Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Bons Malandros

[Pacheco Pereira publica no Público, a crónica “O Iraque É Também Nossa Responsabilidade”. Realiza-se, em Lisboa, a segunda “Marcha do Orgulho Gay” que, segundo o Diário de Notícias, tentou desfazer a associação ao escândalo Casa Pia. A AOL Time Warner Foundation anuncia, após realização de um inquérito que para além de ler, escrever e contar, a alfabetização do século XXI deveria possibilitar aos jovens aprender novas competências que há 20 anos não eram tidas como essencias. O CDS-PP desiste do projecto v-chip para controlar a violência e a pornografia na televisão. Fátima Felgueiras dá uima polémica conferência de imprensa no Rio de Janeiro. O Porto vence (1 – 0) a União de Leiria e conquista a Taça de Portugal.

Data da primeira publicação: 27 de Junho de 2003]

Bons Malandros
Querida Mana,

Lembras-te de como te li a “Crónica dos Bons Malandros”?
No quarto em que partilhávamos o quotidiano, no mesmo quarto em que adoecíamos e recuperávamos juntos, naqueles nove metros quadrados de partilha em que trocávamos segredos e brincadeiras. Foi lá que abri, desconfiado, a crónica que se seguiria e que, sem saber, viria a mudar a minha vida. A cama tinha um dos lados encostado à parede coberta de papel de fantasia de fundo azul muito claro sobre o qual vadiavam umas florzinhas de um azul mais escuro e outras de cor-de-rosa como que a sugerir, esta combinação cromática, que o quarto não era teu nem meu mas dos dois. De muito grossa, a parede tornava-se fresca e eu oferecia-lhe as costas deixando o resto do corpo atravessar a cama até que os pés ficassem suspensos. E lembro-me de rirmos de satisfação com as venturas e desventuras das suas personagens. Lembro-me de voltar atrás em alguns parágrafos para os saborearmos de novo. O entusiasmo era de levar a mãe a chamar para mesa uma vez, duas e três e a refeição era apressada para voltarmos à aventura. O que eu realmente gostava e queria partilhar com todos à minha volta era a boa disposição, o imprevisto, o caricato e por vezes, porque não, o arrojo da linguagem que assumia traços de vernáculo. O fenomenal, para mim, era o contraste! Eu só não sabia defini-lo e traçar-lhe os contornos exactos mas apercebia-me claramente de que havia ali um contraste. Hoje percebo que residia, fundamentalmente, na antítese entre o formalismo e a seriedade como me apresentavam a Literatura na escola, sempre tão longe da vida, e a fluência de viver que aquele pequeno livro me escancarava à frente dos olhos, às portas da alma. Cheguei a estranhar alguma linguagem. Como era possível um livro ter a palavra “preservativo”, como era possível as personagens serem tão parecidas com as pessoas que se cruzavam comigo no caminho para a escola, tão humanas, tão cheias de defeitos? … Cheguei a duvidar ser Literatura aquele arrazoado de maravilhas surpreendentes que me faziam rir e comover e me impeliam a ler-te o livro.
Porquê estas recordações tantos anos depois? Por que me puxa a memória para um livro? A resposta é simples. A “Crónica dos Bons Malandros” foi, para mim, uma tomada de consciência. Foi o perceber e o apreender da Literatura como manifestação de vida, de toda a vida. Mais do que isso, a Literatura, para mim, deixou de ser uma manifestação de vida, passou a ser a própria vida. Os livros deixaram de ser textos muito bem escritos, sem erros, que senhores muito inteligentes e estudiosos, a que chamávamos autores, escreviam para que o resto da Humanidade pudesse aprender. Os livros e a leitura deixaram de ser, para mim, paradigmas do que é bom, perfeitamente dissociáveis de mim, do meu quotidiano, da minha família. A “Crónica dos Bons Malandros” integrou a leitura, a escrita, a minha vivência e colocou-os a todos no mesmo plano: o da vida. Afinal, havia pessoas boas que faziam coisas más, pessoas más que faziam coisas boas, havia mau cheiro e sujidade na Literatura, as personagens, surpreendentemente, falavam como se fala nas ruas, diziam palavrões, tinham sotaques, vestiam mal e o milagre, para mim, foi a perfeição residir no facto de a imperfeição estar por todo o lado. A Língua servia a sua configuração mais extraordinária: a Literatura. E esta, por seu lado, jamais poderia existir e continuar a maravilhar-me sem o serviço da primeira. Eu encontrara o casamento perfeito, vislumbrara uma união que jamais alguém conseguiria desfazer. O corpo e a alma, a palavra e a ideia, a mão e o gesto, a Língua e a Literatura! Por isso me arrepio, hoje, e, mais do que isso, me entristeço, quando oiço as defesas das mais modernas teorias pedagógicas que em nome da alfabetização e da competência linguística propõem ensinar aos jovens a Língua e a Literatura separadamente. Preocupo-me quando oiço pessoas preocupadas com a incompetência linguística e pensam estar a solução em dar mais atenção à Língua em detrimento da Literatura. Será que não vêem que este detrimento não existe? Onde aprender uma carta melhor do que em Pessoa ou Saramago? Onde compreender a estatística melhor do que em Gedeão? Onde aprender o manuseio da Língua melhor do que naqueles que o fizeram com a excelência da vida? Onde encontrar os segredos de uma pontuação extraordinariamente correcta e de uma frase maravilhosamente bem organizada melhor do que em Vergílio Ferreira.
O que eu percebi, mana, naquele dia em que me encostei à parede do nosso quarto e te li a “Crónica dos Bons Malandros” foi que há coisas que o Homem não pode separar porque estão unidas na sua natureza intrínseca, porque são elementos de uma mesma força. Alma e Corpo num só ser.
Aliás, que ofereceremos nós aos alunos que só aprenderem a Língua? Deixamos-lhes a ferramenta mas negamos-lhes o golpe de asa de que falava o poeta. E aos outros? Àqueles a que só ensinarmos a Literatura? Que lhes ofereceremos nós? Oferecemos-lhes o golpe de asa, o milagre da vida, mas vedamos-lhes o caminho para lá chegar…
Se isto chega acontecer, mana, começo a acreditar que os malandros são menos bons do que pensava!
Beijito,
Mano.


