Black Bird
Uma ave negra
Cruzou o céu,
Pousou numa rocha
E deixou um véu.
O véu, negro como a ave,
Cingia uma rosa encarnada.
E na rosa brilhava
Uma singela gota de água,
Onde refletida se via no céu
Uma ave negra
Com um véu.
jpv
Uma ave negra
Cruzou o céu,
Pousou numa rocha
E deixou um véu.
O véu, negro como a ave,
Cingia uma rosa encarnada.
E na rosa brilhava
Uma singela gota de água,
Onde refletida se via no céu
Uma ave negra
Com um véu.
jpv

O gume da faca
Entra lentamente na carne
E desaparece.
No movimento inverso
Acontece
Ver-se a lâmina
De novo.
E esperas.
Que entre.
Que saia.
Que respire.
E estranhas não estares morto.
São e consciente,
perfurado
E impotente,
Esvais-te em sangue quente.
E vês.
E sentes toda a dor.
Primeiro,
Um calor.
E um frio gélido,
Depois.
A luz fenece
Devagar,
Até que chegas a reparar
Que é a tua luz
Que se apaga.
Um manto de breu
Lentamente
Te afaga.
Uma memória escorres,
Um suspiro final
E morres.
No momento trágico
E fatal
Ainda consegues ver
Que não é difícil morrer.
Difícil é aceitar a morte
Estando vivo.
Encarcerado num corpo perdido
Que, exangue, espera!
Já não há sonho,
Nem desejo,
Nem quimera.
Só um respirar
Absurdo e inútil
A antecipar o fim
De uma vida fútil.
Como vãs foram
As vidas todas.
Ser
É nada.
É uma noite
Sem alvorada.
Um mar
Sem rebentação.
Um homem
Sem pulso.
Um amor
Sem emoção.
Ser
É um caminhar ao contrário.
Uma dor
Sem Calvário.
Uma cruz
Sem Cristo.
Ser é um misto
De desistir
Antes de querer,
De viver
Só para morrer,
E querer mais.
Porque queremos?
E mais, ainda por cima,
Se a vida morrerá menina
Sem glória nem devoção,
Sem música
Para a canção…
Nem letra!
A vida
É uma puta sem cliente.
Um filho
De pai ausente.
Um deus ignaro
A guiar o crente.
Pobre crente!
Antes fosse ateu,
Por fé,
Só o breu.
Por reza,
Só o impropério.
Por certeza,
Só o mistério,
A fortuna
De ter coisa nenhuma,
A luz brilhante
Da solidão.
Um pedaço de terra
Sob os pés,
Uma faca na mão,
E outra vez
O gume
Queimando a alma
Como lume.
Da terra que lavras,
Regada ou enxuta,
Não brotam palavras
De mente sã e arguta.
Tu és só o filho da puta
Sem cliente.
O teu pai é o acaso
E uma nota estendida.
Para além disto,
Não há mais vida,
Não há mais existência
Suportada por douta mente
E esperta ciência.
Eu pecador me confesso
Porque sei e professo
Palavras de nada
E coisa nenhuma.
Verdade há só uma,
A fogo no peito gravada,
Não há vida, nem alma, nem chama:
A única verdade é nada!
jpv

Primeiro,
Insinua-se como uma promessa,
Desenha a tentação.
E lentamente começa
A germinar a ideia, a corrupção.
Vinha, efémero e fugaz,
Adocicar-me a vida,
Tornar-me mais capaz
De encontrar a terra prometida.
E confiei nele
Porque era eu.
O seu sentir
Era meu.
E assaltou-me a consciência,
Tomou-me a convicção.
Roubou-me a moral e os valores
Só porque lhe dei a mão.
Mais tarde,
Queimado o tempo
No tempo que arde,
Vivida a vida
Que a vida consome,
Olhei para dentro de mim
E vi outro homem.
E esse homem não era eu.
