Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."

ANIVERSÁRIO

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Este ano, mais precisamente a 31 de agosto, fiz um daqueles aniversários que ninguém nota, mas que, bem vistas as coisas, é dos que mais conta.

Completaram-se trinta anos desde que assinei o meu primeiro contrato como docente. Trinta anos de docência. Trinta anos de ser professor. Trinta anos de setôr. Trinta anos de dedicação, entrega, investigação, empenho, superação de muitas dificuldades. Trinta anos de desilusões. Trinta anos de milagres, de conquistas, de muito reconhecimento. Trinta anos de juventude. Trinta anos de dar incondicionalmente e receber surpreendentemente. Trinta anos de olhares, de dedos no ar, de dúvidas tiradas e por tirar. Trinta anos do melhor do mundo e também dos seus encarregados de educação preocupados e exigentes como se tivessem o bem mais precioso na mão. E tinham. Trinta anos de testes, de noites mal dormidas, de reuniões, de pautas e atas. Trinta anos de medos e inseguranças e algumas certezas, poucas, e muita determinação. Trinta anos a dizer Sim e trinta anos a dizer Não. Trinta anos de Estatuto da Carreira Docente. Por curiosidade, assinalo que nasci para esta profissão no ano em que nasceu o seu mais importante instrumento legal. Somos irmãos. Talvez por isso tenha feito questão, sempre, de o conhecer bem.

Só assinei dois contratos. Em 1990 e em 1992. Só trabalhei em cinco escolas. Francisco Rodrigues Lobo, Leiria, um ano; Jácome Ratton, Tomar, um ano; EB 2,3 Luís de Camões, Constância, dois anos; Secundária de Alcanena, Alcanena, dezoito anos; Escola Portuguesa de Moçambique, Maputo, oito anos. Tive centenas de turmas, milhares de alunos, orientei muitos estágios e dei formação a milhares de professores. Fui dirigente sindical durante sete anos sem nunca ter deixado de dar aulas. Fui Diretor de Serviços da Formação do Pessoal Docente no Ministério da Educação entre 2010 e 2012, os dois únicos anos da minha carreira profissional em que não dei aulas. Fiz um mestrado, um curso de especialização, duas pós-graduações, centenas de ações de formação, seminários, congressos, sessões de esclarecimento e eventos, preparei e dei milhares e milhares de aulas e tenho o humilde sentimento do dever cumprido de forma honesta, dedicada, briosa e o mais competente que soube e pude. Nunca deixei de honrar os termos do meu contrato. Estou agradecido. Estarei sempre. Foi o Ministério que me permitiu ser e fazer aquilo que mais gosto, que mais amo.

Por parte do Ministério da Educação não estava à espera de nenhuma medalha, nenhum relógio de ouro, nem um diploma. Não fiz o que fiz à espera de nada mais do que aquilo que estava acordado: eu dava o meu melhor e, em troca, recebia o meu salário. E foi o que fiz. Fui um profissional do Ensino. Acontece que, nesta profissão, não basta ser-se profissional. Não basta, sequer, ser-se um bom profissional. É preciso estar-se atento a cada detalhe, ser-se de uma dedicação extrema, trabalhar muito mais para além das horas pagas, fazer muito mais do que exige o perfil funcional, sofrer, com estoicismo, alguma incompreensão e desconhecimento alheios, mas tudo, rigorosamente tudo, deixa de ter qualquer importância quando um aluno progride e obtém sucesso, quando descobre, quando vê para além do que cria ser possível. Ainda assim, um cartãozinho, por singelo que fosse, um mail, mesmo anónimo e impessoal, com uma frase inócua a espelhar um lugar-comum repassado como aquelas imagens com máximas que circulam pelas redes sociais. Ao menos isso ter-me-ia feito sentir que contava para alguma coisa, que fazia parte de um qualquer desígnio nacional. Afinal, não faço. Andamos para aqui todos a dar o nosso melhor, descomandados, cada um por si… quanto não se ganharia se as coisas fossem diferentes.

Faria algumas coisas diferentes, mas não carrego arrependimentos às costas. Tive dias bons e dias maus. Alunos dedicados e alunos cábulas. Tive os que se esforçaram ao máximo para conseguirem e tive os que conseguiram quase sem esforço. Tive os tímidos e os reservados, os tagarelas, os irrequietos, os que estavam sempre com o braço no ar e os que baixavam os olhos só de suspeitarem que podia perguntar-lhes algo. Tive os que pasmavam com a descoberta e o Conhecimento e tive os que não queriam saber do Conhecimento para nada. Tive colegas cooperantes e colegas indiferentes. Tive os que olhavam para mim e viam uma oportunidade de trabalho e também tive aqueles que não viram em mim nada mais do que um motivo de mexerico. Penso que é normal. Penso que a Escola é erradamente vista como um ambiente à parte, in vitro, onde se preparam os alunos para a vida quando ela é, de facto, a vida a acontecer em todo o seu esplendor, todas as suas virtudes e as vicissitudes também.

Ser professor é fazer parte de um processo de crescimento, é operar um milagre e poder fazê-lo conduzindo o milagre para o porto seguro que queremos e sabemos que existe e sabemos, até, como chegar até lá. Ser professor é um privilégio. É pertencer à profissão das profissões, uma das mais mal tratadas e, simultânea e ironicamente, uma das mais estruturantes e fundamentais. Nestes trinta anos, vi muita coisa boa acontecer à carreira docente, mas vi, também, muita degradação das condições de exercício e muita degradação da imagem da profissão.

E chego aqui vivendo um paradoxo esquisito. Não sonho com mais trinta anos de carreira, mas também não anseio pela aposentação. Ao cabo de trinta anos, sei pouco e o pouco que sei resume-se a isto: os alunos são o que realmente interessa e vale a pena em todo este processo. Tenho de agradecer-lhes por me terem ensinado tanto nestes trinta anos e por terem dado sentido à minha vida e à minha existência e não me refiro somente à profissional. Muito do que somos passa pelo que fazemos profissionalmente e, se posso considerar-me, hoje, um homem feliz, isso deve-se, em grandíssima parte, ao facto de ter optado consciente e apaixonadamente por esta profissão. A única que conheço. A única que quis sempre conhecer.

joão paulo videira

Desconhecida's avatar

Autor: mailsparaaminhairma

Desenho ilusões com palavras. Sinto com palavras. Expresso com palavras. Escrevo. Sempre. O resto, ou é amor, ou é a vida a consumir-me! Há tão poucas coisas que valem a pena um momento de vida. Há tão poucas coisas por que morrer. Algumas pessoas. Outras tantas paixões. Umas quantas ilusões. E a escrita. Sempre as palavras... jpvideira https://mailsparaaminhairma.wordpress.com

2 thoughts on “ANIVERSÁRIO

  1. Carla Simões's avatar

    Muitos parabéns pelo seu percurso! Um privilégio conhecer o seu trabalho.

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