Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


9 comentários

Crónicas de Maledicência – O Linchamento da Copa

logo-copa-2014

Crónicas de Maledicência – O Linchamento da Copa

Eu nunca estive no Brasil. Não tenho qualquer conhecimento profundo do funcionamento quotidiano da sociedade brasileira nas suas diversas vertentes. Cultural, social, política e económica. Logo, não me assiste qualquer autoridade para escrever estas linhas que não seja a de um cidadão interessado naquilo que o rodeia. Nihil humanun alienum mihi est.

Acontece, entretanto, que os mais recentes acontecimentos de teor político-social me trazem preocupado. Porque o povo brasileiro me parece revoltado e em revolta, porque me parece desmandado, completamente desorientado, mais à procura de culpados do que de soluções, porque me parece estar a ser alvo de diversos tipos de manipulação e, finalmente, porque me parece que sofre e se vira contra si próprio.

Não sendo eu uma pessoa que atribua ao futebol uma importância extrema, nem lá perto, encaro-o como uma forma de diversão e tenho pelo jogo o interesse que se atribui a um espetáculo de entretenimento diversificado, também não ignoro tratar-se de um desporto que arrasta milhões de adeptos e assume a dimensão de um fenómeno cultural a que quase ninguém fica indiferente. Além do aspeto cultural, o futebol tem um peso significativo ao nível dos média, ao nivel industrial, comercial e, naturalmente, financeiro. E até do ponto de vista da imagem que se projeta de uma determinada nação. E isto acontece quer através das seleções, quer através dos clubes. Uma coisa é certa, trata-se de um fenómeno de dimensão global. Não ignorável, portanto.

O Brasil, por sua vez, diga-se e pense-se o que se quiser, é, por razões de ordem diversa, uma nação poderosíssima. É “só” o maior produtor mundial de hardware informático, tem cento e setenta milhões de habitantes e falantes da Língua Portuguesa, acolhe a floresta amazónica, justamente chamada de “Pulmão da Terra”, desenvolveu um poderio agrícola e industrial muito significativo, a sua produção cinematográfica e, em particular, a sua produção musical, chegam aos quatro cantos do Mundo, sendo incontornáveis, no âmbito da CPLP, autores como Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, Jorge Amado…

Este país tem símbolos, ícones e manifestações culturais que o marcam e o caracterizam e, mais do que tudo isso, fazem parte da sua identidade enquanto nação. Brasil é café, Brasil é samba e bossa nova, Brasil é Carnaval e Brasil é… futebol.

E ninguém impôs isso ao povo brasileiro. Foram os brasileiros, enquanto povo, que se afirmaram com essas características, que construíram e assumiram essas manifestações culturais, donde negá-las parece assumir contornos de uma macro-negação da sua própria identidade.

Ora, os brasileiros votam. E quando votaram, da última vez, quero acreditar que escolheram, em consciência, quem consideravam melhor para os governar. Isto não significa, tout court, que os eleitos façam um bom trabalho, ou façam o que prometeram, mas significa que têm legitimidade democrática para governar.

Junta-se a este raciocínio um outro fator. A grande nação brasileira está a atravessar graves problemas sociais e políticos. Altíssimos níveis de pobreza extrema, assimetrias financeiras muito acentuadas, o problema da marginalidade e da criminalidade, a falência do sistema público de saúde e sérias dificuldades em manter um sistema nacional de educação público e de qualidade. E há um outro, pelo que leio, pelo que vejo na televisão e na Internet, que é transversal a todos os outros e não só está na sua génese como constitui um sério obstáculo à sua solução: a corrupção.

Chegados aqui, olhando para a nação que o Brasil é, olhando para as fortíssimas marcas culturais que transporta, olhando para os graves problemas que atravessa, olhando para o universo faustoso que a organização da Copa 2014 comporta, estão criadas as condições para fazer do certame o bode expiatório de todos os problemas e insuficiências e promover o seu linchamento. Como escreveu Camões, tão amado no Brasil, “Mísera sorte, estranha condição”.

Como quase sempre acontece nestes casos, geram-se dicotomias e antagonias que dividem a população. Há os que são a favor da resolução dos problemas e, como tal, contra a realização do certame e há os que são a favor da Copa e a seguir pensa-se de novo nos problemas. Pois, eu penso que, quer um posicionamento, quer outro, são pouco ambiciosos. Na minha humilde, imperfeita e inabilitada visão, os brasileiros deveriam exigir aos seus governantes, nada mais, nada menos, que a realização da melhor Copa de sempre e a resolução dos problemas que assolam a nação. O Brasil tem potencial e gente para solucionar os problemas que enfrenta sem descaracterizar-se culturalmente. Atrevo-me a colocar, por ousadia, duas questões aos meus irmãos brasileiros. Primeira, os problemas existiam ou não existiam muito antes do Brasil assumir a organização da Copa 2014? Segunda, se lincharem a copa e suspenderem a sua realização, os problemas ficam resolvidos? Pois, como se diz por aqui, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

A solução dos problemas sociais tem de ser prioritária, mas não pode levar o país a negar a sua própria identidade nem aquilo que o povo chamou a si como sendo as suas manifestações culturais. Por essa ordem de ideias, a do linchamento da Copa, enquanto houver um problema social por resolver, não pode haver Carnaval, não pode haver um concerto de música, não pode haver uma peça de teatro e, em boa verdade, também não deveria haver festas de anos nem churrascos em família.

Assustam-me os problemas, mas assusta-me mais, e dói-me, assistir a uma nação virar-se contra si mesma, mutilar-se da sua cultura e da sua identidade e linchar-se na rua. O que é efetivamente necessário é ser exigente para com o corpo político, cobrar-lhe a restituição da paz social, da qualidade de vida, dos serviços públicos de qualidade, e, simultaneamente, cobrar-lhes a garantia das manifestações culturais que são intrínsecas ao Povo. o que é preciso, é acabar com a corrupção, com a fome, com a pobreza. Isso é que é preciso. Não é linchar a Copa!

Tenho dito!
jpv