Era um homem que tinha tudo de meu,
Mais a abjeta verdade
De ter entrado
Pela porta da cumplicidade
E corrompido o jovem menino,
O homem erguido.
É o pior dos roubos,
O mais vil dos assaltos.
É o mais eficaz
E o mais traiçoeiro
Dos ladrões.
Espera, paciente, o momento
De roubar-te as convicções,
E leva-te a vida,
O Ser e a Fé.
Um homem olha à volta
E, súbito,
Já não sabe quem é.
É trágico
E instila-me na alma
O breu.
Terem-me roubado
A essência
E o ladrão ter sido eu.
jpv

Ele está sentado de frente para o computador, a secretária está desarrumada, ou melhor, há muito que a tentativa de a arrumar deixou de ser viável. Ele olha o monitor com atenção e vai fazendo pequenos e sucessivos cliques na folha de cálculo. Não está neste mundo. Nem se apercebe de que os três colegas da sala já chegaram, já se levantaram para vários cafés e voltaram a chegar. Coabitam um espaço amplo e cada um deles tem umas paredes portáteis à volta da secretária sobre as quais costumam espreitar. É uma forma de ter privacidade não a tendo. Trabalham com ele um colega e duas colegas. Uma delas, a mais introvertida, moça sossegada e envergonhada, de não dirigir a palavra a ninguém a menos que lha peçam, de ruborizar à menor brincadeira, chegou-se ao pé dele, por trás, colocou-lhe as mãos nos ombros e iniciou uma massagem. Ele começou por sobressaltar-se, mas de imediato lhe reconheceu o perfume e o odor da pele. Deixou-se ficar. Mas soube que algo diferente estava para acontecer. Ela não era aquele tipo de pessoa, a rapariga que massaja os ombros dos colegas. Nos próximos minutos, ele teria uma confirmação e uma surpresa. A confirmação de que seria um dia diferente. A surpresa total em relação a uma mulher que ele não sabia que habitava na mente e no corpo daquela colega. Ela continuou a massagem por uns segundos. Depois, deixou escorregar uma mão pelo corpo dele e só a parou entre as pernas. Segurou com firmeza o que havia para segurar e perguntou:
– Vamos fazer meninos?
—————
Nem conseguiu reagir. Não sabia como. Foi conservador:
– Sabes que sou casado…
– A maioria dos homens que me satisfez era-no!
– E porquê eu?
– Porque passei a vida a ouvir dizer que a dos pretos é maior e nunca pude confirmar pessoalmente.
– Uma correção e um mito. Correção: talvez queiras dizer negros. Mito: Não a maior. Talvez nós sejamos mais generosos, não sei, nunca comparei, mas, em todo o caso, não achas que te estás a precipitar?
– Em que mundo vives tu? Trabalhamos juntos há dois anos e nunca te tinha… feito uma massagem.
– Não estava a falar do tempo que passámos no escritório…
– Sim, pá, eu sei do que estavas a falar… a abordagem assustou o menino. Olha, desculpa e esquece que aconteceu…
– OK… mas, diz-me, tu tinhas ao menos um plano?
– Tás parvo? A vida está cheia de grelhas e mapas e exceis como esse que tens na frente… ia só seguir o curso natural do desejo e improvisar.
E quando percebera que era tempo de retirar, a vida trouxe-lhe, a ela, uma surpresa. Já se afastava dele e ouviu a sua voz quente e modulada:
– Almoçamos?
– Almoçamos!
—————
O almoço foi tenso. Percebia-se, entre ambos, que não era o almoço que interessava, era aquilo em que ele poderia resultar. Percebia-se a antecipação nos seus olhares, o peso do silêncio e a incerteza nas palavras proferidas. Era um homem alto, face serena e um olhar tranquilo. Trazia na pele o tom dos antepassados africanos, deslocava-se em passadas largas e determinadas. Ela, por sua vez, era alva, ruiva, com os braços fininhos como varas, o olhar tímido e simultaneamente ávido. Os lábios finos, bem desenhados, num rosto elegante. Fazia gestos pequenos e pressurosos. Corava com facilidade e tinha uma voz quase aguda que contrastava com a gravidade do tom dele. Ela dava-lhe pouco mais do que pela cintura e, contudo, lado a lado, ficam desiguais mas harmoniosos.