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A mercearia do senhor Luís!

[Pacheco Pereira publica no Público, a crónica “O Iraque É Também Nossa Responsabilidade”. Realiza-se, em Lisboa, a segunda “Marcha do Orgulho Gay” que, segundo o Diário de Notícias, tentou desfazer a associação ao escândalo Casa Pia. A AOL Time Warner Foundation anuncia, após realização de um inquérito que para além de ler, escrever e contar, a alfabetização do século XXI deveria possibilitar aos jovens aprender novas competências que há 20 anos não eram tidas como essencias. O CDS-PP desiste do projecto v-chip para controlar a violência e a pornografia na televisão. Fátima Felgueiras dá uima polémica conferência de imprensa no Rio de Janeiro. O Porto vence (1 – 0) a União de Leiria e conquista a Taça de Portugal.

Data da primeira publicação: 13 de Junho de 2003]

A mercearia do senhor Luís!

Querida mana,

Hoje trago-te memórias de imagens e odores dificilmente igualáveis. Há vinte e muitos anos atrás (anos do relógio, porque se se tratasse dos anos da cabeça eu diria que tinha sido há muitos séculos, noutras vidas), empoleirado na janela, eu via-te, pequenina, com uns calções amarelos de algodão e correspondente camisolinha de alças atravessar a rua de passo seguro após o prudente olhar para a esquerda e para a direita. O olhar para a esquerda era impelido pela força do ensinamento paterno, coadjuvada pelo hábito, mas perfeitamente inútil porque, como vim a concluir, consciente, anos mais tarde, a rua era de sentido único! Dirigias-te para a mercearia do senhor Luís. Lá dentro encontravas um balcão enorme de madeira já muito tratada pelo tempo, pelos avios, as satisfações e as arrelias de proprietários e clientes. Por trás do balcão erguia-se a figura enorme e cinzenta do senhor Luís, de bata pelo joelho, cabelos a reflectir o peso da idade na coloração de imitar a bata. A voz era pausada, a simpatia quanto baste, como convém nos negócios, as coisas faziam-se bem, não se faziam depressa. Mais ao fundo uma enorme estante a acompanhar toda uma enorme parede. Mercearias mais à mão, drogarias mais a fugir para o fundo do estabelecimento. Da altura da cintura para baixo não havia estantes mas uma fila infindável de depósitos para produtos avulso, cada depósito com sua tampa a fechar na diagonal. Dentro de cada uma destas arcas de madeira pousava uma medida ou instrumento de aviar e era raro que não chegasse à balança o peso já certo, pré-medido pela mão do tempo, pela prática da vida. Cá fora, pelo chão, havia sacas de batatas, cebolas, garrafões de vinho, vassouras encostadas à parede e todo o local parecia a recriação de um mercado inteiro incluindo o “comes e bebes” lá ao fundo a que se acedia por uma portinha e onde costumavam estar sempre os mesmos homens com os mesmos copos à frente que nós pressentíamos mas que, por um qualquer pudor não compreendido à altura nos eram vedados ao contacto da vista. O odor das especiarias e do açúcar amarelo misturava-se com o dos restos de Omo que caía, inevitavelmente, pelo fundo da embalagem de cartão, misturava-se com o aroma do café em grão, das cebolas, do vinho lá de dentro e entrar ali era despertar o olfacto com uma sinfonia complexa de ocidente e oriente, de passado e presente. A vista deixava-se enfeitiçar pelas cores das embalagens nas prateleiras, metodicamente arrumadas. E regressavas satisfeita com mais uma história para contar. Trazias o troco numa mão e, na outra, um embrulho que demorava mais tempo a fazer do que hoje uma operadora de caixa a despachar cinco clientes com dois carrinhos de compras cada um!

Ias e vinhas e parte do percurso não se via pela janela mas acreditávamos todos que tudo ia correr bem, havia esperança nos nossos corações. Nos dos pais pairava a confiança numa vida melhor, nos dos filhos a esperança de fazer coisas, de ser gente, de ser grande. Queríamos, todos, ser heróis de feitos inolvidáveis mesmo que começassem numa singela aventura até à mercearia do senhor Luís. Acontecia, mesmo, excedermos o que julgávamos inexcedível: íamos para a escola sozinhos e a pé! Atravessámos a cidade inteira para lá e para cá e era vida o que acontecia, e era Liberdade o que se realizava. O medo do Salazar, a suspeição, a dúvida e os olhares por cima dos ombros estavam, definitivamente, mortos. Levantavam-se as cabeças das pessoas para olhar em frente e percorrer um caminho melhor. Os adultos contavam histórias diferentes da mesma revolução que desembocavam todas numa palavra: Liberdade.
Hoje ligo a televisão e as palavras que dominam o quotidiano do meu filho são “arguido”, “pedofilia”, “peculato”, “suspeito”, “crime”, “prisão preventiva”. E vou buscá-lo à escola e já não há a mercearia do senhor Luís mas, mesmo que houvesse, não ousaria deixá-lo percorrer sozinho aquele troço do percurso que se não via da janela! Paira no ar um clima de suspeição, dúvida e desconfiança como no tempo de Salazar só que agora já não há Salazar! Que percurso traçámos nós a ponto de herdarmos o que não era para herdar? Que fizemos da Liberdade se o meu filho não pode, com a tua inocência de outros tempos, fazer o que fazias, de cabeça erguida e sorriso nos lábios, sem que eu tema: estará bem?
Um beijo amigo do mano


