembras-te? Sim, lembro, és uma teimosa, uma deliciosa teimosa. E tu és uma verdadeira amiga.

Estranhou que Albertina não fosse pura e simplesmente a sua casa e, como quem se defende, esteve quase para não ir a casa da avó nesse sábado, mas o olhar doce e bondoso de Marcelle não lhe saía da cabeça, e queria mesmo a custódia da menina, da sua filha, e foi e bateu à porta e viu o olhar comprometido de Albertina quando abriu a porta, assim como o cachorrinho que foi acima da mesa e sabe que não podia, e entrou e deu de caras com uma mesa posta de chá e biscoitos e numa cadeirinha, junto à mesa, Liberta sentada, de olhar húmido e culpado. Quis que falassem, avançou Albertina, vocês são irmãs, sangue do mesmo sangue que é o meu sangue também. Isto não se faz, avó Bá, esta mulher largou-me uma criança recém-nascida nos braços e nunca me disse nada ao longo de dez anos, que pode ter ela para me dizer agora? Desculpa! Posso pedir-te desculpa, e obrigado, posso dizer-te obrigado!
Quando ouviu estas palavras, Madalena estremeceu. A verdade crua que vinha nelas, a posição de total humildade e vulnerabilidade em que a irmã acabara de colocar-se, fizeram-na recuar na dureza. Que que queres tu de mim? Imagina que eu aceito as tuas desculpas e tomo por sincero o teu agradecimento, que queres de mim? Queres ser mãe a partir de agora? Vieste buscar a menina quando finalmente ta pedi? Não, Madalena, não… fui eu que a trouxe ao mundo, é minha filha por isso, será sempre, mas sei o que fiz e sei sobretudo o que tu fizeste por ela, que és a mãe dela de todos os dias, quero só que não me queiras mal, que me perdoes e abraces, que não haja ressentimento nem rancor… E queres ver a menina? Só quando tu quiseres, achares melhor, não te peço isso com condições, as condições serão as tuas. E assinas os papéis? Já assinei. Albertina foi buscá-los. Toma Madalena, estão aqui! Mas era suposto eu tratar dessa parte. Sim, mas eu tenho um amigo que vai muito lá ao Consulado e é advogado, pedi-lhe ajuda, está tudo aqui. E as despesas? Eu sou vossa avó, eu assumo essas despesas como bênção para esta mudança, para que seja feita em união. E o chá, está bom? Aqui em casa está sempre bom, sabes isso. Pois sei, serves-me um pouco? Claro. E quando se aproximou da mesinha, Liberta levantou-se, aproximou-se dela, abraçaram-se longamente e choraram as lágrimas da resiliência. Quando recuperou da emoção, Madalena olhou Liberta e disse-lhe, Vem ao aniversário dela, Tia Liberta!

Marcelle organizou tudo. Enfim, quase tudo. Pagou tudo. Enfim, quase tudo. Na véspera, Mariana foi para casa de Albertina a propósito de uma desculpa qualquer, a mais verosímil que se encontrou e Marcelle encheu a casa de Madalena de balões, de bandeirinhas suspensas de um cordel a atravessar a sala, fez doces, comprou doces, sumos, copos e pratos descartáveis, trouxe música apropriada e deu um ar festivo e feliz ao apartamento. Era uma festa. Era uma menina que fazia dez anos. Sem que Mariana soubesse, convidaram-se alguns coleguinhas da escola. Ao fim do dia, exaustas de culinária e preparativos, Madalena e Marcelle tombaram na cama anichadas uma na outra, e dormiram. Só isso. O sono dos afetos.

As crianças sabem tudo. E nós, adultos, temos a arrogância de presumir o contrário. Sabem o que lhes dizemos, sabem o que não lhes dizemos e sabem o que pressentem. Liberta aproximou-se de Mariana e disse, Olá, sou a tia Liberta, estás muito crescida. A menina olhou para ela, viu-se nela, os traços, o tom de voz, o olhar, o odor, e sentiu. Sentiu que aquela tia emocionada por vê-la lhe era mais próxima do que lhe tinham dito. Mas ficou-se com os seus pensamentos. Olá, és minha tia porquê? Porque sou mana da tua mamã. Mas a mana dela já morreu. Outra mana. Ah, e vives perto de nós? Não, vivo um bocadinho longe. Onde? Em Zurique. Sei bem onde é, posso mostrar-te no mapa, não é assim tão longe. É um bocadinho. E pouco mais disseram e mais não era preciso. Era dia de crianças e não de adultos e muito menos de acertos de contas com a vida. A festinha foi um sucesso e já todos tinham ido embora, deixando para trás os despojos do dia, Albertina lavava loiças, Marcelle limpava mesas, quando Madalena foi ter com a menina e lhe deu o seu presente. Era um coraçãozinho em ouro, pendurado num fio, abria-se e lá dentro, numa das metades, estava uma foto de Madalena e na outra a palavra Mamã. A menina olhou e percebeu. Pendurou-se no pescoço de Madalena e disse-lhe:
– T’ inquete pas, maman. Tu seras toujours ma maman!
Sem mais palavras nem gestos que excessivos seriam umas e outros se selou a relação. A vida começara a encontrar o trilho do entendimento.

Ela está na beira da estrada. Saia curta. Casaco de plumas esvoaçantes, feito de materiais baratos, por cima de uma blusa colada ao corpo com os mamilos espetados do frio a exibirem a sua firmeza, saltos altos, uma mala pendurada num braço, excesso de maquilhagem na face. A pose, o aspeto e a estrada não enganam. Puro preconceito. Forte excitação. Ele vem conduzindo um carro desportivo, aspeto distinto, calças de fazenda, camisa branca e um casaco de malha. Rola tranquilo engolindo asfalto e antecipa o momento. As mulheres na beira da estrada não estão juntas. Uma aqui, outra mais à frente e depois outra. Até que a viu. Aproximou-se dela. Abrandou a marcha, parou, abriu o vidro e esticou o pescoço para o exterior. Qual é o teu preço? Depende. Depende de quê? Do que queres. Nada de mais, vamos dar uma volta. Sim, mas queres ir para tua casa, para um hotel? Nada disso, quero aqui no carro, em movimento, enquanto conduzo. Olha, querem ver que me calhou um daqueles esquisitos, a menos que te queiras matar pela serra abaixo, em movimento não faço mais do que um broche. Seja, demora-te, fá-lo bem feito. Isso vai custar-te 30. 30? Não costuma ser 20? 20 é sem o fator risco. Entra! Paga! Ele pagou. Ela entrou e debruçou-se de imediato sobre o ventre dele, abriu o fecho das calças e começou a fazer aquilo para que tinha sido paga. Quando terminou, ele ainda se contorcia no carro que havia desenhado uns justificados esses no emaranhado de curvas que desciam a serra para Genebra. Só então Pablo Sentido voltou a falar, já ela se recostava no assento.
– De quem és tu?
– Sou tua, mestre.