– Vamos ali ao Centro Comercial. Há lá uma loja de roupas onde está uma peça que não posso deixar escapar…
– Vocês, mulheres! Não quero parecer machista, mas não era melhor descansares na hora de almoço? Tens mesmo de ir às compras?
– Não são compras. É compra. Só uma.
Caminharam. Ela tinha de dar dois passos por cada passada dele e faziam um efeito esquisito. Ele ia tranquilo, ela ia quase a correr, mas mantinham-se lado a lado. Entraram. Passaram a secção dos perfumes, subiram as escadas rolantes e, no piso de roupa para senhora, ela pegou numa peça perfeitamente ao acaso, quase não olhou para ela, agarrou-lhe numa mão, Anda, vamos, e entrou num provador, puxou-o também para dentro, fechou a porta e pendurou-se-lhe no pescoço.
—————
– Tu, hoje, estás irreconhecível… apressada, enérgica, resoluta… nem pareces tu!
– Como posso estar irreconhecível se não me conheces?
– Safada!
– Safado!
E beijou-o longamente esticada para ele que se curvou para lhe devolver o beijo. E estiveram entregando-se àquela inusitada carícia enquanto a emoção cresceu, as libidos despertaram todas, o entusiasmo manifestou-se e as mãos dela voaram para o cinto dele, o fecho e para o botão das calças até estas caírem a seus pés. E as mãos dele procuraram-na por baixo do vestidinho de alças, curto, que trazia e viu-a toda de olhos fechados e ela deixou-se ver enquanto o consumia, até que decidiu oferecer-lhe um outro tipo de beijo. Desceu pelo corpo dele até ficar ajoelhada à sua frente. Segurou-lhos com as mãos e acariciou-os e beijou-os e percorreu depois o corpo do sexo dele com os lábios quentes e a língua queimando e quando lho tomou na boca, já ele estava enlouquecendo. Enlouquecido. E fazia movimentos de vai-e-vem muito lentos para que ele sentisse os seus lábios cercando-lhe o sexo, arrastando-se nele. Ele rendeu-se. Encostou-se para trás, à parede do provador, segurou-lhe as faces com as mãos e acompanhou-a nos movimentos como que lhe amparando a cabeça. Ela sentiu-o descontrolar-se, o corpo dele entrando em frémito e convulsão, o momento dos momentos aproximava-se e estava ele no auge do prazer, esperando a qualquer momento a explosão das explosões, quando ela o soltou, levantou-se e disse:
– Huuummm, quase perfeito!
– Espera, onde vais? Não vais interromper isto agora! Não me vais deixar aqui, assim!
– Vou, vou. Fica para a outra…
– Qual outra?
– A outra vez!
jpv

Rasga a pele.
Rasga o desejo.
Rasga a fuga.
Rasga a palavra.
Rasga o gesto.
Rasga o rasgão.
E faz do corte
A matéria da união.
Rasga a noite.
Rasga o dia.
Na covardia
De um amanhecer por rasgar
Jaz um homem
Por realizar.
Só incompleto
Estás completo.
Só rasgando o teto
Vês a constelação.
Rasga o peito.
Rasga a mão.
E rasga o olhar,
Que há nessa imperfeição
A única perfeição
A contemplar.
Rasga e divide.
Rasga até doer,
Que não sabe se viveu
Um homem que não rasgou
Até morrer.
E a morte rasga
A existência dos vivos,
Que, dos mortos,
A essência
Rasgada está.
Não adies o rasgar,
Rasga já!
