Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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ErotiKa – O Beato

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jpv
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ErotiKa – O Beato

Sua mulher, Maria do Amparo, costumava contar em surdina à mãe que ele sempre a procurara pouco na cama para as funções do prazer. Após o casamento, com alguma frequência, era lá uma ou duas vezes por mês, costumava ajoelhar-se junto à cama com o terço entre as mãos em posição de oração, purificava-se pelas palavras dirigidas ao Senhor e depois suava e urrava em cima dela durante três eternos minutos. Ela não chegava a saber se gostava ou não. Aquilo era um fogo fátuo, um lume ardente, mas brevemente extinto em suor. Sempre sob os lençóis. Sempre de luz apagada. E ela não estranhara uma coisa nem outra pois que em termos “daquilo” a experiência que tinha era tanta como nenhuma. Mas sempre perguntava à mãe se era normal aquela ausência dele na cama dela. E a mãe, em reação surpreendente, lhe foi dizendo, É uma bênção, minha filha, é uma bênção, não dar uma dessas ao teu pai é que é pena. E como Maria do Amparo quisesse desconfiar daquela falta de fogo, a mãe rematou contudente:
-Ele costuma faltar ao trabalho?
-Não
-Ele falta-te com alguma coisa em casa?
-Não.
-Bebe até cair para o lado?
-Não.
-Bate-te?
-Não.
-Então agradece ao Senhor a sorte que tiveste.
E com aquela se ficou e não tocou mais no assunto. E veio o primeiro filho, uma menina, por sinal, e pensou ela que ele se entusiasmaria com o facto, mas o certo é que o seu fervor religioso aumentou, a moral tornou-se mais rígida por via do exemplo que era necessário constituir para a criança e as visitas na cama, já de si escassas, tornaram-se quase inexistentes. Foi isto há dezanove anos completos. E são dezanove anos que a menina faz esta semana. Na altura, dois anos volvidos, três ou quatro cópulas de pouco investimento e, mesmo assim, quis o Senhor que duma delas nascesse segundo rebento. Um rapaz. E, indicou ele, que a sua função enquanto casal estava cumprida no que dizia respeito à procriação. Existiriam agora para os filhos, para os educar no respeito e no temor a Deus, com vida austera de bens mas rica de orações. E se a ela lhe acometesse alguma vontade da carne, que rezasse um Pai Nosso e duas Avé Marias e tomasse um duche frio que a carne, por fraca ser, haveria de ceder. Que se dedicasse ao croché ou visse televisão e orasse, orasse muito pela bênção de ter uma família bonita e sem faltas de maior. E ela, sem outra solução nem amparo além do que tinha no nome, resignou-se.

Jacinto Bento, mais tarde conhecido como o beato era um homem atarracado e musculado com o cabelo ruivo e um farto bigode no meio da cara. Andava regularmente com uma bibliazinha na mão e um caderninho preto para tomar notas. Cresceu num ambiente doméstico conturbado. O pai estava dias, semanas inteiras sem vir a casa e quando vinha trazia muitas falas e poucas novidades. Podre de bêbado procurava uma cama para dormir, uma mulher para plantar um filho mais e muita sorte tinha ela se ele não lhe exigisse as economias que entretanto juntara. Às vezes, o vinho dava-lhe para a violência e a mãe dizia à rebanhada de filhos para fugirem e eles desarvoravam de casa. Ora, Jacinto, o mais novito, ficava. Ela tinha-lhe dado instruções para se esconder dentro de uma mala de guardar mantas e levar com ele a bíblia e rezar aos santinhos que o protegessem. E quando o pai saía de novo ela mostrava-lhe os postalinhos com os santinhos que o tinham protegido e que o senhor prior distribuía todas as Páscoas à saída da missa. E o rapaz enfiou-se na igreja e na sacristia e nunca mais de lá saiu. Foi à catequese, fez a primeira comunhão e o Crisma, foi acólito e chegou a ministro da fé. Sentia-se um servo digno do Senhor quando ajudava à distribuição da hóstia na missa dominical. O prior faleceu, veio outro e foi Jacinto que lhe deu a conhecer o rebanho que ele haveria de apascentar. Os mais virtuosos, os cumpridores, os ritualistas e os ausentes. E contava-lhe as histórias deles no espaço circunscrito da vila. Não se estranhou, por isso, quando o senhor prior delegou em Jacinto Bento a organização das procissões, do coro da igreja, e até a própria agenda do padre.
-Ó Jacinto, se calhar estou a pedir-te de mais… tu tens o teu trabalho e a tua família…
-É com prazer que ajudo, senhor prior, com prazer e devoção. E a minha família, os sacrifícios que faz por mim, fá-los por Ele também.
E lançava os olhos à cruz onde Cristo escorria sangue de braços abertos. Jacinto atendia à missa de domingo e, durante a semana, todos os dias, pelas sete da tarde, ajudava à missa vespertina. Depois, seguia para casa e jantava com a família. O ritual era certinho e sem falhas, exceto à quinta feira, dia em que ficava noite dentro, com o senhor prior a planear os muitos serviços que a paróquia tinha de prestar aos seus fiéis. Quem havia a batizar, quem havia a casar, quando se ia ler o evangelho segundo São Lucas, quando se lia um excerto da epístola de São Paulo aos coríntios, quais os temas do sermão, quando e como realizar as procissões e como orientar os serviços da catequese e as festas de Nossa Senhora da Piedade, padroeira local. Naturalmente que, com tantas e tão grandes responsabilidades, a sua família teve de constituir sempre exemplo ímpar de devoção e fervor religioso. E por isso comparecia na igreja todos os domingos, sem falhar um que fosse, e orava-se às refeições  e colaborava-se nos eventos religiosos promovidos pela paróquia. E havia um rigor extremado na conduta que lhes era exigida. Os seus filhos não diziam um palavrão, citavam a bíblia, a rapariga estava proibida de conhecer rapazes antes do casamentos e se um dia quisesse namorar haveria de apresentar o pretendente ao pai que indagaria da sua fé e devoção e o rapaz estava proibido de tocar-se e se o desejo apertasse, tinha encomendadas orações e estavam prometidos castigos e infernos aos que prevaricassem. Ela deserdada seria se conhecesse homem antes do tempo e sem aprovação. E ele sofreria na carne as punições que a disciplina e o respeito exigiam.

