
Cronologia do Adeus
In memoriam Ana Paula Canotilho
17/07/1961 – 26/10/2019.
Quando o dia nasceu, ainda os outros dormiam ou se preparavam para acordar, já tu ouvias e cantarolavas “El pueblo unido jamás será vencido”. Mais tarde, falaste com a Ritinha e disseste-lhe “Tens de ouvir isto!” como se fosse uma urgência. Por mensagem, como sempre, perguntaste à Maria da Luz se ela estava acordada e ela estava acordada para ti. Sempre. E disseste-lhe para descer e irem tomar o pequeno almoço. “Hoje acordei bem!” E foste à luta do trabalho, defender e fazer aquilo em que acreditavas, com rigor, determinação, e uma incrível lucidez. E conquistaste e sofreste golpes, alguns desleais, e soubeste aguentá-los e seguir em frente colocando acima de tudo a justiça social, os direitos humanos, a inclusão, o serviço público…
Almoçámos juntos. Reclinavas-te de lado na cadeira, seguravas o cigarro na mão direita, na ponta dos dedos, inspiravas o fumo longamente e dizias aquilo que nos parecia difícil ver, mas para ti era claro porque vias mais além. Estavas particularmente alegre e feliz e contaste-nos como te casaste e como te divorciaste e te dedicaste a fazer dos filhos homens íntegros e independentes e livres e anunciaste-nos que eras feliz, tinhas encontrado o teu lugar no mundo. Este seria o último Natal em que irias a Portugal e aproveitarias para informar a família que ias deixar de ir a Portugal no Natal. Era precioso, o tempo, em Moçambique. Em África. Brincaste com a Cláudia:
– Que idade tens?
– 47.
– A idade perfeita para te divorciares. Eu divorciei-me aos 47. Cheguei ao pé dele e disse-lhe, “quero-me divorciar, não é nada contigo, é que estou farta de estar casada e quero mudar de vida.”
Mostraste-te preocupada com a exposição “Arte 21” e, antes de ir para uma tarde de trabalho intenso e mais o seguro do carro – detestavas burocracias e palavras-chave – deixaste marcado, para essa mesma noite, o nosso jantar mensal. A nossa noite da má língua onde petiscávamos e soltávamos os espíritos e a imaginação e fazíamos puzzles mentais. Ninguém negou. Como negar a tua presença? Às 20 no “Wine Lovers”. Atrasámo-nos todos. Mas chegámos. O facto é que andávamos exaustos com tantas tarefas, responsabilidades, projetos, documentos… Nesta profissão de férias longas e horários privilegiados, chega-se à exaustão. E luta-se por cada ideia.
Não sabemos porquê. Nunca saberemos. Talvez para enviar a uma amiga ausente, fizemos uma foto, uma selfie. Ficou bem. Com sorrisos e cumplicidade. Mais tarde, viria a retorcer-me de dor por saber que era a tua última foto em vida. Entre nós. Não comemos muito. Não bebemos muito. Nem foi dos dias em que a conversa fosse mais profícua e sumarenta. Estávamos cansados, concordámos. Mas foram, como sempre, momentos interessantes, com análises e conjeturas fabulosas, a mexer as peças do puzzle imaginário e a discorrer o que nos apetecesse sem regras nem limites. O exercício intelectual da conversa, a manipulação sábia do raciocínio. E a política. E era exímia nisso, destacavas-te de todos os outros. Foi bom. Foi o fim. Terminámos às 23 e enquanto nos despedíamos obrigaste-nos a estarmos na manhã seguinte na Ponta do Ouro. “Saímos às 7!” Como eu hesitasse, disseste-me para não ser velho. Ficou acertado para as 7h. Até combinámos onde íamos estacionar os carros. Separámo-nos às 23:10. Não poderíamos imaginar, nesse preciso instante de sintonia e camaradagem, que nos reuniríamos daí a dez minutos contigo já em grande dificuldade. Puta de vida!
Segui para casa devagar. Ainda não tinha rolado dez minutos pela cidade semideserta quando a mensagem da Maria da Luz tilintou no telemóvel: “Volta já para trás, A Ana Paula está a sentir-se mal!”. Quando cheguei ao pé de ti, tinhas vomitado e tinhas estado semi-inconsciente e teimavas que estavas bem e querias ir para casa. Sabia que não valia a pena teimar. Tu odiavas hospitais. Disse-te que te levava para casa, mas tinhas de caminhar até ao carro. Não deste o primeiro passo. As tuas pernas não te seguraram. Peguei-te ao colo, meti-te no carro e guiei que nem um louco por sinais vermelhos e outros episódios. A maria da Luz ia chamando por ti. Às tantas não respondias, ela enervou-se e falou-te mais alto, “Paula, fala comigo!” e tu respondeste. No hospital, deixei o carro a trabalhar e levei-te ao colo até à cama onde me disseram para te colocar. Veio o tempo da primeira espera ansiosa. Estávamos incrédulos. Desmultiplicámo-nos em contactos e esforços. Era preciso informar o teu filho mais velho, entre outras e tantas coisas. Um médico simpático e diligente veio dizer-nos que fora uma baixa repentina de tensão, mas era só isso. O ECG estava normal. Por precaução, ficarias em observação nos noventa minutos seguintes. Fomos ver-te. Fomos estar contigo. Teimaste que estavas bem, que querias ir para casa, que na manhã seguinte estavas na Ponta do Ouro, sem falta. Como tínhamos uma hora e meia antes da reavaliação, fomos tratar de recuperar o teu carro que ficara abandonado no meio da cidade. Não chegámos a fazer nada com o carro. Dez minutos depois, ligaram à Luz e disseram-nos que tínhamos de nos apresentar no hospital com a maior urgência. Voámos para lá. Três ou quatro minutos depois, o médico informou-nos que tiveras uma paragem cardíaca e foras reanimada com recurso a um desfibrilhador. Um segundo ECG mostrou que se tratara de um enfarte. A situação era muito grave. Estavas na unidade de cuidados intensivos. Era preciso autorizar um cateterismo para te desobstruir a artéria. Sem ele sucumbirias. Trouxeram-nos umas roupas e um calçado esterilizados para irmos junto de ti. A Mary não aguentou a perspetiva de ver-te assim. Ela queria, mas o corpo negou-se. Teve uma crise biliar, intestinal e sei lá mais o quê e correu para a casa de banho. O amor da alma por vezes manifesta-se no corpo. Fiquei só na antecâmara da unidade de cuidados intensivos. Deixava-te entregue aos médicos ou entrava sozinho. Nem hesitei, não foi questão. Entrei.