Olhando a vida com atenção, como se o leitor estivesse lá no alto das nuvens e se viesse aproximando vendo cada vez mais perto a Terra que habitamos e depois um continente e um país e uma cidade e um bairro e uma rua e uma casa e as pessoas nela e se, durante esse percurso, pudesse o leitor aperceber-se da vida das pessoas, haveria de reparar que no Universo não temos senão um problema, não nos resta senão uma solução. Tudo o resto são derivações e variações desta crua realidade. O problema são os desequilíbrios. A solução são os equilíbrios. E a vida, a vida vivida, o fluir dos dias, com preocupações, esperanças, tristezas, alegrias, lágrimas e risos, não é mais do que o caminho entre um e outro. A busca do equilíbrio partindo do desequilíbrio. O que é uma doença senão um desequilíbrio, o que é um problema em família, no trabalho, numa viagem, numa repartição de finanças, num supermercado, senão um desequilíbrio? O que é uma derrota senão um desequilíbrio? E onde reside a cura para todas estas enfermidades do corpo e da mente? Na busca do equilíbrio. A busca em si é a terapia para atingir a cura que se alcança uma vez equilibrada a circunstância. Ora, por improvável que fosse, a relação de Pablo Sentido e Madalena resultou porque encontraram os amantes esse equilíbrio. Surgiu natural, quase sem esforço, ainda que com algumas reservas, e floresceu. Equilibrou-se a experiência da idade dele com a juventude dela. Equilibrou-se a ousadia do experimentalismo dele com a vontade de aprender dela e ampararam-se ambos no prazer da descoberta, no prazer encontrado na forma despudorada com que desafiavam as fronteiras. Todas. As da mente. E as do corpo. E assim, de improvável, o casal veio a ser harmonioso. Pablo Sentido recebeu-a como se recebe um convidado, mostrou-lhe a casa, disse-lhe onde estavam as coisas. Eu conheço a casa, disse ela tentando poupá-lo ao trabalho. Sim, conheces, mas agora vens para cá viver e eu tenho de mostrar-te todos os segredos e encaminhou-a, mostrou-lhe onde ficariam os miúdos, preparara um quarto só para eles e criara um espaço no escritório para que Madalena pudesse trabalhar ou estudar. Olha pus aqui uma secretária mais, afinal tenho de garantir que tenhas condições para me fazer a contabilidade, e beijou-a na testa. Apresentou-lhe a empregada e mais do que tudo, e isso não revelou, estabeleceu que seria um pai para os miúdos, em particular para Jacob, que lhe parecia muito tímido. E assim começaram uma vida titubeante que viria a consolidar-se e a criar horizontes de expectabilidade e rotinas de confiança para que pudessem os convidados dizer, Esta casa onde nos recebeste é agora nossa, e pudesse ele replicar, Esta casa onde vos recebi é agora vossa. O quotidiano com Pablo Sentido era imprevisível. O espanhol acreditava em quebrar rotinas. Por vezes, ao final do dia, muitas vezes ao fim-de-semana, Pablo aparecia com programas, ideias para passeios, visitas, idas a museus e ao teatro, ao cinema, um fim de tarde a ouvir jazz. Os planos dele, ora envolviam a família toda, incluindo Albertina, ora fugia com Madalena por dois ou três dias, iam ver as montanhas, o campo, uma cidade, um concerto, apanhavam um avião e iam ver o mar e iam, sempre, sendo sempre todas as vezes que queriam, que sorriam um para o outro e a oportunidade se apresentava, fazer sexo. Neste casal, eventualmente mais do que em qualquer outro que conhecemos, o sexo era uma linha condutora do seu relacionamento. Ele explorava a curiosidade dela e ela a experiência dele e ambos tinham a vertigem da descobrir, de fazer o que ainda não fora feito, de experimentar o inusitado, de percorrer as experiências mais ousadas e incomuns como uma via sacra da descoberta do sexo, de testar os limites individuais e os do casal. Ele propunha-lhe tarefas, desafios que ela aceitava realizando os desejos dele, mas ia sempre mais longe para o surpreender e o forçar aos jogos dela. Certo dia, Pablo comprou-lhe um telemóvel, tinha uma antena fininha de lado que se recolhia e esticava e nesse mesmo dia, para estreá-lo, ele enviou-lhe uma mensagem, Hoje, antes de saíres do trabalho, vai à casa-de-banho e tira as cuecas. Vou buscar-te de carro. Pablo passou o dia excitado com a perspetiva de a reencontrar e confirmar se ela havia cumprido. Ela entrou no carro e ele ordenou, Recosta-te! E ela recostou-se. Acaricia-te! E ela abriu ligeiramente as pernas para que ele visse o que queria e acariciou-se. Enquanto conduzia, ele estendeu uma mão para o sexo dela e ajudou-a no labor desenfreado de excitar-se.
Outra vez, trocaram uma bizarra sequência de mensagens:
– Olá miúda!
– Olá velhote.
– Pega num pequeno retângulo de papel…
– Já está…
– Escreve o meu nome…
– Já está…
– Coloca-o…
– Pablo!
– É uma ordem!
À noite, quando chegaram a casa, ele fechou-a no quarto, encostou-a a uma parede, puxou-lhe as calças para baixo, arrancou-lhe as cuecas com um puxão seco e firme, acariciou-a e por entre as carícias foi buscar o papel. Quando terminaram, Pablo falou, Hoje passei o dia dentro de ti! Pois passaste!
Um dia, Madalena fez uma compra pela Internet. Quando a encomenda chegou, colocou a caixa em cima da cama, do lado dele, e esperou que Pablo chegasse a casa. À noite, quando foram para o quarto, Pablo perguntou, O que é isto? É um presente da tua miúda. O espanhol abriu o embrulho com um sorriso desconfiado no rosto. Quando acabou de abrir o presente, tinha nas mãos um pénis em silicone com umas correias em cabedal que serviam para o colocar à cintura. O espanhol estranhou:
– Miúda, eu já tenho um destes!
– Sim, mas hoje sou eu o homem da cama!
– Hã?!
– Algum problema?
– Não. Nenhum.
E enquanto o possuía de quatro e o presenteava com umas palmadas no rabo, ordenou-lhe:
– A partir de hoje, na cama, chamas-me sluty.
– Em inglês?
– Em inglês!
– Sim, sluty!
Pouco depois, posições trocadas, ela de quatro, ele possuindo-a ao ritmo das palmadas que lhe marcavam as nádegas com o recorte dos dedos dele, foi ele quem exigiu:
– A partir de hoje, na cama, chamas-me mestre.
– Sim, mestre!
Eram dois corpos inquietos à procura um do outro, ele, de a desbravar, ela, de o aprender. E eram duas almas atormentadas que se encontraram e se faziam companhia. Ele, procurando fintar a idade e fugir à solidão. Ela, procurando esquecer o passado e libertar-se da dor.

Mariana era uma menina alegre e ativa. Criara com Madalena uma profunda cumplicidade e percebera que o espanhol viera para ficar. E estava feliz com isso. As crianças sabem coisas que não revelam e desconhecem donde vêm. Mariana sabia que Jacob precisava de Pablo. Também ela precisaria dele, do tom quente da voz, da mão aberta a despenteá-la quando chegava do trabalho e lhe dizia, Como está a menina mais linda do mundo? Mariana gostava, sobretudo, de quando a mamã tirava a mesa do jantar, deixava ficar a toalha e aparecia com um pratinho com tostas e um frasco de mel ao lado para Pablo continuar a mordiscar e ela se sentava no joelho dele e faziam os trabalhos de casa juntos.
– Hoje temos trabalho?
– Hum, hum…
– Então vamos trabalhar, vamos fazer de ti a melhor aluna do mundo.
Com Jacob era diferente. Era um menino meigo e sorridente e absolutamente tranquilo. Era capaz de ficar uma eternidade a brincar com as mesmas quatro peças de Lego, aqueles cubos largos com que se começa, antes de entrar no intrincado universo das peças pequeninas, ou então, a folhear um livro com ilustrações vezes e vezes sem conta, ou a ver televisão e a conversar qualquer coisa imprecisa com as personagens coloridas dos desenhos animados. Um domingo de manhã, com Madalena deitada a seu lado, a cabeça no ombro de Pablo, o espanhol arriscou:
– Tu sabes que o Jacob é especial, não sabes?
– Claro que sei. É o meu menino, o meu mundo, a minha razão de viver.
– Não é isso que quero dizer, isso também é verdade, mas o que quero dizer é que ele é especial…
– Não estás a fazer muito sentido, velhote. A idade ataca-te mais na cabeça do que no resto do corpo…
– Ouve com atenção. Eu não sou médico. Enfim, sou, formei-me, mas estou há tantos anos a trabalhar na sexologia que não sei curar uma constipação, mas… há coisas que não se esquecem…
Fez uma pausa. Percebeu pelo silêncio dela que podia continuar.
– Ele é um miúdo tranquilo e pode ser só isso, mas devias consultar um médico. O pediatra nunca te disse nada?
– Pediatra? Ele nunca foi ao pediatra. Isso custa dinheiro. Sabes o que é dinheiro, não sabes? Mas estás a assustar-me…
– Não te assustes, pode ser só uma parvoíce minha, mas leva-o a um pediatra.
– Mas o que vês tu? Diz-me! Estás mesmo a assustar-me?
– Não te assustes, ele está bem. Mas convém verificar… os reflexos dele… aquela tranquilidade toda… já reparaste que ele aprende pequenas coisas que depois tem de aprender outra vez?
– E não somos todos assim?
– Não. Não naquela idade.

Deus está sempre presente. Nos dias de sol e nos de chuva também. E às vezes manda-nos a chuva para que apreciemos melhor o sol. São insondáveis os desígnios do Criador. Pablo tinha sido um sol brilhante e quente a iluminar os dias de Madalena e a trazer-lhes felicidade e, contudo, atrás do sol viera uma nuvem sombria. No dia seguinte, com o coração a bater forte, a querer saltar-lhe do peito, Madalena olhou o menino longamente, repetidamente, e só via o amor que lhe tinha, só via que dependia dele para tudo, só via que uma inocente criança de cinco anos comandava a sua vida. Olhou sob todos os ângulos e perspetivas e não viu nada a não ser um amor infinito. E quando saiu para consultar o pediatra a quem Pablo Sentido telefonara, um amigo de profissão que a atenderia nesse mesmo dia, levava consigo uma única certeza. Trouxesse de lá as notícias que trouxesse, o amor por Jacob sairia intacto pois ele era a sua vida, o seu sopro. Nada poderia alterar isso. Nada iria alterar isso. E não alteraria, sabemo-lo nós, mas sabemos também que Pablo vira bem. Jacob, mais do que nunca, precisaria das forças de Madalena. Deus não dá, nem tira. Dispõe! E a nós, vulneráveis humanos, cabe-nos amar e viver com dignidade aceitando e encarando as suas determinações. Madalena tinha uma arma a seu favor. Poderia não saber nada de muitas coisas, mas sabia amar infinitamente e isso era tudo quanto precisava saber.

—————————- jpv —————————-


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A Paixão de Madalena – Capítulo 13 para Breve

ee76c-capa-apm-3A Paixão de Madalena – O Capítulo 13 chega muito brevemente.

Caros amigos e leitores, muito em breve publicaremos o capítulo 13 de “A Paixão de Madalena”.

Por motivos que se prendem com o nosso volume de trabalho normal, este capítulo demorou muito mais tempo que o habitual a concluir. Por isso mesmo, atrevemo-nos a aconselhar os leitores de MPMI a darem uma vista de olhos no(s) capítulo(s) anterior(es) para relembrarem um pouco em que ponto da narrativa estávamos.

Muito Obrigado,
jpv


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A Paixão de Madalena – Ponto de Situação

Caros amigos e leitores,

Bem sabemos que foi já há mais de três meses que publicámos o último capítulo de “A Paixão de Madalena”, o 12º, contudo, a história não está suspensa. Terminámos já o 13º capítulo e estamos em fase avançada do 14º. 