O que mais impressionava Aparecida Bento, aos dezanove anos, era nunca ter visto um gesto de afeto entre os pais, um beijo, uma carícia, nada… uma secura emocional, uma terra árida e infértil. Chegava a ser agressivo. E, contudo, todo um respeito, toda uma aparência. E a igreja sempre por perto. O senhor prior isto, o senhor prior aquilo, a missa vai ser bonita, a missa foi bonita.  Esta manhã, Jacinto Bento, saiu um pouco apressado. Ia à frente, bíblia na mão, caderninho preto, calças de fazenda, camisa e uma camisola de malha. Aparecida ia atrás dele. Deslizou um papel do caderninho e caiu ao chão sem o pai ver. Era uma receita. Aparecida apanhou-a e leu por instinto. E quando leu, estremeceu como nunca se lembrara de ter estremecido antes. Só tinha um medicamento inscrito: viagra. Dobrou o papel num repente e chamou:
-Papá…
-Sim, minha filha.
-Deixaste cair isto.
-Obrigado.
Recolheu o papel e foi à sua vida.
Aparecida andou em transe durante uns dias. Se não havia afetos, para que queria ele um medicamento daqueles?  Investigou na Internet o propósito do medicamento, mas só parecia ter um, fez perguntas indiretas à mãe sobre a vida afetuosa dos dois, mas foi pesca sem pescado. Não havia nada nem ninguém a que pudesse recorrer. Era impensável falar com o pai. Cair-lhe-ia, literalmente, o Carmo e a Trindade em cima. Sofreria retaliações só pela ousadia e pensou que o melhor seria esquecer o sucedido. Provavelmente era para outra pessoa. Acontece que, quando a inquietude entra no espírito é difícil de serenar. Decidiu segui-lo. Nos primeiros dias, pela manhã, até ao trabalho. Nada. O mesmo Jacinto de sempre. Depois, ao final da tarde, do trabalho para casa. Nada. O mesmo Jacinto de sempre. De casa para a igreja. Foi à segunda, nada. Foi à terça, nada. À quarta, nada. À quinta, nada, à sexta, nada. E estava já há várias semanas nisto quando resolveu esperar por ele depois da missa das sete a que ia com religiosa frequência quotidiana. Saía de casa depois dele e esperava por ele do outro lado da rua num banco de jardim, enfiada em camisolas e casacos. A primeira vez que foi, sofreu um percalço. Para o seguir teve de ir atrás dele o que fez com que o pai entrasse em casa primeiro. Breve daria pela sua falta porque, assim que chegava, queria cumprimentar toda a família. Correu para a porta, enfiou a chave e, naquele momento em que ele chegava à cozinha e saudava a mãe, Boas noites, Boas noites, respondia ela, Aparecida deslocou-se como se viesse do seu quarto. Na terça já não foi. O risco era demasiado. Nessa quinta feira, contudo, por andar desperta para os movimentos de seu pai Jacinto, Aparecida que já costumava estar deitada quando ele chegava, esperou por ele com a mãe, na sala de estar, e reparou em ligeira diferença no seu ritual de chegada. Em vez de dirigir-se, de imediato, para a sala de estar onde sabia que encontraria a senhora sua esposa a fim de a saudar, foi à casa de banho primeiro. Aparecida não conseguiu reprimir a ideia que lhe veio à mente, Custe o que custar tenho de saber de onde vem ele à quinta feira. Nova quinta feira se apresentou no calendário. E Aparecida seguiu-o. Não entrou na igreja. Esperou no banco de jardim do outro lado da rua. E viu as pessoas saírem da casa do Senhor no final do serviço religioso e viu a porta fechar-se. Nas traseiras da igreja havia uma janela alta protegida por grades trabalhadas, tinha um parapeito inclinado para