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Três à mesa

[A razão principal da guerra no Iraque não foi a questão das armas de destruição maciça, mas o afastamento de Saddam, a fim de permitir a Washington “retirar as suas tropas da Arábia Saudita e abrir caminho ao controlo global do conflito no Próximo Oriente”. A afirmação é de Paul Wolfowitz, braço direito de Donald Rumsfeld e número dois do Pentágono. Herman José é constituído arguido no caso da pedofilia. Paulo Pedroso é detido no âmbito da investigação do mesmo caso. O F.C. Porto vence a Taça Uefa na final contra o Celtic de Glasgow treinado pelo incontornável José Mourinho.

Data da primeira publicação: 30 de Maio de 2003]

Três à Mesa
Olá mana,
Lembro-me de quando ainda éramos quatro à mesa.
O pai no topo, cotovelos assentes e mãos entregues uma à outra como que encimando uma pirâmide. Olhava-nos com a alegria de quem vê crescer uma obra de arte. A sua obra de arte. E o seu sentir era um misto paradoxal do altruísmo de quem deixa crescer, de quem sabe deixar viver, e do narcisismo de quem se regozija na contemplação de si na sua obra. Nós ladeávamo-lo. A mãe e tu de um lado, eu do outro, bem de frente para ti, à distância de uma malandrice, de um risinho, de um segredo por desvendar. A mãe chegava-se bem para cima até conseguir cruzar um braço seu com os do pai. Às vezes penso que fazia isto só para sentir a força. Era a nossa mestra da mesa no preparo dos alimentos, no cruzar artista dos temperos. Lembro-me de a ver olhar o pai e servi-lo com o carinho e o desvelo de quem guarda um tesouro. E nós, cachopos de pontapés por baixo da mesa a retomar uma qualquer escaramuça de antes da refeição, nem reparávamos no milagre que ali tínhamos. E com o passar do tempo aquele ritual de quatro à mesa instaurou-se nos hábitos, no estar, no ser e ajudou a construir as pessoas que somos hoje. Era muito mais do que estarmos juntos. Tratava-se de um momento íntimo daquele núcleo de força, daquela família. O mundo lá fora podia estar a desabar de desgraça, a inchar de riso, a política podia mudar, a finança podia colapsar, podíamos até estar zangados, tristes uns com os outros ou só com o rumo da vida mas… àquela mesa não se faltava. Aquele era um momento em que estávamos os quatro em um só. Era a reunião do clã. Tudo ficava para trás e o mundo era nosso por uns momentos. Por esse tempo, de vez em quando, um de nós caía à cama com as maleitas próprias do tempo ou dos descuidos que marcavam a idade em que os casacos estorvavam e os chapéus-de-chuva eram para os velhos. Depois do tempo necessário para a recuperação ter passado, assinalavam-se as melhoras do paciente com o retorno ao convívio à mesa dos quatro. Ainda me lembro de pensar, ingénuo, no dia em que regressou à mesa após o primeiro enfarte que o pai estava curado, até já tinha jantado connosco!
Sabes, assaltaram-me estas lembranças quando um destes dias fui a Lisboa com a Paula participar num congresso. Numa das pausas para almoço dirigimo-nos a um restaurante da Universidade e, por via da falta de lugares, partilhámos a mesa com uma pessoa desconhecida. Foram minutos dolorosos de silêncio, dolorosos de indiferença, de nada para dizer. Três à mesa e ninguém parecia estar ali ou querer ali estar. Só então percebi o quão íntima é uma refeição. Tudo o que de nós revelamos nos pequenos gestos, nas opções mais insignificantes. Só então percebi que a impessoalidade cresce entre nós por mais que sejamos. Ali estava eu numa urbe de milhões, cercado de semelhantes aos milhares e completamente só numa mesa com três pessoas. Ali se cometera um crime. Ali se assassinara o milagre da refeição. Em nome de quê? Em nome de quê a indiferença? Em nome de quê a impessoalidade? Em nome de quê a solidão? Em nome de que crescimento este definhar das relações humanas? Ainda esbocei um gesto que salvasse o momento:
– Vou buscar cafés, a senhora aceita um café?
– Eu pré-comprei o meu. Obrigada.

E pronto. A tecnologia dos almoços em pé, dos pré-adquiridos, dos pré-comprados, dos pré-pagamentos, aniquilou o meu estender de mão e hoje guardo, para contar aos netos, a história triste do dia em que almocei com uma desconhecida, em que violei a sua intimidade e vi a minha devassada sem saber porquê. É essa a parte que me assusta : três à mesa sem saber porquê!

Beijo,

Mano.


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A Janela

[A razão principal da guerra no Iraque não foi a questão das armas de destruição maciça, mas o afastamento de Saddam, a fim de permitir a Washington “retirar as suas tropas da Arábia Saudita e abrir caminho ao controlo global do conflito no Próximo Oriente”. A afirmação é de Paul Wolfowitz, braço direito de Donald Rumsfeld e número dois do Pentágono. Herman José é constituído arguido no caso da pedofilia. Paulo Pedroso é detido no âmbito da investigação do mesmo caso. O F.C. Porto vence a Taça Uefa na final contra o Celtic de Glasgow treinado pelo incontornável José Mourinho.