Acontece que o final de um ano letivo, umas férias repletas de tarefas e, agora, o recomeço do novo ano escolar, não têm permitido a serenidade necessária para rever e publicar o 13º nem para avançar com mais texto.

Acresce, ainda, que temos concentrado todas as nossas energias num projeto de que em breve vos daremos conhecimento e que será, esperamos, uma boa notícia para todos os leitores de MPMI.

Grato pela vossa paciência e até breve.


jpv


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Citação da Penumbra

Amigos,
Enquanto não chega o capítulo completo, aqui fica um cheirinho…

“Deixa cair a túnica e o seu corpo alvo, de formas arredondadas e sedosas, fica exposto à luz fraca daquela penumbra. Dobra-se sobre a cama, abre os braços e agarra-se aos lençóis. Os pés no chão. E espera.”

João Paulo Videira
In ” A Paixão de Madalena”, Cap. 13. 
A  publicar brevemente neste blogue.


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Resultados da Sondagem sobre "A Paixão de Madalena"

E pronto, terminou a sondagem sobre a “Paixão de Madalena”.

E o que nos diz?

Em primeiro lugar, que muito poucas pessoas responderam à sondagem. Efetivamente, os dados do Blogger revelam que os capítulos deste romance são muito lidos e em consonância com isto está o facto de muitos leitores remeterem e-mails a perguntar “pelo próximo capítulo”. Em segundo lugar, que, os que responderam, deram respostas  que são, para nós, muito gratificantes e motivadoras.

Este romance não será consensual, será sempre surpreendente e revelará algo que já tínhamos desenvolvido, a espaços, no romance “De Negro Vestida”, uma escrita com um ritmo trepidante, uma personagem central sempre capaz de mais e de desenvolver facetas diferentes e personagens que a rodeiam marcadas por percursos notáveis, seja pela positiva, seja pela negativa. Sendo que pensamos não haver negativa. Há só pessoas. Podemos estar enganados, mas acreditamos que este romance ainda vai provocar reflexões de índole ética e moral porque desafiará os parâmetros de ambos os valores.

Pessoalmente, estamos a adorar escrevê-lo. E, uma vez feita a investigação, estamos a demorar o tempo necessário para que o texto assente e se defina. É, por assim dizer, um prazer trabalhado.

Obrigado aos leitores e amigos que votaram. Até ao próximo capítulo que está para breve.
jpv
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Resultados da Sondagem

Pergunta:
Para sabermos a sua opinião acerca da história que temos vindo a publicar, “A Paixão de Madalena”, diga-nos o que pensa dela sendo que pode escolher diversas opções como resposta.

Respostas:
Gosto, porque está bem contada.
  5 (55%)
 
Não gosto, porque é demasiado descritiva
  0 (0%)
Gosto, por causa do ritmo da narrativa.
  6 (66%)
 
Não gosto, por ser superficial.
  0 (0%)
Gosto, por ser realista.
  6 (66%)
 
Não gosto, por ser demasiado fantasiosa.
  0 (0%)
Não gosto nada.
  0 (0%)
Não gosto.
  0 (0%)
Gosto.
  0 (0%)
Gosto muito.
  8 (88%)
 
Não leio.
  0 (0%)
O que é isso?
  0 (0%)


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A Paixão de Madalena – Capítulo 12

A Paixão de Madalena

Livro II – O Cordeiro de Deus

12. É preciso conhecermos as pessoas para as percebermos. É, sobretudo, preciso conhecê-las antes de as julgarmos. A história que agora se contará não justifica o futuro, mas derrama luz sobre ele.

Já estiveram os três à mesa. Agora está só o pai, perna cruzada, jornal aberto, e o filho olhando o que resta da refeição, girando o garfo sobre a comida, um braço estendido ao longo da mesa e a cabeça sobre ele. Carne de jardineira não lhe agrada. Sobretudo não percebe o que veem os adultos no feijão verde e, como não está autorizado a sair da mesa antes de terminar, vai espalhando a comida no prato e, de quando em vez, pergunta:
-Já posso?
-Come o que tens no prato!
E aquela frase, assim contundente, caiu-lhe em cima como uma espada de cortar esperança. Não lhe resta mais do que continuar a remexer a comida fria à espera que o pai se canse. Numa reviravolta que dava a um pedaço de feijão verde cortado aos quadradinhos, o vegetal saiu-lhe disparado do garfo, bateu-lhe no peito, tabelou no joelho e anichou-se no chão, mesmo por baixo dos seus pés. A primeira reação foi olhar para o pai. Felizmente tinha a cara por trás do jornal e não tinha visto. Enganou-se no juízo. Saiu da cadeira e foi abaixo da mesa buscar o pedaço de feijão verde e era lá que estava quando tudo recomeçou. Lembra-se do sabor a sangue logo após o primeiro pontapé a encher-lhe a cara e a cortar-lhe os lábios, lembra-se de bater com a parte de trás da cabeça na perna da mesa e depois não se lembra de mais nada. Erguido pelos cabelos, esbofeteado e esmurrado ao som de uma letra que variava pouco, Julgas que ando a matar-me a trabalhar para te pôr a comida na mesa e tu depois a atirares para o chão? Hã? Hã? Responde-me! Não! Não quem? Não, papá! E achava que tinha respondido bem e por isso não percebeu a sequência de bofetadas e murros após a resposta. A voz da mãe ao longe gritando, depois pegando nele, serenando-o, os cuidados e a humilhação numa próxima refeição em família:
-Aquele ainda esta semana levou uma tareia à moda antiga. A deitar-me a comida para baixo da mesa, o sacanita… depois lá veio a mãe com falinhas mansas e paninhos quentes. Não me importa. O pai dá a educação, a mãe dá os mimos. Sempre assim foi, sempre assim será.
Quando entrou na escola, Mário Só não pôde evitar a pergunta da professora:
-O que te aconteceu Marinho?
-O meu pai bateu-me, disse o miúdo com inocência e verdade.
Bernandino Só foi chamado à escola e quando lá chegou ralhou com a professora, reclamou para si a função de educador, ela que se limitasse às tabuadas e às cópias que o pai era ele, sabia muito bem o que estava a fazer, filho seu nunca lhe haveria de faltar ao respeito. À noite, chegou a casa, fechou-se num quarto com o miúdo, gritando-lhe que o que se passava em casa não se contava na rua porque só à família dizia respeito, tirou o cinto e descarregou na criança a humilhação de ter sido chamado à escola. No dia seguinte a professora percebeu que a cavalaria da besta Bernardino Só havia de novo carregado sobre a pobre criança e já não lhe perguntou nada. De tempos a tempos aparecia com marcas visíveis do calvário que era o seu quotidiano e a professora aprendeu a rezar e a pedir que não se repetisse muitas mais vezes. Mário Só não tinha irmãos, razão porque colhia todas as atenções do pai que jurara fazer dele um homem. E o seu conceito de fazer dele um homem era ensinar-lhe palavrões, comprar-lhe cadernetas com os cromos da bola e verificar se ele já tinha decorado os nomes dos jogadores do Varzim e do Farense e perguntar-lhe, em público, Olha lá, pá, já apalpastes o cu a alguma gaija lá da tua escola? O coitado não respondia e, quando chegava a casa, a mãe apressava-se a fechar-se com ele no quarto a dizer-lhe que aquilo eram brincadeiras do papá, para não levar a sério, nem repetir aquele palavreado.

Certo dia, estavam os três à mesa, a mãe acabara de sentar-se. Como habitualmente, fizera tudo sozinha, o jantar, a cozinha arrumada que Bernardino não queria ninguém à mesa com a casa de pantanas, a mesa posta, as sobremesas prontas, a sua comida quase fria, o marido e o filho quase comidos e bebidos. E assim que se sentou, Bernardino atacou:
-Traz-me os palitos!
Num momento de cansaço e inusitada ousadia, Maria das Dores respondeu-lhe, educada, mas declinando o pedido:
-Ai, Bernardino, vai lá tu que ainda agora me sentei.
As costas da mão dele voaram e assentaram-lhe com violência tal que a senhora caiu desamparada. Bernardino percebeu o ar perplexo do filho e disse-lhe como quem ralha:
-E tu vê lá se aprendes a ser homem. Homem que é homem não admite certas coisas.
E quando Mário Só faz menção de levantar-se para ajudar a mãe, foi impedido por verbal e inequívoco comando:
-Deixa-te estar no teu lugar! A tua mãe sabe levantar-se sozinha.
Mais tarde, Bernardino abordou o miúdo:
-Mário, ouve o pai, o pai gosta muito da mamã, mas a vida é difícil, tem de haver rigor e respeito e o que hoje te pode parecer mal, amanhã vais perceber e valorizar, o pai não faz nada que não seja para bem da mamã e de ti, percebeste?
-Sim, papá.
-Então vá, vai lá dormir.
E Mário Só foi deitar-se e adormeceu nessa noite anestesiado pela violência dos gestos do pai. De manhã percebeu que a mãe estava marcada na face e deu-lhe um abraço mais demorado. Maria das Dores percebeu e recuperou a vontade de viver.