Estavas consciente. No meio do emaranhado de números que piscava por cima de ti, percebi que a pulsação estava a 24. O equipamento era moderníssimo e a equipa muito atenciosa. Demos as mãos e ficámos de mãos dadas enquanto nos olhávamos e trocámos palavras que nunca mais esquecerei. As tuas últimas e, de certa forma, as minhas últimas, também.
– Mas, afinal, o que é que eu tive?
Não fui capaz de dizer a palavra “enfarte”.
– Tiveste uma quebra de tensão. A tensão desceu tanto que tiveste uma paragem cardíaca. Reanimaram-te. Vais ficar bem.
– Quanto tempo vou ficar aqui?
– Um dia ou dois.
– Tenho de ir trabalhar.
– Não. Quando saíres daqui, vais fazer uma pausa, vais descansar um mês e só depois voltas ao trabalho.
Um silêncio longo veio colocar-se entre nós. Estavas a pensar. A pensar nas próximas palavras.
– Não me posso irritar tanto.
– Isso. O trabalho não é tudo.
– Porque é que estou aqui?
– Vais fazer um exame.
– Que exame?
– Um cateterismo.
Fizeste um silêncio eterno. O teu olhar era de apreensão. O nome do exame assustou-te, mas au não podia mentir-te. Um a pessoa tem o direito de saber as batalhas que a esperam. Apertaste a minha mão com muita força, durante muito tempo e não tiraste os teus olhos dos meus. Viraste a cara de lado como que oferecendo a face a um beijo. Estranhei. Nunca foste muito de beijos. Dei-te um beijo na face. Devagarinho. Fiz-te uma festinha para sentires a minha presença, o meu carinho, a minha força. Procurava, aflito, palavras que te distraíssem da preocupação. Lembrei-me, de repente, que, quando eu tinha dúvidas ou hesitações nas minhas batalhas, tu costumavas dizer-me, como quem ordena, “Tu és de esquerda e a esquerda não quebra!”. Apertei-te ainda mais a mão, reuni toda a convicção de que fui capaz e disse:
– Tu és de esquerda e a esquerda não quebra!
O teu rosto abriu-se num sorriso, o último que te vi.
– Espero por ti.
E levaram-te. Não voltarias. Não voltaste.
– O senhor tem de assinar isto.
O médico não começava sem a merda da assinatura. Nem li bem o papel, tu precisavas do tempo. Percebi que, se alguma coisa corresse mal, os gajos estavam safos e eu é que me fodia. Nem pestanejei. Ao cabo de dezasseis anos a travarmos lutas juntos, tu merecias isso e muito mais. Tudo.
Soube mais tarde que conseguiram fazer tudo o que queriam, mas tu não conseguiste ficar entre nós. Três paragens cardíacas durante o exame levaram-te para longe de nós,. Ainda fintaste a morte duas vezes. À terceira, não resististe.
Quando me vieram dizer que tinhas falecido, faltou-me o chão, fiquei incrédulo e desesperado. Não tenho um único arrependimento, nem a mais leve sombra de culpa, só não queria estar ligado aos teus atos finais porque ainda te queria aqui. Mas, por outro lado, partiste num dia vivido entre camaradas e amigos cúmplices, foste feliz e irreverente e, no fim, como tantas vezes fizeste na vida, foste surpreendente e inesperada e fizeste o que quiseste e não o que se esperava que fizesses. Veio uma onda de revolta e depois de culpa e depois de remorso e depois comecei a pensar em ti e no nosso dia e consegui aceitar em mim dois sentimentos contraditórios. Um desespero profundo por ter-te perdido, por não ter conseguido segurar-te deste lado, e uma alegria serena por saber que eu e a Maria da Luz te proporcionámos, antes de partires, um dia entre amigos, os teus amigos, recheado de boa disposição e conversa estimulante como tu tanto gostavas.
Fica o teu legado de ideais, de dignidade, de feminismo, de luta política e social, de solidariedade, de estudo, de lucidez. Fica isso e fica uma constelação de momentos partilhados, de gargalhadas, de sorrisos, de preocupações, de injustiças e problemas. Não eras indiferente a nada e, talvez por isso, nada nem ninguém ficava indiferente a ti.
Caminhámos juntos muito trilhos difíceis e outros tantos prazerosos e caminhámos juntos este último dia, essas últimas horas, essa última foto, essa última mão apertada, esse último olhar… e sei agora que não há lugar a outros sentimentos que não sejam o orgulho e a honra de me teres escolhido para o círculo restrito dos teus amigos verdadeiros.
Maputo, 29 de outubro de 2019.
João Paulo Videira