Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Mails para a minha Irmã

A Vida não é um Acidente

Olá, Mana.

Um pensamento a que não consigo furtar-me na sequência do que se passou nos últimos dias, em particular, a morte da nossa mãe, é o de que agora estamos sós no mundo. Tu e eu. Restamos tu e eu como herança e responsabilidade das duas pessoas que mais nos amaram no mundo, que mais amámos no mundo. Nós temos família. E amigos. Mas éramos também um precioso e insubstituível núcleo familiar que agora desapareceu por completo. E não me sobrevem uma única mágoa, nem a mais leve sensação de tristeza. Tivemos um pai íntegro, honesto, trabalhador, com um incorruptível código de valores que foi o fundamento do nosso ser, da nossa existência, da nossa interação social. Foi ele que nos passou o respeito pelo outro, a retidão, o sentido de compromisso, a não cedência às tentações que corrompem. Lutou por nós, viveu por nós, e só morreu quando nos julgou a salvo de percalços maiores que a vida pudesse trazer. Já agradeci muito por não nos ter deixado qualquer herança material. Por não nos ter deixado nada que interferisse com esta herança essencial de valores. Algo que pudesse brilhar e com esse brilho ofuscar o bem maior e mais precioso que nos deixou. E tivemos uma mãe que nos amou incondicionalmente, que nos protegeu, que nos motivou e que fez por nós o que mais ninguém faria, mesmo quando isso teve de ser retirar-se e dar-nos espaço ou agarrar-nos por um braço e mostrar-nos o caminho. Era o entusiasmo em pessoa, a alegria e o dinamismo, o ímpeto repentista e o carinho de nos pentear o cabelo. Viveram plenamente, em liberdade plena, em plena harmonia, em dedicação plena. Viveram por si e viveram por nós. Para nós. E tinham imperfeições e eram essas imperfeições que realçavam a maravilha da harmonia que eram para nós. Seus filhos. Seus tesouros de amar. De Amor.

Não há distância no seu desaparecimento físico e não pode haver tristeza. Só saudade. E tem de haver orgulho, tem de haver a responsabilidade e a determinação de continuar o seu legado, tem de haver espaço para o sonho, tem de haver amor, tem de haver verdade. E tem de haver a coragem de procurar e perseguir tudo isso, mesmo em tempos de adversidade. Sobretudo em tempos de adversidade. Temos muitas diferenças. Somos muito diferentes e temos também muito em comum. E o mais importante que temos em comum é o sentido que os nossos pais deram à vida.

Não sintas, NUNCA, culpa e, menos ainda, remorso. Os nossos pais definiram sempre os seus caminhos e fizeram as suas opções com base no seu código de valores e no amor que nos tinham e com que nos criaram. E, naquela tarde, tu conduziste o carro também por opção da mãe que to confiava. E não tens culpa do golpe de sol pela frente, da curva apertada, do cascalho no chão, do carro velho e pouco seguro. Não tens culpa das circunstâncias porque as circunstâncias foram isso mesmo: circunstâncias. Mas seremos sempre culpados, tu e eu, de não honrarmos e de não difundirmos o seu legado de amor, verdade e integridade, se nos desviarmos dele.

Estamos sós, Mana, e é sós que temos de assumir a responsabilidade de não deixar morrer esse legado, de não permitir que a morte última e verdadeira, a do esquecimento, se abata sobre o nosso paizinho e a nossa mãezinha. É neste propósito que tem de fundamentar-se a nossa união e é este propósito que tem de ser o guia das nossas opções e dos nossos gestos daqui em diante.

A vida não é um acidente, Mana. É uma sucessão de opções e nós herdámos o melhor dos guiões para optar.

Com Amor,
Mano.


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Crónicas de África – Miúdos de Rua

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Crónicas de África – Miúdos de Rua

Maputo, 1 de março de 2015

Em Maputo, cada miúdo de rua é uma surpresa. Surpresas de sorrir, de chorar, de sofrer, de entender, de não perceber nada. Conto hoje a história de três miúdos de rua que se cruzaram comigo.

JQ

Quando conheci o J, ele ainda era um adolescente. Tinha dezassete anos e vendia capulanas e panos com animais selvagens pintados à mão para se pendurarem numa parede ou colocarem numa mesa, numa cama. Corria ao lado dos carros quando o trânsito estava lento e dizia às pessoas que elas precisavam muito do que ele tinha para vender, até porque ele só tinha coisas boas para vender. Gostava de regatear e quando o preço chegava ao limite do que ele estava autorizado a baixar, ligava para o boss dele e ficávamos a negociar os três, sendo ele o intermediário e tradutor das conversas. Comprei-lhe diversos panos por aquela altura, em dias diferentes, e por isso nos marcámos. Não lhe esqueci a face, nem ele a minha. Estranhou, um dia, quando lhe perguntei o nome e quis saber o meu de volta. Só vim a saber que ele não o esquecera quase três anos depois, quando nos reencontrámos. Eu, ainda professor, mas muito mais africano. Ele já deixara de passar os dias deitado na areia ou a correr ao lado dos carros. Agora, era segurança. Eu entrava para um restaurante, quando senti uma mão tocar-me no ombro, virei-me e lá estava o sorriso inconfundível do J.

– Patrão João, lembra-se de mim?
– Claro! Tu és o J.
– Lembra!

Abriu mais o sorriso e deu-me um aperto de mão à moçambicano. Tinha sido pai há somente quinze dias, mas a criança falecera há três noites atrás. Mas sorriu ao ver-me porque rever uma pessoa que se lembra do nosso nome é uma coisa boa mesmo quando a alma anda triste.