Enquanto andou na escola, Mário Só foi um miúdo submisso e cumpridor, mas sem qualquer ponta de imaginação. O medo, por vezes, tolhe as almas e elas, por defesa, encolhem-se e podem nunca chegar a nascer para o mundo. Mário Só era um jovem profundamente respeitador, mas nunca soube o que era o respeito. Encolhia-se por medo e foi por via desse mesmo medo e desse encolhimento que nunca foi aluno para além do sofrível. Aos dezasseis anos, assim que pôde, saiu da escola e foi trabalhar de servente para as obras. E foi aí que aprendeu a fumar um cigarro, a beber meia dúzia de minis numa tarde, a puxar pelo cabedal, a erguer a espinha e a trabalhar a vida. Sempre submisso, quase sempre discreto, a evitar os palavrões que usava de quando em vez e com parcimónia só para que ficasse claro que era tão homem como os outros. E começou a sair à noite, sobretudo ao fim de semana e uma dessas noites trouxe-lhe o primeiro corpo de mulher. Pago, bem entendido, mas, ainda assim, a melhor oferta que o Universo e a vida lhe haviam feito em quase vinte anos de existência. Cedo se apercebeu que transportar era com ele. O carro de mão, o empilhador do armazém de construção, a moto do Joaquim, mais tarde, uma carrinha de caixa aberta, muito velha, que o empreiteiro usava para materiais de menor porte. Era rápido e eficaz nas suas escapadelas ao armazém para ir buscar vinte e cinco quilos de cimento cola, uma caixa de azulejo que tinha faltado nas contas, são tramados, os cortes, geram muito desperdício, duas pontas de ferro de doze, meia palete de blocos. Um dia, a polícia mandou-o parar e ele parou e respondeu a tudo com verdade e submissão e o patrão viu-se e desejou-se para se safar da enrascada de ficar com a carrinha apreendida e uma multa monumental. Propôs pagar-lhe a carta e ir descontando no vencimento, mês a mês, em pequenas parcelas. Mário Só sorriu e aceitou. Não falhou o código e menos ainda a condução. Depois, quem o queria ver, era montado na carrinha velha a acartar materiais de um lado para o outro. O próximo passo que lhe pareceu lógico foi tirar a carta de pesados e, no mesmo dia em que a conseguiu, teve uma oferta de emprego. Pediu um avanço para pagar uma dívida. Deram-lho e ele foi ter com o empreiteiro e acabou de pagar o que lhe devia. Puseram-lhe um carro pesado nas mãos, um mapa, uma listagem de fornecedores e clientes e a sua tarefa era ir buscar e distribuir caixas de bacalhau. Não tinha horário. Tinha fretes por dia. Se os acabasse cedo, saía cedo. Se os acabasse tarde, saía tarde. Descansava um dia por semana e recebia dez vezes mais do que a acartar baldes de massa e carros de mão de areia nas obras. Alugou uma casa velha e pequena onde ia dormir e via televisão nas folgas. Passava algum tempo em bares frequentados por camionistas e os seus afetos entregava-os às prostitutas de beira de estrada. Um dia estranhou porque uma delas segurou-lhe a cabeça entre as mãos e disse:
-És só um menino cheio de medo.
Ele estremeceu:
-Que dizes?
-Esquece. Não é nada. Eu tenho a mania que conheço os homens pela maneira como…
-Bebeste?
-Sim, bebi! Que parvoíce a minha, estar para aqui a dar conversa a clientes. Estou paga, estás servido, até à próxima, se a houver.
Passou a procurá-la. Encontrou-a umas poucas de vezes. Gostava da forma como ela lhe acariciava a nuca enquanto ele suava em cima dela e gostava, sobretudo, dela ter sempre uma palavra no fim. Uma provocação. Uma observação.
-Olha lá, já pensaste em ter uma namorada a sério?
-Já.
-E…
-Não sei o que dizer, não sei o que fazer… e esta vida de um lado para o outro com o camião também não ajuda…
-Tens medo das mulheres?
-Não. Tenho medo de mim ao pé das mulheres.
-Tu é que sabes, mas isto não é vida.
-A tua?
-Não. A minha faz todo o sentido. Escolhi-a. A tua! A tua é que está uma baralhada. Não te percebo, miúdo, não te percebo.
-Não há nada para perceber. Sou um tipo burro que gosta de conduzir e teve a sorte de conseguir ganhar dinheiro com aquilo que gosta de fazer.
-Não sei… há qualquer coisa baço no teu olhar…

Nunca mais o viu. Nem poderia. Ele emigrou. Um dia, a mãe, com quem falava de tempos a tempos, a quem mimava às escondidas do pai que decidira não rever desde que fora trabalhar, disse-lhe com esperança na voz:
-Tenho uma novidade.
-Ai sim? Conta.
-O tio António perguntou por ti.
-O da Suíça?
-Sim. Queria saber como estavas e eu disse que bem, que estavas um homem, tinhas trabalho, eras independente, e ele perguntou o que fazias e eu contei um pouquinho da tua história, mas isto já foi há tempos…
-E só agora me contas?
-Na altura não dei importância, mas esta semana ele voltou a ligar, diz que tem lá trabalho para ti, que apareceu lá um emprego de motorista, acho que é para andares com um senhor que é advogado, carro bom, alojamento e alimentação e o ordenado é muito melhor do que aqui… querem um português. Dizem que somos de confiança e tio conhece-o e falou em ti…
-Isso é a sério?
-É. Achas que a mãe gosta de dar-te esta notícia? Vais para lá e nunca mais te vejo, mas o teu bem é o meu bem e se tu fores para melhor, eu fico feliz…
-Dá cá um beijinho.
Mário Só abraçou a mãe, beijou-lhe as faces e poucas emanas depois desembarcou em Genebra.

O salão está escurecido. É banhado por ecos de luz emanada da mesa central sobre a qual pende uma lâmpada longitudinal que ilumina o pano verde. As bolas está já muito distribuídas. Por cima de um sussurrar abafado, ouve-se o silêncio que invade a sala. Madalena está debruçada sobre a mesa de snooker, o taco na mão direita assente sobre os dedos da esquerda que ela apoia na mesa. É preciso que a bola branca vá ao fundo da mesa tabelar com efeito e volte para trás a empurrar a bola preta para dentro do buraco no mesmo topo onde se encontra agora a bola branca, mas no canto oposto. Estão separadas por uma bola inoportuna e será preciso arriscar esta longa viagem. A branca já lá vai, Madalena ergue-se, , respira fundo e reza para dentro. Se falhar é o seu fim. Se ganhar, são quatro mil francos. Uns meses a respirar melhor o quotidiano, alguns bens fundamentais para as crianças. E a bola rola serena, quase lenta, a sala está suspensa da sua trajetória, o adversário e a assistência esperam quase impacientes. Nunca uma mulher havia participado no torneio de Genebra, quanto mais ganhá-lo. A bola já encontrou a tabela lá ao fundo, faz a viagem de regresso descrevendo um vê. Falta saber se é um vê perfeito. Ela aí vem…

A vida tem sido difícil. Não lhe tem dado tréguas. Madalena decidiu procurar todas as saídas, experimentar todos os caminhos. Enfim, quase todos. Pediu autorização para ficar meia hora a treinar numa das mesas de snooker depois de fechado e limpo o pub. Só pelo facto de ser tão pouco habitual ver uma mulher jogar, foi-lhe concedida permissão. E ela ficava, no fim de um dia de trabalho, espreitando tabelas, traçando percursos, ensaiando efeitos. Um dia pediu dinheiro emprestado ao patrão para se inscrever num torneio, era ao sábado, ao final da tarde, sem conflituar com o seu horário de trabalho. Ele não lhe emprestou o dinheiro, pagou-lhe a inscrição:
-Pago para ver até onde vais.
O prémio contemplavam os primeiros quatro classificados. Madalena terminou essa longa jornada em quarto lugar, fez questão de devolver o dinheiro da inscrição e guardou o resto. Era pouco. Para os outros. Para ela e os seus meninos representou imenso. Mais três competições deste tipo nos primeiros quatro lugares e poderia inscrever-se no torneio de Genebra. Jogou cinco para conseguir a qualificação. Sempre pedindo e devolvendo a verba da inscrição. Da única vez que não chegou ao prémio, pagou com horas extra. Via um pouco menos as crianças, mas o torneio de Genebra rendia quatro mil francos. Treinou mais intensamente nos últimos tempos. Um dos frequentadores do pub, que ainda conhecera e confraternizara com Kyle, ofereceu-lhe um estojo com um taco desmontável:
-Tome, nunca fui bom nisto. Ganhe o torneio por nós, pela malta aqui do bairro.
Sabia que teria de estar ao seu melhor nível para chegar à final e, chegando, tudo poderia acontecer. O seu fraco… o seu fraco era ter pena do adversário e, por isso, falhar em momentos cruciais. O patrão ralhava sem cessar:
-Tens de manter o nível até ao fim, a precisão na tacada, o instinto de vitória, não podes amaciar, desfaz os tipos, imagina que são teus inimigos, pensa nos teus filhos, faz o que quiseres, mas não tenhas pena dos gajos!