fora e por dentro tinha a sacristia. Aparecida não lhe chegava. Olhou em volta. Era noite. Havia pouca luz. Só a que sobrava da iluminação de rua. Procurou algo que lhe desse altura. Um bloco de cimento e um pedregulho era tudo o que havia por perto. Colocou o bloco de cimento por baixo da janela e o pedregulho em cima dele. Subiu para cima do conjunto de equilíbrio precário. Não chegava à janela, mas podia tentar deitar as mãos às grades com um impulso. Respirou fundo saltou e agarrou uma grade de ferro com a mão direita, depois a esquerda, os pés ajudaram a trepar, ergueu-se, ao dobrar os braços conseguiu chegar com a face ao vidro da janela procurando respostas. Não as encontrou. À luz amarelecida de um candeeiro antigo, Jacinto Bento e o padre jantavam, sentados à mesa, e conversavam.  Era uma sala pequena. Uma mesa ao centro de madeira muito escura, um aparador com umas gavetinhas e um espelho por cima e dois cabides de pé com paramentos sobre eles em dois dos cantos. Faltou-lhe a força, esticou os braços lentamente e escorregou pela parede tateando com os pés à procura do pedregulho em cima do bloco. Encontrou-os. Desceu. Sentou-se no chão olhando a janela e a luz amarela projetada na parede e sentiu-se ridícula. O seu pai era um bloco granítico de virtude, um homem impenetrável. Havia sido uma parvoíce admitir a hipótese de o encontrar em falta. O mais certo era ter-se oferecido para comprar os comprimidos a alguém que precisava deles, mas não tinha a coragem suficiente para os comprar. Preconceitos. Feitios. De certa forma, preferia que não tivesse havido qualquer surpresa. Por momentos, imaginara encontrá-lo em encontros furtivos com uma beata da paróquia, expressando com ela o que não revelava à mulher, fingindo que os encontros com o prior eram demorados, mas escapando-se deles a coberto da noite para se entregar nos braços de outra, alguma que lhe despertasse a libido como a mãe parecia não ser capaz. Ia levantar-se para se ir embora, estava já limpando as mãos à ganga das calças e viu sombras bailando na parede interior da sacristia. Havia movimento. Decidiu trepar uma última vez. Não sabia, ainda,  mas a sua vida estava prestes a mudar. Subiu para cima do pedregulho, saltou e agarrou a grade, ergueu-se ajudando com os pés e dobrando os braços, encostou a face ao vidro e viu. E assim que viu percebeu que preferia não ter visto. O padre estava encostado ao aparador e falava. Seu pai estava a dois passos dele e foi para ele que avançou, segurou-lhe a nuca e beijou-o lenta e apaixonadamente. Aparecida largou-se e caiu. Ficou em choque. Esperaria tudo menos aquilo. De certo era um equívoco. Voltou a trepar e o mundo pesou-lhe mais do que nunca. Seu pai, Jacinto Bento, o beato, estava nu, de pé encostado à mesa e à sua frente, de joelhos, o prior dava asas à luxúria do desejo em carícias tão devotas quanto proibidas. Aparecida saltou, aleijou-se porque ao cair assentou mal um pé, correu pelas ruas derramando lágrimas de incompreensão. Tudo o que sofrera nas mãos daquele homem fazia sentido porque ele era o primeiro a submeter-se aos seus próprios princípios e exigências. Desta forma, nada fazia sentido, nenhum caminho parecia certo, a vida desmoronava-se. Entrou em casa, a mãe chamou por ela, mas Aparecida não respondeu. Fechou-se no quarto, enterrou-se na cama, encolheu o corpo o mais que pôde e deu consigo a rezar baixinho com a bíblia apertada entre as mãos.