Data da primeira publicação: 16 de Maio de 2003]

A Janela
Olá manita,
Estava aqui a pensar como a Língua, mais do que uma forma de apropriação e reflexo do mundo que nos circunda, é, acima de tudo, a expressão das nossas vivências, das nossas presenças, das ausências, do que fazemos e do que deixamos por fazer. Se vires bem, os tempos verbais e até os seus modos não são mais do que ilusões, passes de magia, uma vez que o importante para cada um de nós são as realizações. É a vida. Quantas vezes o verbo deveria estar no pretérito perfeito e fica no presente, quantas estaria correcto no presente e o colocamos no futuro? Quantas vezes um substantivo não assume a força e o vigor de uma acção? Estava assim entretido nestas complexas tramas do pensamento porque me lembrei que eu tenho casa, tu tens casa, mas quando dizemos “nossa casa” não nos referimos a nenhuma delas senão àquela que nos viu a infância, que nos aturou os excessos da adolescência, aquela que nos abriu uma porta para o mundo. Na realidade, não foi bem uma porta, foi mais uma janela. Aí assomei sozinho, pensativo, vezes sem conta. Vezes sem conta alegre e exuberante. Outras, triste e acabrunhado. Aí assomaste tu sozinha com o mundo às costas, aí esteve o pai fumando o mais delicioso dos seus cigarros, aí ficou a mãe a conversar com a tia do outro lado da rua. Aí estivemos aos pares e aos trios a ver sempre quem ficava no meio no jogo divertido do empurra-empurra e aí chegou a estar a família toda, toda a vida que havia para viver à janela de uma águas-furtadas na rua Figueira da Foz em Coimbra. Dali se disse adeus aos que lá em baixo, na rua, acenavam e partiam. Dali se saudaram os que chegavam da turba para o ninho. Ver partir, ver chegar, conversar, rir, chorar, nas mais diversas combinações mas sempre com a mesma base comum: a família. Nessa janela sentimos o calor do sol de Verão pela manhã e abrimo-la de par em par. Nessa janela desenhámos corações no bafo enquanto a chuva invernia tamborilava na vidraça. Foi aí que tive a primeira negativa, foi nessa janela que concluí o meu curso, foi nela que conversei com o pai as coisas sérias de ser homem, foi nessa janela que me casei. Foi nessa janela que te contei das minhas namoradas e ouvi das tuas aventuras e rimos ambos. E lembro-me muito bem de regressar a casa no que restava da longa e fugosa noite de uma Coimbra sedutora e ver luz na janela. Enchia-se-me o peito de conforto e calor, sentia-me seguro e acelerava o passo, agora mais firme. Mais do que uma janela, era um farol de emoções, uma orientação de aportar com segurança no carinho de quem nos espera. Era chegar para quem nos esperava.
Nessa janela-porta-para-o-mundo nos empurrávamos a ver quem ficava com mais espaço e vinha sempre o aviso: “cuidado com essa janela, uma queda daí é a desgraça!” Mas caímos. Tombámos dali abaixo como quem tomba da adolescência para a vida adulta, como quem tomba do sonho ser menino para a responsabilidade de ser homem. E não há como lá voltar! Não adianta tentar trepar a parede das memórias, esgadanhar pelo passado acima. É demasiado íngreme! A janela está lá, nós é que lá não podemos voltar. A família, mana, funciona assim. Parece cruel mas não é, trata-se apenas de um ritual de preparação para a criação de novas famílias, trata-se apenas de ensinar a sofrer porque sofrer é preciso, é o melhor que podemos ter, é sentirmo-nos vivos, sempre. A família ensina-nos a amar, ensina-nos a não conseguir abandoná-la para a podermos abandonar! Esta é mãe de todas as forças, o primeiro dos ensinamentos, o amor mais genuíno porque imanente do mais genuíno sacrifício. Abandonar uma família para criar outra. O Homem no seu melhor!
Com saudade,
Mano.


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A propósito do post "Only You"

recebi um mail identificado sobre o post “Only You” e pedi para o publicar porque me pareceu breve mas muito interessante, intenso e sentido. Foi autorizada a publicação sem identificação da autora que, claro, eu conheço. É uma companheira de muitas jornadas. Aqui fica:

Olá João,
eu não gosto de comentar no blogue. sinto-me “despida”!
mas não fico indiferente à reflexão profunda que se regista nessa escrita apaixonada. escrevo-te aqui, para conversar e partilhar contigo.
a música preferida do teu pai é também um ícone da minha adolescência que a maturidade veio aprofundar no verdadeiro sentido da revelação.
hoje penso, ou melhor, sinto, que o Amor é incomensurável, não cabe na fugacidade da existência! não se aprisiona! nem se restringe ou auto-limita!
quem ama eterniza-se. e aquele que, amando, se sente amado, já encontrou a plenitude. amei ler-te.abraço-te carinhosamente.


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A senhora Deolinda

[A evocação da Revolução de 25 de Abril adquire, este ano, uma carga diferente dos anos mais recentes. Em primeiro lugar porque se prevê que o Presidente da República se pronuncie sobre a posição de Portugal no plano internacional, depois da aproximação do Governo à linha estratégica dos Estados Unidos da América. Mas também porque foram vários os colunistas dos media a sugerir uma analogia entre o que se passou em Bagdade, com a queda do regime de Saddam Hussein, e o nosso 25 de Abril de 1974. O secretário de Estado norte-americano Colin Powell justifica a morte do jornalista Jose Couso no Hotel Palestina, em Bagdade, numa carta que envia ao seu homólogo José Maria Aznar. Em 26 de Abril de 2003,J. M. Paquete de Oliveira escreve no Jornal de Notícias: “Vai murcho, muito murcho, este Abril de Portugal. Chega-se ao limite de Otelo elogiar Saddam ou não condenar Fidel. E por isso à aberração da “arquitectura mental” de José António Saraiva escrever no “Expresso” o que a liberdade de opinião permite, mas que o “Expresso”, pelo que tem feito pela liberdade, não merecia”.