À medida que se aproxima da bola preta, a branca perde velocidade, vai acariciá-la, terá de ter ainda a força suficiente para empurrar a outra que está a meia dúzia de centímetros do buraco… toca-lhe de mansinho, a preta desliza suavemente, a direção é perfeita, chega junto do buraco e parece parar, hesita, suspende-se como a respiração da sala e… tomba! Está lá dentro! A sala explode em aplausos, o patrão vem abraçá-la, Albertina corre para ela, segura-lhe a cabeça entre as mãos enquanto grita, Conseguiste! Conseguiste! Até o homem que emprestou o nome a Jacob a veio felicitar. Sessão de fotos e entrega do prémio, garrafas a salpicar champanhe, as felicitações do adversário. Madalena espera que os ânimos acalmem um pouco e vai arrumar o taco no estojo. Estava de costas para a multidão em festa quando sentiu uma mão no seu ombro. Era Mário Só.
-Parabéns, Madalena.
-Obrigado, Mário.
E não foram precisas outras palavras, pendurou-se no pescoço dele e beijou-o apaixonadamente com o coração a bater forte como não julgara até esse dia que pudesse voltar a acontecer. Daí a seis meses estariam casados e daí a outros seis divorciados. Foi simples e fulminante a história.

Foi quando fazia uma jogada de precisão. Baixou-se sobre o tapete verde da mesa. Tinha a bola branca alinhada com a preta. Era uma tacada distante mas limpa. Só necessitava de uma pancada forte, seca e precisa. Olhou a bola branca, aqui perto, moveu o taco para a frente e para trás com vigor em movimentos de aproximação à bola, levantou os olhos sem levantar a cabeça e procurou a preta ao fundo da mesa para traçar a linha imaginária que as haveria de unir e, por cima dela, ao fundo da sala, em visão enevoada e periférica, a zona pélvica dele, do adversário que assistia suspenso aos seus movimentos. Num relance, lembrou-se de que Kyle chamava àquilo, na intimidade, o “pack” ou ainda “um rei e dois súbditos”, levantou um pouco mais o olhar e encontrou o tórax definido e os braços musculados encimados por um olhar verde e cristalino cheio de promessas. Ainda não havia reparado nele. Aquele olhar continha promessas de risco e a vida tem sido tão dura e tão repetitiva que um pouco de risco só poderia ser o sal que lhe vinha faltando. E desceu-lhe um calor de desejo que depois lhe aflorou à cara, era inacreditável, tanto tempo depois de ter feito amor pela última vez, emerge-lhe na mente um pensamento erótico que lhe rebenta na face no meio de uma jogada que valia cem francos. Foda-se!, pensou. Puxou o taco atrás, bateu a bola. Falhou. Ele concluiu o jogo com serenidade e no fim, quando os presentes faziam conversas e desenhavam teorias acerca do que poderia ter acontecido, ele veio felicitá-la:
-Parabéns. Jogou muito bem.
-Mas perdi.
-Pois… essa foi a parte que não percebi.
-Claro que percebeu. Você colocou-se à frente do meu campo de visão para me distrair.
-Não sabia que constituía distração para si.
-Na altura constituiu.
-E agora?
-Agora, depende do que disser…
-A única coisa que me ocorre dizer é que não ganhou o melhor jogador, você joga muito melhor do que eu, talvez lhe falte certo instinto assassino.
-Pois, mas eu sou mãe de duas crianças.
-Pense que o que está a fazer salvaria a vida delas.
-E salvaria…
-Ah… joga pelo dinheiro.
-Entre outras coisas.
-Levante o prémio. Você mereceu-o.
-Jamais! Nunca aceitei uma esmola, nunca recebi nada que não tivesse conquistado.
-Compreendo, mas posso pagar-lhe o jantar?
-Se não tiver melhor companhia…
-Tenha ou não tenha, neste momento, não quero outra coisa que a honra da sua companhia.
-Disse as palavras corretas, senhor…
-Mário Só.
-Mário. Tratei-o por senhor porque não o conheço, nunca fomos apresentados.
Mário Só soltou uma gargalhada e acrescentou:
-Pode e deve tratar-me só por Mário, mas não foi isso que eu quis dizer quando revelei o meu nome. Eu chamo-me Só de apelido.
-Ah! Mário Só!
-Exato! E a senhora…
-Só Madalena.
-Mau…
-No meu caso, o só era para não usar a senhora…
Jantaram. Madalena revelou-lhe que estes pequenos torneios no pub eram uma simpatia do patrão para ela ter com quem treinar uma vez que estava para inscrever-se no torneio de Genebra. Mário Só confessou-se admirador da sua forma de jogar e custasse o que custasse, estaria no torneio para apoiá-la. Levou-a a casa. Despediram-se educadamente e com algum pudor e passaram a conversar com regularidade no pub, sobretudo, porque ele esperava pela hora dela sair e levava-a a casa. E foram partilhando o que pensavam da vida, algumas coisas sobre os seus percursos até chegarem ali. Ficaram amigos de conversa com o desejo latente não consumado por prudência de ambos e particular contenção dele. As suas vidas haviam sido demasiado complexas para acreditarem, assim, de repente, no amor e uma cabana. Andaram neste bailado das palavras e das conversas cúmplices cerca de seis meses até que um dia Mário Só se encheu de coragem e lhe disse:
-Madalena, tu tiveste a tua vida, eu tive a minha, já percebemos que nos entendemos, que gostamos da presença um do outro, não quero desconcentrar-te do torneio de Genebra, mas não achas que merecemos um pouco mais do que conversar à noite depois do teu trabalho?
-As conversas são boas…
-Por isso mesmo, porque são maravilhosas, porque és quem és, porque sou quem sou… pensa!
-Já pensei.
-Já pensaste?!
Mário Só não conhecia a Madalena determinada, decidida e até impetuosa que o leitor vem conhecendo e não sabia, também, que esta mulher estava ansiando mudança e risco. Por isso se surpreendeu com ela:
-Estás a pedir-me em casamento?
-Talvez não tenha usado as melhores palavras, mas queria ir para aí.
-Faltam três semanas para o torneio. Se eu ganhar, beijo-te e casamos.
Mário Só ficou perplexo. Será que tudo não passava de um jogo?
-E se não ganhares?
-Beijas-me tu e a seguir casamos.
O homem respirou de alívio. Abraçaram-se. E foram para suas casas sonhando acordados.

Mil novecentos e noventa e oito. De Portugal chegam ecos de uma exposição internacional de grande impacto. Em Genebra, Madalena ganha um torneio de snooker , beija um homem e casa-se recatadamente. Só alguns amigos e familiares de ambos a presenciarem o momento. A mãe de Mário Só chora de alegria, Albertina vive numa intrigante e saudável desconfiança em relação ao rapaz das falas mansas, Jacob e Mariana parecem conviver bem com a presença do novo homem da casa. O quotidiano é desafogado e feliz sem ser apaixonado, mas, honestos sejamos, nunca se confessaram paixões entre estes dois. Ele trabalha. Ela trabalha, deixou de novo o pub, fica com mais tempo para os miúdos e à noite pode continuar, agora no conforto do lar, todas as conversas que havia iniciado com Mário Só quando ele a vinha pôr a casa após o turno nu pub. Aos fins de semana passeiam e dedicam-se a dar algumas alegrias aos miúdos. Ao domingo, Madalena entra na cozinha e prepara uma refeição esmerada. Foi num desses domingos, durante uma dessas refeições especiais. Madalena andava numa roda viva a preparar tudo, estava impaciente, as coisas na cozinha não correram como esperara. Mariana, normalmente uma ajuda preciosa, estava impaciente e até um pouco rabugenta, Jacob agia fazendo justiça à condição de criança, batia com os talheres nos pratos e gritava que queria comida, não era de birra, mas enervava. Madalena conseguira servir a refeição, mas a sobremesa complicara-se  e ela andava para cá e para lá, Mário Só estava irritado com aquela inusitada barulheira à mesa de uma refeição que costumava ser tranquila e não comera descansado. Junto ao final da refeição, por entre o barulho e a movimentação atarefada de Madalena, disse:
-Trazes-me os palitos?
-Não posso, levanta-te e vai buscá-los.
Ele franziu o sobrolho, levantou-se contrariado e foi. Poderia não ter-se cruzado com ela e tudo teria sido diferente, mas cruzou-se com ela na cozinha:
-Podias ter levado a merda dos palitos à mesa.
-Podias ter levantado o cu da mesa para ajudar.
Ele já tinha passado por ela quando ouviu a resposta. Uma coisa antiga e má, uma semente ruim de gestos impróprios, acordou em si, cresceu, fez-se gigante no seu peito:
-Vê lá como é que falas comigo…
-Como tu mereces.
As costas da mão dele rebentaram-lhe os lábios, o tabuleiro de vidro que tinha nas mãos caiu ao chão, ela deu dois passos desamparada, ele cresceu para ela e esbofeteou-a quantas vezes lhe apeteceu. As crianças fugiram para o quarto, ele levantou a mão de novo mas apercebeu-se de que ela já não estava consciente. Saiu de casa. Só voltou à noite. Já não encontrou ninguém. Madalena acordou. Olhou em volta e tudo lhe parecia irreal. A vida voltara a testá-la, a surpreendê-la. Havia entre ela e as forças da natureza humana este constante medir de resistência. Estava cansada. Sangrando dos lábios. Colocou-se de frente para o espelho do guarda fatos toda nua e fotografou-se. Telefonou a Albertina. Colocou as coisas mais essenciais em dois táxis e enquanto a avó levou as crianças para sua casa, Madalena foi à polícia e apresentou queixa. Mário Só não negou nem rebateu as acusações. Foi condenado a serviço comunitário, não aproximar-se menos de quinhentos metros da residência de Madalena e a pagar-lhe uma indemnização imediata. Ou o faria com meios próprios ou o Estado o faria por si e Mário Só ficaria devedor do Estado com juros. Pagou com dinheiro próprio. Madalena abriu uma conta separada da sua conta à ordem e considerou aquele dinheiro um findo para a educação das crianças e a sua própria. Pressentiu que estas coisas aconteciam por deformação de caráter, mas também por falta de formação e não quis, nunca mais, viver dificuldades por via da falta de formação. Voltaram os dias difíceis, as refeições parcas, os recursos escassos, mas, agora, Madalena sabia que tudo isso tinha um fim à vista. O tempo de concluir o curso técnico de contabilidade e administração em que acabar de matricular-se. Era um curso de cinco anos, mas o sistema suíço permitia que pudesse fazer-se em menos caso os estudantes se auto-propusessem para exames. Madalena traçou um plano para concluir o curso em três anos. Era arrojado. Exigia um duplo sacrifício. Ter de estudar mais horas e não poder trabalhar no pub. Era para isso, para suprir a falta da verba que daí advinha, que o dinheiro da indemnização de Mário Só serviria. O seu coração ficaria marcado para sempre pela desilusão, mas a sua dignidade mantinha-se intacta. A sua batalha com a vida continuava. A primeira vez que casara, a doença levara-lhe o príncipe e deixara-lhe um filho como resgate desse amor. A segunda vez que casara, a violência trouxera-lhe uma desilusão mas trouxera-lhe uma lição. Dependeria sempre e só de si. Seria, enquanto vivesse, absolutamente livre. Nada valia a hipoteca do mais precioso bem da Humanidade. Estava aberta a amar, sim, agora mais do que nunca, mas sem preconceitos, sem papéis, sem formalidades, só com as pessoas que quisessem amar tanto e tão livremente como ela. Qualquer homem que a quisesse, que desejasse o seu amor, teria de respeitar a sua liberdade. O homem que não compreendesse isto, não poderia amá-la.