– A criança caiu bem. Nasceu lá no Hospital Central e nos mandaram para casa. Estava a comer bem. Uma noite, a minha esposa levantou-se para ir na casa de banho e ele já não se mexia. Levámos para o hospital. Já não voltou.

As ruas de Maputo fazem homens de muitas maneiras. Há os que casam e vão ser pais e há os que ficam órfãos dos seus filhos e nos sorriem como se o sol tivesse acabado de nascer.

FR

Em Maputo, um trabalho não precisa estar reconhecido como profissão para ser exercido e ter uma remuneração. Quando alguém se consegue fazer útil por algum meio, tem um trabalho e faz-se pagar por isso. Quando conheci o F, ele trabalhava no mercado. Acartava os sacos de compras das pessoas. Tinha onze anos. Hoje, tem catorze e ainda faz o mesmo trabalho. Ao fim de semana. O Mercado Central de Maputo está repleto destes miúdos que esperam pelas pessoas e se oferecem para andar com os sacos das compras. Seguem os clientes do mercado aliviando-os do peso e quando as compras terminam, acompanham as pessoas ao carro e esperam por uma moeda. A maioria destes miúdos é atrevida, persistente, e a sua vida resume-se a pouco mais do que ao dia a dia no mercado. O F afeiçoou-se à senhora e ao cãozinho e pergunta sempre por eles, mesmo sabendo que é comigo, e só comigo, que trabalha. E informou desde cedo que ia à escola. Interessei-me por ele, entre outras coisas, por este pormenor de ir à escola.

– Então estás aqui todos os dias?
– Não. Só venho ao fim de semana. Durante a semana, ando na escola.
– Estás em que classe?
– Quase a acabar a sétima.

Com o tempo e as conversas enquanto ele me ajudava com os sacos, o F tornou-se em algo mais do que o miúdo que me acarta os sacos. De resto, eu gosto de acartar os meus sacos. Partilho-os com ele. Ele trabalha ao fim de semana para ajudar a pagar os estudos. Começou por trazer-me uma foto com a farda da escola, depois o documento com as notas da oitava classe, e este ano trouxe-me toda a documentação da matrícula na nona. Guardou na senhora que vende ananás para me mostrar. Quando chegou ao carro, encontrou um saco com material escolar que eu lhe tinha levado. O F é um trabalhador estudante. Aos catorze anos. Respeito isso. Há muito que não lhe dou moedas. Dou-lhe notas e material escolar. E ele acarta-me os sacos, pergunta pela senhora e pelo cão e vai-me trazendo as folhas com as notas dos exames.

Nas ruas de Maputo, também há marginais da marginalidade. E esperança. E resiliência.

JL

Não conheço o J de lado nenhum. Não sei quem seja. Só o vi uma vez. O suficiente para lhe perguntar o nome e trazê-lo para esta crónica. Impressionou-me e pronto.

Tinha acabado de sair do supermercado, levei o carrinho das compras, que estava praticamente vazio, meia dúzia de coisas, e coloquei entre elas a minha caneta e a minha agenda, presas uma à outra. Abri o porta-bagagens, coloquei as compras nele e fui para o lugar do condutor. Já estava a sentar-me quando percebi que me tinha esquecido da agenda no carrinho das compras. Voltei atrás, mas não cheguei a dar dois passos. Ele vinha na minha direção com a agenda e a caneta na mão. O miúdo estava aterrado, o seu rosto espelhava medo. Vi que ele quis, a todo o custo, evitar um equívoco, uma acusação. Segurou a mão direita com a esquerda, estendeu-me a agenda e baixou a cabeça fitando o chão. Não foi capaz de me encarar.

– Obrigado.
– De nada.
– Como te chamas?
– J.
– Tens quantos anos?
– Onze.
– Fizeste uma boa ação, J. Obrigado.

A última frase era verdade, mas a verdade é que a disse mais para o tranquilizar do que outra coisa qualquer.

– Andas na escola?
– Ando.

A pergunta e a resposta era inúteis porque ele estava fardado. Num espaço de poucos segundos, enquanto ele se afastava, pensei que não devia dar-lhe nada porque o meu pai me ensinou que das boas ações não devemos esperar recompensa. E, no mesmo instante, pensei que estava em Maputo, que as coordenadas eram diferentes. Não tinha ali nenhum material escolar, peguei numa nota e chamei-o:

– J!

Ele virou-se, dirigiu-se para mim, quando levantei a nota, ele benzeu-se, estendeu a mão direita que segurou com a esquerda e colocou os olhos no chão.

– Fizeste uma boa ação. Compra uma coisa para ti.
– Obrigado.

Tive a sensação de que ele nem vira a nota e segundos depois a sensação confirmou-se. O J atravessou as quatro faixas da estrada e já estava do outro lado da rua quando levou a mão ao bolso e tirou a nota. Viu qual era. Voltou a guardá-la, benzeu-se de novo e fez-se ao caminho.

Nas ruas de Maputo, também crescem os valores e a fé. E o medo!

jpv

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Nota 1. O aperto de mão moçambicano consiste num movimento em três momentos. Mãos na horizontal, na vertical e de volta à horizontal. É uma senha que faz parte dos tempos da libertação. Os três movimentos correspondem a três valores. Liberdade. Igualdade. Fraternidade. Tenho reparado que a maioria dos moçambicanos já não sabe o seu significado, mas este aperto de mão é muito comum.

Nota 2. Segurar a mão direita com a esquerda é um gesto de respeito e humildade. A mão esquerda segura o pulso da mão direita mostrando à outra pessoa que aquilo que vai ser dado ou recebido está seguro.