Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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A Matemática dos Dias

De Rerum Natura
A Matemática dos Dias

Em 1987, setenta e cinco dias antes de fazer cinquenta e quatro anos, o meu pai teve um violentíssimo enfarte do miocárdio. Numa das imensas consultas de acompanhamento que foi necessário fazer, um médico informou que a probabilidade dos filhos de pacientes cardíacos terem enfartes aumentava onze por cento só por serem filhos de pacientes cardíacos.

Eu tinha vinte anos. Não vivi uma vida tortuosa a pensar nos meus onze por cento de acréscimo de risco, mas, admito, a partir dos cinquenta, o espectro bailou diversas vezes no horizonte da minha mente. Uma coisa a tolher a racionalidade e a instilar o medo. Em 4 de outubro deste ano, trinta e quatro anos depois, eu fiz cinquenta e quatro. Sem enfarte. E não pude esquecer a figura do homem que tanto, e de forma tão ímpar, admiro. Não o superei. Superei a marca da dor. Dessa dor, pelo menos.

Uma vez disse a um aluno que, quando tivesse oitenta anos, se olhasse para trás no tempo, veria poucas coisas, poucos momentos significativos. Nada restará das pequenas batalhas e preocupações, nada restará da nuvem inútil de poeira a que chamamos, por vezes, coisas importantes. Restará, somente, aquilo que é efetivamente significativo. As pessoas que verdadeiramente amámos e nos amaram, os momentos que intrínseca e profundamente nos marcaram. Lembro-me do dia em que a minha irmã nasceu. Lembro-me do dia em que o meu filho nasceu. Lembro-me do dia em que, pela primeira vez, peguei no meu neto ao colo. Lembro-me de me ter apaixonado. Lembro-me da primeira aula que dei. Lembro-me de ter morrido e lembro-me da madrugada em que o meu pai teve o enfarte. Não preciso lembrar mais essa madrugada de infortúnio. Em 4 de outubro de 2021 não fiz anos. Renasci. Renasci para o Mundo e, sobretudo, renasci para mim. Aos cinquenta e quatro!

jpv


2 comentários

Renascimento

Gostava de saber
Que pensam
Teus olhos
Quando se fixam nos meus.
Queria saber
Se são
Tentações do diabo
Ou bênçãos de Deus.
Quando esse castanho
Me olha e me fita,
Não têm piedade, teus olhos,
Deste coração
Que se agita.
Os dias passam
E o sofrimento aumenta.
E esse olhar
Que se ausenta
Na distância
Faz vibrar meu corpo
Na inquietação e na ânsia
De sentir
O desenho da tua boca
Em meus lábios solitários.
Não, meu amor,
Não quero dar-te um beijo.
Quero cobrir-te de vários
E diversos suplícios
E carícias.
Quero desenhar
Nos teus olhos
Todas as possíveis malícias
Que uma paixão tem para dar.
E quero, por fim,
Renascer no teu olhar.

jpv