Madalena não voltará a casar. Amará de novo. Sempre com a mesma entrega que Kyle lhe ensinara e sempre com a liberdade que Mário Só a levara a compreender como imprescindível e intocável. É sinuosa, a vida, os caminhos que percorremos pelas nossas próprias passadas levam-nos, por vezes, a lugares e pessoas surpreendentes. O pensamento de Madalena em relação ao amor e a quem pudesse merecê-lo havia-se centrado, naturalmente, em homens e, contudo, seria uma mulher, a primeira pessoa a merecer esse amor. Marcelle Deschamps.

Foi na faculdade. Madalena matriculou-se no regime noturno para poder trabalhar de dia e, não obstante o cansaço de um dia de trabalho, tirava apontamentos que nem uma louca. Tentava captar tudo o que era dito, registar todas as demonstrações, pedia aos professores para colocarem os cálculos no quadro. Um dia, uma mulher alta e bem constituída, longe de magra, mas não gorda, de cabelos loiros a derramarem oiro sobre os ombros, tentou ajudar:
-Não precisas correr atrás dos apontamentos dos professores, está tudo disponível na reprografia.
-É gratuito?
-Não.
-Então tenho de correr atrás dos apontamentos dos professores.
Mais palavras não foram ditas porque não foram precisas. No dia seguinte, Marcelle aproximou-se dela, estendeu-lhe com discrição um saco escuro, e disse:
-Toma, são os deste semestre.
-Obrigada. És muito generosa, mas não aceito nada de ninguém. É uma questão de dignidade.
-Parece mais uma questão de orgulho.
-Admito que possa parecer, mas não é essa a razão.
-A vida tem-te tratado mal?
-Tem os seus momentos, mas quando me castiga, exagera sempre na força.
-Faz assim, guardas os apontamentos, estudas por eles e no próximo semestre oferece-los a alguém…
-É a mesma coisa.
-Não é não. A capacidade de dar dignifica o que se recebe.
-E porquê este gesto? O que queres de mim?
-Irra, a vida tem-te tratado mesmo mal!
-Como disse, teve os seus momentos…
-Olha à nossa volta. O que vês?
-Homens.
-Exato. Uns privilegiados. Nascem com uma coisa pendurada entre as pernas e estão automaticamente em vantagem em todos os campos…
-E…
-E eu pretendo equilibrar um pouco a balança. Considera que o meu motivo é solidariedade feminina. Devemos ser um caso de estudo, duas mulheres a estudar contabilidade na mesma faculdade…
-Com uma condição.
-Qual?
-No próximo semestre ajudas-me a escolher a beneficiária.
-Feito.
Foi o suficiente para começarem a conversar com frequência. Entre as aulas, nos trabalhos de grupo. Começaram por partilhar conhecimento e ideias e pistas de solução para problemas, primeiro, e depois, tudo o que havia para conversar entre duas mulheres, deve ter sido conversado por Madalena e Marcelle. Passaram a encontrar-se também ao fim de semana para estudarem e fazerem trabalhos. Marcelle conheceu as crianças e ajudava a cuidar delas nesses dois dias de descanso que dão sentido ao resto da semana e rápido se apercebeu que Madalena se deslocava de casa para a escola e da escola para casa caminhando um longo troço do percurso e fazendo o restante de autocarro. Era uma forma de poupar. Começou a levá-la, Conversamos no caminho, disse, e de qualquer forma não preciso desviar-me. Foram trocando histórias. Ambas trabalhavam, ambas adoravam a contabilidade e a gestão, ambas eram adeptas do rigor e acreditavam no controlo dos números. Constituíam, uma para a outra, uma interlocutora motivante e desafiante das suas próprias capacidades, uma interlocutora válida que obrigava a outra a estar atenta e a não falhar. Tiveram ambas excelentes notas no final do primeiro semestre. Numa noite fria, coberta pelo manto branco da neve, em que levou Madalena a casa, estavam já à porta, ainda dentro do carro, e Marcelle aconchegou-lhe as mãos entre as suas como que para aquecê-las:
-Tens as mãos frias.
-Em Portugal diz-se que é amor todos os dias, mas deve haver algum problema com esse provérbio…
-Ou não.
E puxou-a para si e beijou-a nos lábios. Madalena afastou-se num impulso:
-Eu não sou…
-Não és humana?
-Humana sou, só que nunca…
-Nem eu. E também não sou o que tu não és e também sou humana e será preciso outro requisito, uma palavra que te certifique, um rótulo, para beijares quem amas?
-Acho que não.
Aproximaram-se lentamente e encostaram os lábios rosados e sentiram o calor e a emoção que passava através deles. Não falaram do que acontecera. Permaneceram amigas verdadeiras e cúmplices mas não voltaram a beijar-se nem a trocar qualquer outra carícia do corpo. Era como se as suas almas se bastassem. Pelo menos, até encontrarem o homem que viria a pôr à prova todos os seus limites. Essa fantástica criatura que completaria o inseparável grupo dos três emes.

————————— jpv —————————


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Citação do Medo


“O medo, por vezes, tolhe as almas e elas, por defesa, encolhem-se e podem nunca chegar a nascer para o mundo.”

João Paulo Videira
In “A Paixão de Madalena”
Cap. 12, brevemente neste blogue.


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A Paixão de Madalena – Capítulo 11

A Paixão de Madalena

Livro II – O Cordeiro de Deus

11.Madalena nunca pôs luto. No corpo, bem entendido. Que na alma ficou-lhe para sempre essa sombra cinzenta. Pense o leitor o que entender, o facto é que não houve só uma razão. Foi porque Kyle não era um homem de lutos, mas de coloridos. Não era um homem de abatimentos, mas de lutas e causas e de acreditar. Foi porque era demasiado nova para isso. Madalena enviuvou com vinte e um anos e essa não é a idade de escurecer a pose, antes de a iluminar. E outra razão houve, a mais importante de todas. Vai para cinco anos que Liberta bateu à porta de Madalena que lha abriu e lhe aceitou nos braços uma menina de semanas, por uma semana. Passou a dita semana e outra e mais outra e outra ainda e já vamos em cinco anos sem que de Liberta se tenha tido mais notícia. E dessa relação, a de Madalena com a menina, tem sabido pouco, o leitor. Soube que a menina ficou e soube que andou por terras de África com Madalena a quem, com muito propósito, chama de mamã. São engraçadas, as crianças, menos complicadas que os adultos. A sua justiça é imediata e é a da vida. Não precisou de mais nada senão saber que era daquela jovem mulher que lhe vinham os cuidados, os afetos e os ralhetes, que são outra forma de cuidado, e chama-lhe mãe, por mãe ser, sem mais juízos de valor com intrincados raciocínios sobre a biologia da maternidade. E pode dizer-se, em ambígua, mas verdadeira formulação, que foi Madalena mãe, antes de ter sido mãe. Foi em Mariana que aprendeu a mudar fraldas, foi com ela que aprendeu os cuidados com as refeições, as horas, incluindo noite dentro, os alimentos indicados para isto e para aquilo e os contra indicados para aquilo e para isto, foi a ela que aturou birras e as acalmou, foi com ela que aprendeu a ver febres e a medicá-las, foi com ela que passou noites em branco, que conheceu as urgências do hospital, a ela ensinou os primeiros passos, correndo dos seus braços para os de Kyle e voltando aos seus com um sorriso a espelhar medo e vitória, foi a ela que ensinou as primeiras palavras, por esta universal ordem: não, mamã, papá. E por aqui se vê quão funda vai a relação entre elas, mesmo estando Mariana em tão tenra idade. A primeira vez que Mariana disse mamã, chamava por Madalena e não por Liberta e à medida que foi dizendo outras palavras e apropriando-se, com elas, do mundo à sua volta, fê-lo com a orientação e o amparo de Madalena. E agora, venha de lá o cientista, o médico, o juíz, o cidadão comum, mais certificado, com diplomas de insígnias douradas emoldurados e pendurados na parede, convencê-la de que mãe é aquela que a pariu. Saiu de dentro dela, é certo, mas não foi com ela que cresceu.

