Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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A Paixão de Madalena – Capítulo 18 (Excerto)

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O presente texto constitui um excerto do Capítulo 18.

A PAIXÃO DE MADALENA

LIVRO III – CAIM  E ABEL

18. Correu pela aldeia que, finalmente, nesse dia, a Deolinda do Madeireiro iria parir daquele barrigão que impressionara toda a gente e levara os homens a apostar, a copos de três, na tasca do Quim da Barbuda, quantas seriam as crias. E houve apostas bizarras. Desde quem dissesse que não havia ali nada, aquilo era uma barriga de ares, que bem a ouviam peidar-se alarvemente durante a noite os vizinhos, até aos que afiançavam que a pobre tinha a barriga e as tetas como a marrã do Tóino Manso quando, aqui há uns anos, trouxera a ver o sol deste mundo nada mais nada menos do que quinze crias. E a pobre escancarou-se na cama assistida pela Miquelina Mãozinhas e uma miúda que lhe fazia chegar alguidares de água a ferver. E gemia baixinho como que para não incomodar o pelotão de velhas que se plantara do lado de fora da porta do quarto em rezas, ladainhas e benzeduras diversas a pedir ao Grande Mestre desta orquestra de perdidos que tudo corresse bem. E correu. Nasceram dois. No mesmo dia, à mesma hora, com minutos de diferença, e logo ali se percebeu que outras diferenças havia entre eles. Sendo gémeos, não eram, sequer, parecidos. O primeiro veio rápido e sôfrego de ares, trazia os olhos abertos e espantados e chorou mesmo antes da sacramental palmada, no seu caso, inútil ritual, que o próprio já se havia anunciado ao Mundo num berro cristalino e agudo. E o segundo encolheu-se e deixou-se ficar no aconchego do que restava da placenta, assim como quem diz, Vai lá ver se isso é bom que eu logo te direi se saio daqui ou não. Ilusão sua, porquanto a ordem natural das coisas e a vontade primeira do Maestro é que nasçam as crias, vivas ou mortas, e venham a este mundo cumprir sua função. O tipo não chorou. Vinha roxo de medo, os olhos fechados e os lábios cerrados e só à terceira palmada, bem esticada de força e benzida por alguma impaciência da Miquelina Mãozinhas, é que sua excelência grunhiu que nem um porco ao dar-se ao gume da faca. António Paixão, o pai, mais conhecido por Tóino Madeireiro, desinteressou-se do assunto, bateu com a palma da mão no balcão do Quim da Barbuda, pediu uma amarelinha e quando instado a esclarecer como estavam a correr as coisas, disse que não sabia, tinha ido tratar do gado, servira para os fazer, haveria de criá-los, que o poupassem à parição que era isso função da sua Deolinda. E quando chegou a casa, ao final da tarde, e olhou os cachopos na cama, um de cada lado da mãe, estranhou:
– São estes?
– Quais haveriam de ser, homem? Nasceu mais alguém nesta casa hoje?
– E são os dois meus?
– Não sejas parvo!
– Sei lá, uma vez, a Nina, que é a cadela do Amílcar Batateiro, pariu duas crias do Trovão e outras duas do Maldoso duma barriga só e percebia-se bem de quem eram elas pela pinta da bicheza.

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[O presente texto constitui um excerto do Capítulo 18 de “A Paixão de Madalena” a publicar em breve em livro. Boas leituras!]


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A Paixão de Madalena – Capítulo 17

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[Aqui se apresenta o 17º de 35 capítulos do romance que publicaremos em breve em livro. A partir deste momento, publicaremos excertos dos próximos capítulos, um pouco de todos eles, mas nunca completos e, uma vez concluído o processo e negociados os termos da publicação, teremos muito gosto em convidá-los para a apresentação pública de “A Paixão de Madalena”.]

A PAIXÃO DE MADALENA

LIVRO III – CAIM E ABEL

17. Sempre assim fora. Vinham de longe os homens que visitavam Maria de Magdala, Madalena chamada por de Magdala ser. Eram viajantes, comerciantes abastados, criadores de gado, gente de trabalho e posses que aparecia em data marcada e só entrava estando na porta sinal que o permitisse. Ela acolhia-os, limpava-lhes o pó do corpo untando-os com óleo e raspando-lhes a pele depois com uma tabuinha polida, e mandava que lhes lavassem as roupas e lavava-lhes os pés como viria a fazer ao pregador errante a troco de nada ou, noutro olhar, como parca e insuficiente paga pela sua vida e pela lição do Amor. E também os alimentava e lhes dava de beber e terminavam o festim com as carícias que sabia preferidas de cada um deles. À sua medida, com seu modo e seu jeito, Maria de Magdala prosperava e só não crescia mais rápida e fulgurantemente porque apreciava mais a tranquilidade do que a posse. Limitou o número de visitantes, limitou os dias em que podia ser visitada e deixou-se ficar no conforto da vida literalmente conquistado com o suor do seu corpo.

É cruel o viajar das notícias. Maria de Magdala recebia alguns pobre e necessitados a quem oferecia uma refeição, uma peça de roupa, um pão para o caminho. Não consta que tivesse alguém vindo agradecer-lhe em nome daqueles que ajudou. Já quanto aos que vinham pelo prazer da carne, depressa as distâncias se encurtaram, depressa viajou a notícia de que havia em Magdala uma Maria que acolhia homens e os limpava e os massajava e se acoitava com eles satisfazendo-lhes todos os desejos, fossem solteiros ou casados, ricos ou remediados. E as mulheres ofendidas enviaram, pagando, quem lhe apedrejasse a porta e lhe escreve a carvão na parede caiada da casa, PUTA, VAI-TE EMBORA! Maria de Magdala, de Madalena chamada, saía pouco. Ainda assim, sempre chegava o dia em que se passeava pelas colinas circundantes, em que ia comprar sedas, em que se deslocava ao mercado a comprar mercearias. Numa dessas saídas, perseguiram-na. Pessoas de Magdala e outras que vieram de terras circundantes foram no seu encalço, atalharam-lhe o caminho, forçaram-na a fugir por esta e aquela rua até chegar a um largo e nele se viu cercada de população e encostou-se a uma parede, único lado de que ficaria protegida. E logo um semi-círculo se formou à sua volta, soaram impropérios e acusações e, céleres, como se quisessem expulsar os seus próprios pecados e demónios, surgiram sentenças e uma emergiu mais contundente e se fez um coro de gente gritando, Apredejem-na! Apedrejem-na! Matem à pedrada a bruxa que enfeitiça os nossos homens! As primeiras pedras voaram, algumas caíram bem perto de si, uma ou outra acertou-lhe no corpo e magoou-lhe a alma mais do que tudo. E uma voz, mais alta do que a multidão, mais grave do que o ruído da turba, silenciou as gentes:
– Parai! Aquele que nunca pecou que atire a primeira pedra!

As pedras que estavam nas mãos nelas ficaram, as mãos erguidas baixaram-se, os olhos voltaram-se para o chão e perderam a chama da violência, as suas mentes começaram a procurar pelos seus próprios pecados e rápido encontraram tantos e tão diversos que mais nenhuma pedra foi arremessada. E Cristo passou por entre eles, segurou Maria de Magdala pela mão e acompanhou-a a casa onde se confortaram e trataram um do outro como já aqui foi relatado.

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