Data da primeira publicação: 11 de Abril de 2003]

A senhora Deolinda

Olá manucha,
Bem sabes que, ao meu modo, sou um tanto subversivo, do género contrariar correntes, tentar a impossibilidade de pensar o impensável, roubar à memória o que ela tem e não tem para me dar… talvez por isso ou, quem sabe, por um humano impulso de sobrevivência fujo, no auge da guerra, ao assunto e venho memorar o entendimento! De alguma forma sinto que falar da guerra é alimentar a chama de uma fogueira que todos queremos extinta.
Algures, numa rua da Coimbra da aurora da década de setenta, um raio de sol vespertino bate numa vidraça e aquece uma salinha pequena e enorme. Uma cama e uma máquina de costura daquelas compridas com muitas agulhas e fios enevoam-me a memória. Dos adereços sem vida nada mais me ficou. Mas ficou-me o cheiro do café com leite, ficou-me o sabor das infindáveis torradas da Senhora Deolinda. Ficaram-me as histórias contadas como quem revela segredos, ficou-me o saber rural de quem faz perguntas mais para espicaçar a capacidade de resposta do que para testar o que quer que seja. E afinal a sua salinha não era só uma salinha, era um mundo de comunhões, eram tardes longas a perder da vida, era uma senhora viúva e uma criança de olhos vendados pela ingenuidade própria num entendimento que superava as diferenças de idade, as culturais, as cognitivas, as meta-cognitivas, os saberes experienciais, os pedagógicos, a psicologia educacional e a pedo-psicologia! E, no entanto, aprendi.
Hoje, as casas das pessoas são mais arrumadas, mais limpas e mais plásticas. Há armários, gavetas, caixas e caixinhas que servem para arrumar a desarrumação que nos ajudava em tempos a aprender porque mexíamos nas coisas. E como estão as casas, tendem, por reflexo do estilo de vida, a estar as ruas. Já reparaste que são bem menos as crianças na rua? Já reparaste que são bem menos os idosos na rua? Providenciámos-lhes caixas com todas as condições: a umas chamámos infantários e às outras lares! Olha-me a ironia deste nome: tiramo-los dos seus lares para os colocar nos lares. O mais grave é que neste arrumar cómodo de gentes que estorvam e empecilham o quotidiano separámos os Paulinhos das Senhoras Deolindas. Tirámos aos velhos a glória de ver crescer quem lhes sucedeu e roubámos aos novos o ofício de aprender com quem sabe de viver a vida. Não a vida dos tratados, das teses, das teorias e de quem sabe da vida, só a vida de quem a viveu e sabe de viver a vida. Já viste como são as coisas? Anda uma pessoa oitenta e tal anos a aprender a vida e quando podia ensinar um poucochinho dela é encarcerada num lar para seu bem! As ruas estão limpas, estão assépticas e estão estéreis! Os Paulinhos estão sentados no chão de um infantário a tentar enfiar um cubo dentro de uma caixa pela abertura correspondente, as senhoras Deolindas estão no lar a ver televisão, inertes e sem comunicar o mundo de maravilhas, milagres e dificuldades que teriam para ensinar a quem as quisesse ouvir. Os netos crescem sem nunca terem ouvido os avós, agentes naturalmente reguladores dos defeitos e dos excessos cometidos pelos pais.
E é por isto que te escrevo hoje, para relembrar a alegria de uma criança e de uma senhora viúva em torno de uma história e um pires de torradas. Aprendi o toque aveludado das suas mãos rugosas de trabalhar o campo e é como se sempre tivesse sido um camponês e soubesse os preceitos e os desvelos que a terra exige. Aprendi a doçura da sua voz e é como se sempre tivesse querido ser pacífico e calmo e nada mais fizesse sentido senão a Paz, aprendi a malandrice do seu sorriso e a maravilha das suas histórias e é como se sempre tivesse vivido aventuras de espantar. Aprendi o respeito do luto que, na altura, era para sempre. Aprendi a calma das tardes longas e aprendi que todas as coisas durante o dia têm uma ordem e um momento e aprendi, como a raposinha do Saint Exupéry, a esperar por cada momento. Mas houve uma coisa mais importante que as outras todas que a Senhora Deolinda me ensinou: quando, numa tarde morna, o sol preguiçoso e amarelado nos visita pela vidraça e convida a imaginação a desbravar mundos não há nada melhor do que uma chávena de café com leite e torradas, muitas torradas.
– Senhora Deolinda dá-me mais “tarradas”!

Beijo
Mano


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A grande insolência

[Uma sondagem da Marktest para o DN e TSF, relativo a Março de 2003, apresenta as preocupações e prioridades dos portugueses, que se posicionavam do seguinte modo: – Desemprego (28%) – Listas de espera na saúde (25%) – Equilíbrio das contas públicas (14%) – Paz social (9%) – Violência (8%) – Qualidade da educação (7%). A Federação Internacional de Jornalistas exige um inquérito imediato e completo à agressão e detenção de um jornalista e um câmara da RTP e dois outros profissionais israelitas pelas tropas da coligação anglo-americana no Iraque.