Trago uma bandeira
Rasgada
Ondulando ao vento.
Tem um rasgo de cor,
Um estilhaço de momento,
Uma mensagem de dor!
Rasguei-a em tiras
E embrulhei meu coração atormentado.
Entreguei-o à letra
De um fado rasgado.
Rasgo o mar
Num bote pequeno.
Rasgo a sorte,
Rasgo o veneno,
E dou à morte
Meu rasgar sereno.
Já exangue,
Por fim,
Mergulhado no sangue
Rasgado de mim,
Rasgo a fronteira,
Rasgo a eternidade.
Na vida,
Como na morte,
Só se não rasga
A saudade!
jpv
O mar cabe-me num bolso
E enche-me a alma
De ilusão.
Tenho meninos navegantes
No coração.
É tanto, o mar.
E tão pouco.
Não o consigo navegar todo
E preciso navegá-lo todo.
É tanta a ilusão
Que trago na ideia
Que cresce e vive
E morre na areia
A olhar a imensidão
Do pequeno mar
Que trago na mão
Que está no bolso
Onde guardei o mar
Depois de o navegar.
Antes de o navegar.
É tanto
E tão pouco,
O mar.
jpv
Crónicas de Maledicência – A Itália mostra como se joga à bola

Entraram no comboio a conversar. Não prestei atenção, mas julgo que falavam de trabalho. A colega tinha um ar simpático e doce. Olhos de amêndoa a destacaram-se da blusa branca e das calças de ganga. Mas foi ela que me chamou a atenção. Há muito tempo que não via uma pessoa tão confortável consigo mesma. Não havia lugares sentados e por isso seguiram de pé até ao Oriente. Olhei-as de relance. Colhi alguns pormenores, não fosse precisar deles para escrevê-las. Ainda bem que o fiz. Viria a desenhá-las nestas linhas.
Ela trazia uma sandálias de cabedal, pretas. Umas calças muito justas, acetinadas, também pretas, por baixo de um vestido a dar-lhe um pouco abaixo do joelho, ainda preto, com uma renda nas costas, junto à nuca. É engraçado o facto de estar vestida num tom tão soturno e, contudo, ter constituído uma aragem de leveza e boa disposição pelo comboio dentro como quem o desinfeta do cinzento matinal e sonolento que todos os dias se arrasta no Regional das 7:47. Tinha duas estrelas tatuadas atrás da orelha onde figuravam brincos artesanais e uma terceira estrela, um pouco maior, num cotovelo. O do mesmo braço cujo pulso tinha um nome masculino tatuado na sua singeleza feminina. Era, sem margem para dúvida nem necessidade de segundo olhar, uma presença alternativa em termos de opções estéticas.
O mais interessante, contudo, aconteceu ao longo da conversa que estava a ter com a colega do olhar doce. Explodiam na carruagem gargalhadas cristalinas a cortar o silêncio e a encher o espaço de uma sonoridade descomplexada e divertida. Era um riso com uma musicalidade alegre, a despertar-nos a todos para a manhã e a libertar-nos das crises e dos ronaldos e das barras da noite anterior. Para algumas pessoas, reparei pelos olhares, aquela risada a cortar a monotonia cinzenta da carruagem era excessiva e incómoda. Para mim não. Era genuína. Era mais do que momentânea. Percebia-se que fazia parte do seu caráter. Eu gosto destas pessoas que destoam, que nos desinquietam a alma e nos acordam o espírito. Gostei sobretudo da harmonia entre elas. A explosão e a serenidade. O vigor e a doçura. Não faz mal nenhum fazer uma viagem comum e igual às outras todas. Mas sabe muito melhor quando se encontra uma alma livre e confortável consigo mesma, ajustada e adaptada à sua existência e à sua personalidade, resolvida e capaz de rir à gargalhada perante a monotonia previsível da vida.
jpv
"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."
A esperança pra quem busca pequeno e grande detalhe do criador. Shaloom....
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