Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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FRIO

De vez em quando,
Com a nitidez
Límpida de uma manhã de sol,
O teu rosto ressurge
Na minha mente
E revejo o sorriso cristalino
Daquela última despedida.
E escrevo outra vez sobre isso,
Como se, revisitando a dor,
Guardasse em mim,
Mais vivo,
O teu amor.
São assaltos.
A triste condição
De travar a batalha perdida
Entre a morte que foi
E o que sobra da vida.
Aqui,
Neste lugar onde me deixaste,
De mãos abertas
A sentir o calor das tuas,
Não há Diabo que condene,
Nem Deus que redima.
Há só esta neblina
No olhar vagabundo das ruas.
Órfão.
Já não de ti,
Mas da tua memória.
Dia sem luz,
Noite sem história.
Depois,
Com o mesmo sorriso
E a mesma alegria na face,
Partes e deixas-me conformado
Até que a ilusão da presença passe
E entre de novo
No corpo do menino abandonado.

Porque me revisitas, Mãe?
Porque me fazes sofrer
Com a tua presença
Se és ausência e vazio?
Onde não estás, faz frio.
E o frio está em todo o lado.
Não há sol capaz de aquecer
O peito de um menino abandonado.

jpv


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Memorando do 11 de Setembro

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Foi antes dos aviões. E não foi um ato de guerra. Foi um gesto de amor. De entrega. Foi uma comunhão funda cujas implicações não percebemos logo. Sim. Houve certa inconsciência e até isso foi belo. Foi em 11 de setembro de 1988 que casámos. Mas ia nesse verbo mais, muito mais, do que a festa e a igreja e os convidados… ia todo um projeto de vida.

Foi antes dos aviões. E não foi um ato de guerra. Não veio nos jornais porque os homens trazem as prioridades trocadas. Foi a maior de todas as obras, o mais fantástico de todos os feitos, o mais maravilhoso de todos os dias e momentos. Não foi, para nós, um dia de morte. Foi a mais genuína celebração de vida entre os homens. Em 11 de setembro de 1990 nasceu o nosso menino.

Ontem de manhã tomámos um tranquilo pequeno-almoço na Pérola. E tudo parecia mais harmonioso. Falámos com o menino feito homem que está lá longe, onde os homens falam com palavras impercetíveis e os invernos chegam mais cedo e mais frios. E vagueámos a manhã por Maputo, a cidade que agora acolhe os nossos 11 de setembro. E houve aquelas flores, gerberas, que tu tanto gostas. Almoçámos juntos e fomos trabalhar. E ao fim do dia, jantámos sob as enormes jacas num jardim oriental iluminado de luzes a parecerem velas. E, chegados a casa, estava eu com a chave na porta, prestes a rodá-la e tu disseste ao meu ouvido, Gosto tanto da tua companhia. E eu pensei que não era preciso mais do que isso e menos seria insuficiente. Acho que foi sempre a companhia que fazemos um ao outro. Acho que por isso mesmo temos suportado e superado as tormentas e temos chegado sempre a um dia em que reconhecemos o ouro que é essa companhia. Sabes, aqui para nós, que ninguém nos ouve, enquanto te deitavas, pensei para mim quantas pessoas haveria no mundo que ao cabo de 26 anos a viver comigo conseguissem dizer essa frase. Há por aí quem dissesse outras. Mas essa… esse ouro puro… é tão raro quanto valioso.

E agora dormitas a meu lado enquanto uma entrevista na rádio te embala o sono. E sabes que estou aqui. E sei que estás aí. E é isto tão pouco. E é este pouco tanto… um universo…

Foi antes dos aviões. O verdadeiro 11 de setembro é teu. É meu. É nosso. E é do nosso menino. E quando fui dormir, não tinha visto as reportagens, nem as teorias, nem as imagens, nem as histórias. Fui dormir a pensar num 11 de setembro sem aviões. Ou outro tão mais importante, tão mais fantástico. Um 11 de setembro de vida e amor e dádiva e, sobretudo… de companhia. Gosto tanto da tua companhia!

jpv