Data da primeira publicação: 28 de Março de 2003]

A grande insolência

Olá mana,
Hoje estou particularmente bem disposto e nem sei porquê que é quando sabe melhor estar bem disposto.
Hoje quero lembrar-me de ti por ti num esforço de me substituir à tua própria memória. Bem sei que será impossível pois ninguém vive a vida de ninguém como o próprio, mas fica a tentativa.
Algures num dia invernio em plena quadra natalícia, aproximavam-se as férias do Natal. Já lá vão mais de vinte anos e Coimbra era menos cidade e mais aldeia dos arredores de si mesma. Em quase todo o lado havia grelos à venda e o comércio tradicional, vital como nunca, oferecia uma variedade inusitada de cores para a vista, melodias para o ouvido e sonhos para a alma. Numa sala de aula de uma das últimas aulas em que o professor Madeira percorreu o calvário de te aturar a ti e aos teus colegas com a paciência e o carinho que acompanharam a memória dele, estavam os teus olhitos pretos. Muito ávidos de coisas novas, bastante curiosos, alegres e sempre, sempre, irrequietos. Se bem nos lembramos, por aqueles dias tu querias viver cada dia como se fosse único, enfrentar todos os problemas e, acima de tudo, estavas disposta a aceitar todos os desafios. Ora, foi num esforço, voluntário e são, de te superares a ti mesma e, claro, deixar bem visto o professor, mais do que a ti própria, que aceitaste o desafio antes que qualquer outro o pudesse fazer.
– Quem quer cantar uma cantiga de Natal?
– Eu senhor professor, eu… eu!

Minutos depois ele não teria feito a pergunta. Anos depois tu não terias aceitado o desafio. Por mim, no ofício egoísta das memórias, congratulo-me com a ideia de ele não ter sabido antes o que soube depois e de tu não teres visto antes as barreiras e as distâncias que verias mais tarde. E cantaste envolvida e sonora, com a voz mais cristalina, mais genuína que o teu coração soube soltar:
– ginglobel, ginglobel, já não há papel
Não faz mal, não faz mal, limpa-se ao jornal!

pois… já tens o pobre professor Madeira de todas as cores do universo, muito indeciso, na sua benevolência e bondade cristãs, próprias de um verdadeiro pedagogo, entre a aceitação do gesto franco e voluntarioso e os ditames morais e educativos por que também se regia e que queria mostrar-te mas não sabia como. O senhor lá entaramelou qualquer coisa sem te ofender a dedicação de aluna mas apelando para o que quer que houvesse em ti que pudesse evitar outros momentos de tão embaraçosa, para ele, claro, dedicação!
Convém aqui lembrar em abono dos teus predicados vocais que, muito melhor do que a cantiga de Natal, era aquela que entoavas lá em casa à porta do quarto dos pais para onde fugias, acabada a sessão, a esconder a cara, vá-se lá saber por imperativo de que pudores. Virada para a sala muito empertigadita e com o peito cheio de ar e orgulho no feito que se aproximava:
– sandokan, sandokan
Não tem cuecas nem sutiã!

Voltavas, espreitando, a meia face, para a sala, para ouvires o aplauso ruidoso da mãe e da mimi e a festa silenciosa do pai em olhares que só tu e ele percebiam.

Que eu me lembre, de todo o teu percurso escolar, pelo menos até acabares o secundário, o ginglobel foi a tua grande insolência!

Quis o destino, mais ironia, menos ironia, que abraçássemos os dois essa profissão que ainda há pouco deixou o professor Madeira embaraçado. Se ele te visse numa sala defronte de uma turma haveria de achar piada! Talvez pedisse para cantar uma cantiga!

Há dias lembrei-me do teu ginglobel quando ouvi na televisão esta expressão que agora usei: grande insolência. Alguém, a propósito de um miúdo com a tua idade de há vinte e tal anos berrava assustado a sua indignação e proclamava estas duas palavras como se fossem as últimas pedras que tinha para acabar de enterrar um cachopo sem modelo masculino em casa e com menos de metade do dia para partilhar com a mãe, todos os dias, quase todas as semanas há já tantos anos que ele não se lembra, por certo, da última vez em que o seu nome foi pronunciado sem ser cuspido. Nem sequer vou cair no dolo de entrar em considerações que nos levem para o sistema educativo, para as falhas e razões dos professores, para as falhas e razões dos pais, para os ministérios, para as reformas, para os dinheiros, nesta floresta, então, nem vale a pena pensar em entrar.

Fico-me, na humildade do meu pensamento, por uma interrogação. Que raio aconteceu de lá para cá? Que aconteceu de tão grave que o mesmo filme tenha de implicar agora cadeiras e vidros partidos, agressões para todos os gostos com e sem armas, que aconteceu para que a tua insolência fosse destronada por palavrões e pontapés, que aconteceu para que o embaraço do professor Madeira fosse substituído por conselhos disciplinares e expulsões, que aconteceu para que o palco de aprender fosse pasto das televisões?

Não julgo. Penso.
Penso que estamos todos, na generalidade, menos humanos.

Não culpo. Constato.
Constato que os miúdos crescem nas filas de trânsito, nas filas das caixas registadoras dessas grandes superfícies tão exíguas para a alma humana. Constato que já lhes não pedimos para fazerem nada com as suas próprias mãos. Compram. Constato que já não há desencontros porque os telemóveis mantêm toda a gente em contacto. E depois? Onde ficam as aventuras e as histórias dos desencontros? Constato que lhes colocamos na mesa defronte para a televisão quatro ou cinco comandos a distância para comandar aparelhos que estão pouco mais do que ao alcance da mão. Constato que tudo parece fácil mas, mesmo acreditando que não está mais difícil, tudo continua a ter dificuldades. Constato um paradoxo: como é possível ensinar a superar dificuldades a crianças que educamos na ilusão de que elas não existem? Como é que estas crianças aprendem a sofrer? Constato, depois, triste, a ausência de resistência à frustração, a indignação, o choro, a revolta, a insolência, a violência.