Brincavam ao fim de semana, sobretudo ao domingo. Iam ao parque, faziam corridas e Madalena ouvia-a dizer, Olha, mamã, olha, é um pato! É sim, minha pequena, é sim. Respondia-lhe reforçando o entusiasmo da descoberta. E ao longo dos últimos quase cinco anos fizeram-se cúmplices. Nota-se essa cumplicidade nas coisas pequeninas do quotidiano, por exemplo, quando Madalena chega a casa do trabalho e vem cansada e abatida e segue para a cozinha a aquecer o jantar e sente a mão pequenina dela puxando a saia:
-‘Tás triste mamã?
Outras vezes, no supermercado, a menina põe-se em bicos dos pés, segura o carrinho das compras e tenta empurrá-lo:
-A Maiana leva, a mamã ’tá cansada.
Quando Kyle faleceu, explicações foram necessárias. Madalena optou pela simplicidade nas respostas:
-Onde ’tá o papá?
-O papá foi para o céu.
-O céu do Jesus?
-O céu do Jesus.
Levou-a à janela, mostrou-lhe o céu e disse:
-Vês aquela estrelinha pequenina, ali em cima?
-Sim.
-Quando ela piscar, foi o papá que te piscou o olho.
-O papá vê a Maiana?
-Claro!
-Olha mamã, olha, o papá piscou o olho!
Inexplicável força têm as crianças. Muito para além do seu tamanho e da consciência que lhes atribuímos, porquanto, não raro, foi Mariana que amparou Madalena na dor e no sofrimento. Parecia perceber os momentos em que era necessário o seu olhar doce, a sua voz apaziguadora ou a sua mão pequenina encostando-se à face de Madalena:
-Não chores, mamã!
E assim têm sido conforto uma da outra, alegria uma da outra, amparo uma da outra, e por esta razão, sobretudo por esta, Madalena não pôs luto. Não se cria uma criança no degredo. E sorria quando lhe apetecia chorar, brincava quando lhe apetecia enterrar-se na cama para nunca mais sair. Nos últimos meses intensificou-se esta relação, a barriga de Madalena parece um balão, já pode sentir-se o bebé pontapeando a vida e Mariana costuma conversar com ele e fazer planos para a sua chegada. Madalena tem sentido algumas dificuldades, mas tem conseguido trabalhar e Kyle deixara-lhe algum dinheiro que, entretanto, se está acabando. Vive entre o entusiasmo de receber neste mundo a mais preciosa herança que o seu amado irlandês lhe poderia ter deixado e as dificuldades que se preveem. Cuidar de duas crianças não é o mesmo que cuidar de uma e o início da vida de um ser humano requer muita atenção, muita energia e muitos recursos. Recursos que Madalena não tem. Jacob vai nascer na Primavera de mil novecentos e noventa e cinco e os anos que se avizinham anunciam-se difíceis.

Não foi de repente. É sempre assim. Um problema pode surgir de repente. Uma fase negra na nossa vida não. Um aviso aqui, um sinal dias depois, uma dificuldade mais à frente e, quando olhamos à nossa volta, estamos imersos numa teia de aborrecimentos que nos prende à materialidade da existência. Há mesmo vidas que se enredam neste processo e se perdem para todo o sempre. Não será o caso de Madalena. Ainda assim, quando Albertina lhe bateu à porta num dia de semana, noite tardia, Madalena deveria ter suspeitado do que a esperava. A avó trazia cara de caso, um ar preocupado e sério, e quando perguntou o que perguntou estava genuinamente preocupada e quando Madalena respondeu o que respondeu estava a ser genuinamente verdadeira, perdoe o leitor a redundância se conseguir, resulta a mesma de ainda caber neste nosso retorcido pensamento a ideia de genuína falsidade.
-Olá, filha, como estás?
-Bem e tu vó Bé?
-Preocupada…
-Hummm, por essa cara… muito preocupada… que se passa vó Bé?
-Ora, que se passa… diz-me tu!
-Está tudo bem…
-Madalena, querida, vim aqui para te fazer uma pergunta…
-Então faz, vó…
-Já pensaste como é que vais criar essa criança que trazes na barriga e mais essa outra que, a bem dizer, te deixaram na soleira da porta? Como vais fazer, Madalena?
-Ora, vó Bé, um dia de cada vez. Vou criá-los um dia de cada vez. Enquanto houver para mim, haverá para eles…
-Mas é isso mesmo, Madalena, como é que haverá para ti?
-Vou voltar a trabalhar mais…
-Sim, meu amor e a atenção que as crianças precisam…
-Terão toda a que eu conseguir dar-lhes e essa, muita ou pouca, terá de chegar.
-Tu não vês os problemas, Madalena?
-Os que vejo, vó, preparo-me para eles, os que não vejo é porque não merecem a minha atenção, está descansada que, se merecessem, vinham ter comigo. Um problema não nos poupa, vó. Se nos poupa, não é um problema, é um erro de julgamento nosso.
-Tu assustas-me, filha…
-Pois, mas olha que tudo o que sou, foste tu que me ensinaste…
-E julgas que essa ideia não me atormenta… não sei se encorajar-te com o Kyle foi uma boa ideia…
-Para! Para já com isso! O Kyle aconteceria na minha vida com ou sem o teu consentimento, é e será sempre o homem da minha vida.
-Tu és tão nova, filha, ainda tanta coisa te vai acontecer.
-Nada do que vier a acontecer-me apagará o que já aconteceu… vó… não te arrependas tu daquilo que para mim foram os melhores anos da minha vida vivida e a viver…
-Pois… mesmo assim, os problemas estão aí… estou preocupada…
-Com o quê?
-Precisas de um pai para essa criança.
-Albertina, que se passa contigo? Esta criança tem o melhor pai que alguém poderia desejar. Não o conhecerá em vida, mas eu me encarregarei de que o pai viva em cada respiração do filho…
-Não é isso, Madalena, é a questão da paternidade. Tens de registar a criança quando nascer e dar-lhe um nome.
-Dou-lhe o meu.
-Não podes, filha, tens de indicar um pai…
-Hã… indico o Kyle.
-Não podes, filha, por mais injusto que te pareça, essa criança tem de ter um pai vivo… o teu filho precisa ser adotado para ser registado…
-Que estupidez, as leis dos homens são estúpidas, os homens são estúpidos… tinhas razão quando aqui entraste, havia um problema, mas repara como eu tinha razão também, por problema ser, encontrou caminho até mim… e se bem te conheço… esse ar preocupado… não é por causa do problema, pois não?
-Como assim, filha?
-Tu tens uma solução, não tens vó Bé? E temes que possa não aceitá-la…
-Eu conheço-o. É um bom homem. Trabalhador, respeitado e, tanto quanto sei, respeitador, é português, aceita mesmo acolher-te juntamente com as crianças…
-E o que quer ele em troca?
-Nada…
-Então, agora é a tua vez de ser ingénua? Ninguém faz nada por nada…
-Ele enviuvou… está um pouco perdido… se trouxeres a casa cuidada e lhe tratares da roupa…
-Mas ele quer uma empregada ou uma segunda mulher? É que lá tratar-lhe da casa e da roupa ainda é como o outro, mais do que isso…
-Não sejas tonta… é só mesmo isso…
-Posso conhecê-lo, falar com ele, perceber o que quer…
-É que, além do nome para a criança, ele pode dar-te algum conforto, filha, não terias de pagar renda, a água, a luz…
-Veremos.

E viu. E gostou do que viu. Um homem mais novo do que a avó, pacato, austero, de poucas falas e trato delicado. Estava há muito na Suíça. Tinha vindo como servente, passara a pedreiro e há já uns anos tinha uma pequena empresa cujo propósito único e único trabalho era produzir caixilhos de alumínio para janelas. Não trabalhava em portas, não colocava vidros nas janelas, não punha as colas, de manhã à noite, quatro pessoas selecionavam os perfis, traçavam as medidas, levavam à serra, aplicavam as esquadrias e montavam os caixilhos e depois duas pessoas e uma carrinha de caixa aberta procediam às entregas. A sua companheira de sempre, porteira há vinte e cinco anos, desde que haviam chegado à terra do frio e da neve, fora assassinada num assalto ao prédio de que cuidava. Moravam lá os dois, como era normal. Foram atados a duas cadeiras, de costas um para o outro, e foram agredidos. Ele sobreviveu. Ela sucumbiu. Teve direito a uma foto pequenina no Correio da Manhã com meia dúzia de linhas imprecisas e um título enorme na página 9. O homem ficara desesperado, desleixou o negócio e esteve quase para desistir desta vida. A pouco e pouco foi acordando para o quotidiano, mas nunca lhe saiu a tristeza do peito, nunca mais viu o sol, mesmo nos dias em que parecia brilhar. Se brilhava, era para os outros. Aceitou dar o nome ao filho da jovem viúva. Albertina explicou-lhe que a menina não tivera nenhum azar, mormente, o da desonra. Fora mesmo casada. Muito nova se tomara de amores por um estrangeiro doente. Viveram bem, mas a doença consumira-o e deixou-a com uma filha emprestada nos braços e um filho do defunto no ventre. A mais velhinha era, de facto, sobrinha. Uma sobrinha que ela criara desde as duas ou três semanas de idade como se de uma filha se tratasse, aliás, a pequenina chama-lhe mamã. É trabalhadora, a pequena, e pode ajudá-lo com a lida da casa. Nada mais, bem entendido. E, para bom entendedor, “nada mais” bastou como explicação dos limites todos. Bastou durante algum tempo. Seis meses. Depois, a ele apeteceu-lhe mais que nada era muito pouco. A verdade é que, assim que viu Madalena entrar-lhe pela porta dentro com os olhos cheios de vida azul e os cabelos louros esvoaçando e prendendo-se-lhe ao canto da boca, o homem sobressaltou-se. No seu peito houve um pequenino estrondo como se, estando longe do Japão, tivesse ouvido da bomba atómica um rumor longínquo e abafado. Aguardou. Sossegou-se. Recolheu-se ao seu canto e aos limites da sua promessa: “nada mais”. Nada mais seria.