jpv


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Um homem mais perto de Deus

[Luís Marques Mendes é eleito presidente do PSD no XXVII Congresso Nacional do partido. O Vaticano nega os rumores sobre a morte do Papa João Paulo II. Autoridades espanholas prendem 13 suspeitos de participação dos atentados de 11/03/2004. Morte do Papa João Paulo II (Karol Wojtyla). O tenista suíço Roger Federer vence o espanhol Rafael Nadal e conquista o Masters Series de Miami.

[Data da primeira publicação: 15 de Abril de 2005]

Um homem mais perto de Deus

Querida mana,

Não te dizia eu, ainda há pouco, que as palavras nos fogem? Não te dizia eu que ando para escrever-te acerca do dia em que nasceste? Ainda não é desta que a vida me abre uma brecha para além das intenções. Foi para mim um dia extraordinário que muitas vezes recordo devagarinho como que a querer demorar-me nos pormenores. Desta vez, contudo, preciso falar-te desse homem que nos deixa e, se conseguir, falar-te um pouquinho do que nos deixa. Como sabes, todas as pessoas e, por conseguinte, todas as famílias, têm, por entre a narrativa do quotidiano, emprego, viagens, férias, trabalhos que se aceitam, trabalhos que se deixam, opções, riscos, dissabores, conquistas, têm, dizia eu, uma história religiosa. Uma história de opções espirituais. Há as famílias mais crentes, as menos crentes, as mais participativas, as menos participativas, as mais normativas e as mais rebeldes. Independentemente das opções individuais e familiares, independentemente, mesmo, do credo de cada um, João Paulo II marcou uma geração de pessoas que se habituou a olhar a Igreja Católica e até o Cristianismo pelos olhos do Santo Padre. Não há pessoas indiferentes a este Papa. Pode ser uma velhinha aqui da Zibreira, católica como lhe ensinaram e depois ensinou também, pode ser um chefe de estado muçulmano, pode ser um jovem indu professo, mas, se for humano, há-de reconhecer com a naturalidade com que se reconhece que a água é água, que o pão é pão, que o ar é ar, que as montanhas são as montanhas, e os pássaros, e as flores, e o amor, e o verde, e a vida, há-de reconhecer com a naturalidade de aceitar sem discutir que este homem foi tão homem que ficou mais perto de Deus. João Paulo II conseguiu o mais difícil. Não se refugiou no silêncio. Não se escondeu nos extremismos injustificados. Assumiu todos os assuntos do Homem como assuntos da sua Igreja, enfrentou todos os problemas e conseguiu fazê-lo sem ofender, sem magoar, sem impor. Foi um homem francamente arrojado, arrojadamente moderno. E percebo-lhe, agora que os anos passaram, a estratégia. Uma estratégia de humildade e serenidade. Uma estratégia que consistiu em ouvir os que sofriam, em escutar os que se lhe dirigiam, em dirigir-se aos que pediam a sua presença, uma estratégia de clara aproximação ao Homem. Uma negação, quase até ao incompreensível, da indiferença que corrói e corrompe as relações entre os homens. Este foi o Papa que reconheceu a verdade de Galileu, este foi o Papa que se deslocou ao berço de Cristo e pediu perdão pelas perseguições. Este foi o Papa que fechou os ouvidos às palavras dos conselheiros e se deslocou aos locais mais adversos para ouvir, para amparar e, claro, para levar a Palavra. João Paulo II, mana, esteve tão perto do seu semelhante que conseguiu ver-lhe a face sulcada pelo sofrimento, as mãos cansadas do trabalho, os olhos iluminados pela alegria. Esteve tão perto do seu semelhante que fez disso a sua própria ascese sem que reparasse nisso. Este Papa, este nosso Papa, fazia parte de nós, das nossas famílias. Agiu sempre como todos os homens deveriam: com serenidade, compreensão e capacidade de estar no lugar dos outros. Julgo, mana, que te escrevo hoje sobre o Papa por que há nele algo que me deixa profundamente esperançado em relação a nós, mortais comuns e humanos: é que residiu a sua ascese, residiu a sua reconhecida e unanimemente aclamada santidade numa inequívoca e profunda aposta na humanidade. Foi por assumir-se homem e próximo, sempre muito próximo do Homem, que este Papa se distinguiu dos outros homens. Sem querer cair em raciocínios de carácter teológico arriscado, eu diria que este Papa nos elevou a todos como humanos. Eu diria que, com a sua vida e as suas opções, João Paulo II fez de nós todos pessoas um pouco melhores. Esteve acima dos critérios, das discussões, das indignidades, esteve acima de tudo isto porque se baixou para olhar o seu semelhante nos olhos e dizer-lhe “Não tenhas medo!”

Beijo,
Mano.