Não calo. Digo
Digo que envolvemos as nossas crianças e os nossos jovens em processos desumanizados de crescimento e lhes exigimos de volta a normalidade, o que quer que isso seja. Digo que os abandonamos, que não os acariciamos o suficiente, digo que não sentem, quanto deviam, o nosso calor e a nossa presença, digo que somos, na generalidade pais e mães de um percurso irregular; parimos à pressa, trabalhamos à pressa, amamos à pressa, ensinamos à pressa e queremos que os nossos filhos sejam calmos e tenham condutas de comportamento adequadas à nossa educação! Não à deles, claro!
Esta é, mana, sem dúvida, uma grande insolência!!

E recordo, com carinho:
ginglobel, ginglobel….
Beijo, mano


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Deixa-te estar, Mariana!

[Uma sondagem da Marktest para o DN e TSF, relativo a Março de 2003, apresenta as preocupações e prioridades dos portugueses, que se posicionavam do seguinte modo: – Desemprego (28%) – Listas de espera na saúde (25%) – Equilíbrio das contas públicas (14%) – Paz social (9%) – Violência (8%) – Qualidade da educação (7%). A Federação Internacional de Jornalistas exige um inquérito imediato e completo à agressão e detenção de um jornalista e um câmara da RTP e dois outros profissionais israelitas pelas tropas da coligação anglo-americana no Iraque.

Data da primeira publicação: 14 de Março de 2003]

Deixa-te estar, Mariana!

Olá manita,
Dos cristais da minha memória há um mais cintilante. Os teus olhos de azeitona pequeninos e escuros com a malandrice toda a espreitar. O teu sorriso a acompanhar aquele meio milagre para fazer um milagre inteiro. E recordo, como que a querer ressuscitá-lo, um espírito tenaz e audacioso que espreitava por essas janelas da alma, de vontades decididas e orgulhos silenciados. O que tinhas de fazer fazia-lo mais tarde ou mais cedo. Arriscavas todos os dias e todos os dias ganhavas, quanto mais não fosse, vida! Sempre fui mais normativo. A minha coragem manifestava-se em grandes cometimentos que sobressaíam por serem excepção, a tua era quotidiana, estava em ti como uma segunda pele. De vez em quando, como todos os miúdos nas vidas todas, fazias das tuas e eras chamada à presença forte, segura e autoritária do pai. Não que ele alguma tivesse tido vontade de repreender-te, não. O pai tinha uns olhos-mágicos-de-ver-mais-o-que-é-bom e a sua postura de pater famílias educador e rígido quase não resistia aos teus olhitos e torna-se interessante relembrar, hoje, como David nem precisava de funda para derreter Golias. Mas o dever da educação impunha uma repreensão e ela surgia mais ou menos convincente. E tu, de pescocito inclinado, pregavas a vista no chão, coravas, formava-se-te um caroço na garganta, entaramelava-se-te a língua e só eras capaz do silêncio. O silêncio do respeito-temor. É aqui que quero deixar-te por agora, braços estendidos ao longo do corpo, o peso da culpa, do respeito e do medo a tombarem-te os olhos para o chão.

Os anos passaram e surgiram outras psicologias, outras psicopedagogias, outras pedopsicologias e outras tantas orgias intelectuais marcharam contra o medo de se ser menino, arrasaram o temor e levaram na enxurrada o respeito! E as crianças deixaram de o ser demasiado cedo, demasiado cedo tiraram os olhos do chão, demasiado cedo desafiaram autoridades que não eram para desafiar, demasiado cedo conquistaram direitos, atitudes, vontades para demasiado cedo se perderem as crianças. E os pais ficaram de braço no ar, a meio caminho de uma palmada, repartidos entre a ancestral força de uma punição e a moderna culpa de um trauma psicológico! E assim andamos pelas ruas e assim vivemos em casa: os pais de braço indeciso no ar e os filhos desprovidos da inocência de se ser criança, a saberem muito de amores e paixões, a saberem demasiado de contas ao fim do mês, a saberem bué de como responder, de como levantar os olhos em desafio, de ingenuidades perdidas antes do tempo. E a saberem pouco de jogar ao arco, de saltar ao eixo, de deixar o mundo dos crescidos para os crescidos, de pôr os olhos no chão na ingenuidade pura do respeito-temor.

Escrevo-te estas coisas porque me alegrei há dias com a Mariana. Da amálgama de miúdos que me vêm ter à sala de aulas todos os anos, que me tratam por “setôr”, que se empertigam vontades de ser homem aos doze/treze anos, que se insinuam desejos de ser mulher à saída da infância, emergiu um par olhos negros como os teus, um sorriso como o teu e quando chamei, autoritário, “Mariana!”, ela pôs os olhos no chão como tu fazias, corou! Estive quase para emendar a mão e adoçar o tratamento mas lembrei-me da raridade que é esta ingenuidade de ser menino, este filão de viver o tempo certo no tempo certo e calei-me. “Deixa-te estar, Mariana! – troquei com os meus botões – deixa-te estar que tens aí um tesouro de viver”.

E voltei a ti, de frente para o pai, à espera da sentença. E que te disse ele? “Porta-te com juízo!” Portaste e foste brincar, foste crescer para um dia seres mulher e receberes um mail de recordar, por um momento, as deliciosas dores do crescimento!

Beijito,
Mano


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Levanta-te e anda!

[Neste mês, tem início efectivo a guerra do Iraque. A Internet atinge os 500 milhões de utilizadores. As Nações Unidas criam um site para apoiar a Década da Alfabetização, que se desenrola de 2003 a 2012. Explicitando o conceito de literacia utilizado, afirma-se: “Literacy is about more than reading and writing – it is about how we communicate in society.”