Em maio, Jacob apresentou-se ao mundo. Poderá Madalena esquecer muita coisa, mas nunca o inigualável momento de parir o seu filho. A dor, o corpo a rasgar-se por dentro, a sensação de se perder o controlo da nossa vida para se trazer outra ao mundo. Quando a criança chorou, a mãe chorou com ela e pronunciava, Já está, seu irlandês teimoso, já cá está o nosso filho, podias ter esperado mais este pouco que seria tanto. Que diz a menina? Perguntou a enfermeira. Rezo. Faz muito bem. Tem aqui um belo rapaz, mas agora vamos levá-lo connosco. Passa-se alguma coisa? Não, rotinas. Passava, mas isso são histórias de outro rosário. Lá iremos. Nunca se conhecerão completamente as consequências da maternidade, contudo, com pouca margem de erro se pode dizer que a Madalena mudou-lhe por completo a perspetiva que tinha da vida, da morte, da existência, da dedicação e a própria noção que tinha de si mesma antes de ser mãe se alterou radicalmente. As crianças estavam a maior parte do tempo com ela e o tempo que restava ficavam com Albertina que não morava longe. Madalena trabalhava muito, mas as dificuldades sérias surgiram seis meses mais tarde quando o generoso pai adotivo de Jacob decidiu que “nada mais” era muito pouco. Tomou-se de amores por Madalena. Fez-lhe propostas diversas, tentou persuadi-la a uma relação mais séria, mais íntima, e vivia entre a doçura das flores e dos presentes que lhe oferecia e a raiva de não conseguir perceber porque lhe dizia ela que não. E, contudo, a razão era simples. Não o amava. E, sobretudo, o idílio da vida com Kyle estava ainda muito próximo. A sua tarefa mais imediata, a mais urgente, a que lhe consumia as atenções e as energias todas, era criar aquelas duas inocentes almas. E no dia em que ele, insistindo, pareceu querer cobrar o facto de ter dado um nome de pai à criança, assim que lhe aflorou aos lábios o argumento de estar a dar-lhe guarida, ela sentiu-se presa e reagiu como sempre reagia a essa condição, libertou-se. Numa tarde em que chegou do trabalho e procurou por ela, o homem que emprestou o apelido a Jacob não encontrou nada. Nem Madalena, nem Mariana, nem Jacob, nem as roupas deles, nem as coisas… nada. E nada fora tudo o que lhe sobrara. Acontece muito a quem quer tudo.

Madalena não disse nada a Albertina. Porque era uma decisão só sua, porque não queria ouvir a avó pedir-lhe para pensar duas vezes e, sobretudo, porque era previsível que o homem que emprestou o apelido a Jacob entrasse em contacto com Albertina, eventualmente, julgasse que teria alguma coisa a ver com a decisão de Madalena. Deixá-la na ignorância protegia-a desses julgamentos. Por outro lado, a decisão era sua, as consequências teriam de ser por si suportadas. Talvez fosse orgulho, no seu íntimo sabia que também era orgulho, mas era um orgulho de sobrevivência e o facto é que o homem que emprestou o apelido a Jacob foi ter com Albertina e perguntou-lhe onde estava Madalena e esta reagiu dizendo que deveria estar com ele, o que se passava, e ele lá disse que não estava e Albertina lembrou-se de ir ao anterior apartamento e é verdade que Madalena estivera lá, acontece que o andar está já ocupado e mesmo que não estivesse, a renda havia subido e Madalena confessara não poder-lhe chegar. Saíram de lá os dois com a as mãos vazias e a preocupação do peito espelhada no olhar. Madalena é um espírito livre, comentou Albertina, tentar retê-la, é perdê-la para sempre.

Percebeu finalmente o que eram responsabilidades, percebeu finalmente o que era lutar combatendo as dificuldades sem poder vacilar e, sobretudo, mostrando às crianças que a vida é esperança. Sorriu sempre. Brincou sempre com eles. Viveram de forma magra e austera. Nunca tiveram fome. As crianças. Por vezes, ao final do dia, Madalena preparava-lhes a refeição e comia um tomate. Refogava o tomate em sal e comia-o com pão. Era o que podia. Depois deitava-os, pedia a Mariana que olhasse pelo mano, lhe mudasse a fralda que ela quando chegasse haveria de lavar a suja. Nesses dois anos, Madalena sobreviveu com pouco mais do que duas mudas de roupa. Tinha um trabalho ao longo do dia. Voltara ao pub, à noite, servindo às mesas, e aceitava trabalhos de contabilidade para fazer. Eram sobretudo emigrantes que lhe confiavam os sinais de mais e de menos e os impressos e seguiam à risca os seus conselhos de como orientar a vida e os negócios, onde gastar, onde não gastar, onde estava fugindo o dinheiro, de onde estava chegando. No fim de um dia de trabalho, tinha a hora de jantar com as crianças e depois disso o pub e depois disso a lida da casa e as refeições do dia seguinte e aos fins de semana as limpezas e os trabalhos de contabilidade e ao sábado à tarde corriam ao parque e respiravam ar sem teto, corriam, mostravam o mundo a Jacob apontando-lhe as coisas e dizendo-lhe os seus nomes. Passou fome, sim. Muita dela por orgulho. Acontece que o orgulho é parte da massa com que se fabrica uma espinha dorsal íntegra e erguida. Muitas vezes pensou no homem que emprestou o apelido a Jacob, em como seria fácil pedir-lhe ajuda, ao menos uma refeição de jeito, mas isso seria a negação de si própria, seria abdicar de si e nunca mais confiar-se nada. Muitas vezes pensou em socorrer-se de Albertina, pedir-lhe dinheiro emprestado, mas de novo a assaltava a urgência de sobreviver por si, de se bastar. E se não houvesse Albertina? E se não conhecesse o homem que emprestou o apelido a Jacob? Preferia deitar-se com fome do que deitar-se com a vida hipotecada. Por vezes comia no pub. Às escondidas. Restos. Pão, sobretudo. Saciava-se com o que os outros desperdiçavam. Nesses dias abençoou o desperdício alheio. Fazia as contas dos outros e as suas. A renda da casa, a água, a luz, o gás, as mercearias, os detergentes, o dinheiro dos transportes públicos, da farmácia, o dinheiro para as necessidades das crianças, e adiava as suas. E, sempre que conseguiu, leu. Deu graças aos homens pelas bibliotecas públicas e, às vezes, ao sábado à noite ou mesmo ao domingo à tarde, quando as crianças tombavam no sono, ela mergulhava nos fantásticos mundos que não podia viver, mas que não se dispensava de ler. Têm esse poder, os livros, permitem-nos viver mais do que uma vida ao mesmo tempo.

Ao cabo de dois anos, corria o ano de mil novecentos e noventa e sete, Madalena tinha interiorizado este ritmo de sacrifícios, esta austeridade forçada, as passadas limitadas do dia a dia e, contudo, não se sentia oprimida. Pelo contrário. Estava a conseguir. Jacob tinha dois anos. Era um menino meigo, com um olhar azul e infinito de ternura. Mariana era mais do que filha. Era uma amiga cúmplice do quotidiano, das opções no supermercado, dos truques de poupança, da alegria encontrada nas coisas pequeninas. Foi então que conheceu, quase por acidente, Mário Só. Seria seu segundo e último marido e uma das mais fugazes relações que viria a ter em toda a sua vida. Mas foi também um ponto final nas dúvidas. Mário Só seria breve, mas absolutamente fundamental na aprendizagem que estava fazendo acerca das pessoas, absolutamente fulcral na forma como se estava formando o seu caráter. Mário Só seria o fechamento do processo de crescimento de Madalena. A definitiva passagem de menina a mulher. Teria de morrer com ele para ressuscitar depois dele. Teria de iludir-se e desiludir-se. E só depois estaria pronta para todas as coisas que ainda lhe faltava viver. Contaremos essa morte e essa ressurreição que anda enganado quem julga que é exclusivo de Cristo, tal fenómeno. A vida tem pedras arremessadas para todos nós, e tem para todos nós alguém que se curva e nos lava as feridas. A vida tem uma Cruz para todos nós e para todos nós tem alguém que nos espera quando nos descem do madeiro. Entre o momento de soçobrar e o de reerguer há um átomo de tempo que só no peito de cada um se mede e se encontra. Chama-se Paixão.

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