Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Crónicas de África – O Homem do Pau

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Crónicas de África – O Homem do Pau

Maputo, 3 de abril de 2015

Uma das irrevogáveis conclusões de quem se muda para o grande continente vermelho é que ‘África desformata-nos’. Tínhamos acabado de conversar sobre isto e não sabíamos ainda que dentro de momentos a nossa adaptabilidade seria de novo posta à prova.

O facto é que África tem uma força e um poder tremendo sobre as pessoas e obriga-as a tornarem-se mais fortes, mais adaptáveis e menos formatadas. Somos forçados a construir as nossas próprias soluções e sabemos que a única coisa absolutamente previsível é a imprevisibilidade.

Quisemos passar meia dúzia de dias junto ao mar, revisitar Vilankulos pareceu uma solução fantástica, sobretudo porque a escassos 30 minutos de barco fica a ilha de Magaruque e o seu recife de coral com milhares de espécies diferentes de peixes. Nadar ali é como entrar num gigantesco aquário de água quente. Ora, o nosso cão, Poloni, é companhia fundamental e por isso mesmo a escolha do alojamento teria de o incluir. Quando finalmente encontrámos um lodge de que gostávamos, dentro do nosso orçamento, e que anunciava ser ‘Pet friendly’, que é como quem diz, amigo dos animais, desconfiámos. Telefonámos. E do outro lado da linha a senhora confirmou, em tom entusiasmado, que podíamos levar o cãozinho, ela gostava muito e também tinha os seus. Ficámos satisfeitos. Pois, isto é África. Deveríamos ter feito mais perguntas. Entretanto, de entre a vasta oferta de quartos, quartinhos, quartões, casas, cabanas e chalets, reparámos que havia uma cuja descrição parecia muito confortável e até tinha dois chuveiros e uma cozinha. Não demos muita importância ao nome, ‘Payota’, porque nestes casos os nomes são simbólicos. Devíamos ter dado.

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A viagem, como sempre, foi fantástica. Como já aqui se escreveu, a estrada nacional 1, em Moçambique, está prenhe de vida. E, como tal, os 730km e as 11 horas de viagem levam-se bem. A primeira paragem foi em Xai-Xai, é uma cidade à saída de Maputo pois dista somente 200km da Capital. Parámos no ‘Pontinha’ e comemos uns deliciosos pregos no pão às 7 da manhã a conselho da Isa. Excelente conselho. Excelentes pregos. Pelo caminho fomos comprando fruta e quando estávamos a chegar ao destino, já percorridos alguns quilómetros em terra e areia, sim, que o Paraíso é maravilhoso, mas os acessos são tramados, e conversávamos sobre estarmos menos formatados e mais resistentes, a tal da resistência foi de novo invocada! À chegada ao lodge Dona Soraya, propriedade da própria Dona Soraya, uma senhora alta, muitíssimo empreendedora e determinada, indefetível contadora de histórias, com ascendência indiana, inglesa, espanhola e alemã, casada com o dinâmico e empreendedor Pieter, um suíço a viver em Moçambique há quase vinte anos, fomos recebidos por uma matilha de sete cães façanhudos, com ar de poucos amigos, rosnadela fácil e o pêlo a eriçar-se no lombo. Quando ela disse que também tinha CÃES, eu sabia que CÃES era plural, mas estava longe de imaginar tanto plural. Ora, o Poloni tem o seu feitio e não se ensaia nada para dar uma rosnadela feroz, mas estou convicto de que o meu cão não sabe contar, é que, até eu que fui para letras, percebi de imediato que eles eram muitos. E não acharam piada nenhuma ao caráter do novo amiguinho e fizeram-se a ele e vai de o morder até eu os conseguir afastar a todos. Mais tarde, ainda fiz uma nova tentativa de aproximação amigável e diplomática, mas nova saraivada de mordidelas, com o Poloni sempre a ajudar à festa com seu rosnanço grosso, fez com que Dona Soraya me desse uma lição. Uma lição e um pau. A lição foi eu não perder tempo a tentar fazer que eles ficassem amigos porque quando os animais não querem é porque não querem. E o pau foi para eu marcar território e mostrar quem manda. ‘E se for preciso dê-lhes com ele!” Não foi preciso. Assim que os sete façanhudos me viram de pau na mão, nunca mais se aproximaram de mim quando eu estava com o Poloni. Ficavam a olhá-lo de longe e a respeitar a minha autoridade que na verdade não era minha, era do pau. Mas há mais. Quando eu passava por eles sem o Poloni e sem o pau vinham abanar-me a cauda e lamber-me as mãos e até foram comigo à praia e guardaram-me as coisas enquanto fui ao mar. Assim, mais ou menos como se eu fosse um deus na terra. Ora, durante aquela semana, quem me via de pau na mão, via-me com um cão junto a mim e sete ao largo. Quem me via sem pau na mão, via-me a ser venerado por sete façanhudos e eriçados muito dóceis cãezinhos!

Ora, Soraya fala tudo. Português, inglês, francês, alemão e espanhol. Algures entre o português e o espanhol, com algum inglesamento, ela agarrou na palavra ‘palhota’ e converteu-a em ‘payota’. Palhota é uma casa de palha e foi isso que alugámos. Confortável, claro. Com os tais dois chuveiros e a cozinha que mal usámos e uma vista ultrajantemente bela a partir do jardim do lodge. Em todo o caso, é uma casa de palha. Ou seja, o contacto com a Mãe Natureza é mesmo muito próximo. Eu fiz amizade com um lagarto que dormia por cima da minha cama, no teto, e juro que não foi preciso ar condicionado porque o ventinho corria à vontade por entre a palha da palhota. Tudo aquilo foi uma imersão em padrões africanos a exigir adaptabilidade e a proporcionar umas férias genuínas de lume aceso onde eu, o Pieter e o Werner discutíamos política, finança, técnicas de acender o lume e resolvíamos os problemas do mundo enquanto grelhávamos uns bifes e umas salsichas de nome impronunciável. Foram uns dias muito bem passados e eu senti-me particularmente bem, assim como uma espécie de chefe da tribo. Afinal de contas quem tinha o pau era eu!

jpv