Data da primeira publicação: 28 de Fevereiro de 2003]

Levanta-te e anda!
Olá mana,
Há uns tempos prometi-te um mail mais animado do que os últimos. Algo menos soturno e com uma nota de esperança… Acolheste a ideia de bom grado mas não conseguiste deixar de franzir o sobrolho como que duvidando da possibilidade de tal cometimento. Sabes, de certa forma tens razão. O Inverno vai frio e agressivo, as catástrofes naturais abatem-se sobre a Humanidade, os aviões caem como moscas, o espectro de uma guerra inútil tolda-nos os dias, a nossa lusitana sociedade afunda-se em escândalos e desesperos de onde emerge, inexoravelmente, a podridão inerente a décadas de desinvestimento na educação e nos valores morais e já nem temos a força e a pureza que nos levaram, em tempos, a traçar no espaço um corado manguito… não pode ser, podia estar uma televisão a ver! Tudo isto é consequência directa, a mim me parece, da “visibilidade”. O nosso mundo, a nossa sociedade e as nossas interacções estão cada vez mais expostas e desgastadas. O interessante é que fomos nós mesmos quem promoveu a visibilidade como um valor. Demos demasiada importância ao verbo “aparecer” e esquecemos, aos poucos, os saudosos “pensar”, “agir”, “partilhar”. Hoje, somos intervenientes sociais no sofá da sala com um comando a distância e um telemóvel. Cidadãos de sms, cidadãos de sondagens de opinião… e cada vez há mais sondagens e menos opinião!

Mas aí reside o milagre. Arranquei à memória do passado e aos factos do presente um motivo de esperança. Lembro para nós a madrugada pérfida em que o pai teve o primeiro enfarte, lembro a mãe a ampará-lo escada abaixo e lembro depois onze anos de calvário entre a nossa casa, seu castelo-forte-de-ter-a-donzela, e o Hospital Universtário de Coimbra, seu castelo-forte-de-se-manter-vivo. Lembro que naquela tão criticada e malogradamente jornalada e televisionada instituição o pai não era o pai, era o senhor Videira e os funcionários não eram aquele nem este. Todos tinham nome próprio e usavam-no. Lembro o carinho, a dedicação. Lembro o desvelo e o profissionalismo. Lembro que, para o pai, ir para o hospital não era ir para o hospital, era passar uns tempos na sua segunda casa. Lembro a cumplicidade de deixar ficar as visitas um minutinho mais… E pergunto: porque não apareceu tudo isto nos jornais e nas televisões? Porquê a relutância de gritar bem alto a solidariedade e a capacidade de fazer e ser bem que este humano Ser ainda cultiva?

E da névoa do passado vim aos trambolhões, memória abaixo, até desembocar à porta da unidade de fisioterapia do Hospital Rainha Santa Isabel em Torres Novas, coxo, de gesso recentemente tirado e apoiado em duas simpáticas muletas. E que vi eu? Vi uma unidade bem equipada de máquinas, aparelhos e recursos de pôr a boca aberta. Mas mantive-a fechada para a abrir depois, quando vi o trabalho, quando vi a dedicação. O carinho no massajar dos pulsos da senhora Maria, septuagenária de braço ao peito. O tom de voz de animar almas desconfiadas dos corpos que as guardam. O partilhar da dor, o incentivo, a cumplicidade entre terapeutas, auxiliares e pacientes. Por momentos julguei que éramos toda uma família e estaríamos juntos à mesa do jantar! Um dia ouvi um terapeuta dizer, inconsciente do poder bíblico e passado das suas palavras, “Ó senhor Manuel, levante-se e ande!” E o Homem, admirado consigo mesmo, levantou-se e andou. Passaram-me as dores e os emperros mas ainda lá voltei dois dias só para saborear a humanidade, só para ver a esperança, só para voltar a acreditar no meu semelhante. Ali, o profissionalismo e a dádiva são um só e o mesmo. Para quando, mana, estas coisas nos jornais? Para quando, mana, estas coisas a abrir o jornal das oito e a agitar o espírito confuso e conturbado dos nossos irmãos portugueses? Para quando esta humanidade para sempre?

Beijo,
Mano.


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Only You

[Esta é a primeira publicação deste texto: 19 de Maio de 2009]

Querida mana,

anos depois da escrita guardada, publicada e republicada, venho trazer-te novas carreirinhas de letras, fileirinhas de palavras a enformar as ideias que quero partilhar contigo. Será este o primeiro de uma nova série de mails que te vou escrevendo à medida que a vida escorre pelas paredes do tempo.

Há uns tempos li numa revista de curiosidades mais ou menos científicas que o cérebro nunca deixava de pensar. Nunca parava. Mesmo quando dormimos e até quando estamos em coma, há uma série de funções que a massa cinzenta que nos ocupa o crânio continua a comandar. A propósito disto, desenvolvi uma outra ideia, menos científica, ainda, mas em que gosto de acreditar: eu sei de fonte segura, a minha, que nunca deixamos de ouvir música! Por vezes pode não ser a música como a entendemos, com autor, gravada na bolacha de plástico… pode ser mais informalmente produzida o que não quer dizer que não seja música! Por vezes agradável, outras nem tanto. Acho até que os músicos, o que fazem, é limpar esta música do quotidiano, filtrá-la e dar-no-la a conhecer de forma mais agradável para os sentidos…

O que fazemos, depois, é seleccionar aquelas que nos despertam as emoções que mais gostamos de sentir e catalogá-las como preferidas.

Vem isto a propósito de, um dia destes, ter andado a vasculhar nos meus discos de vinil, passatempo mais recente do teu sobrinho que descobriu a maravilha da imperfeição por oposição à assepsia digital dos discos compactos, e ter encontrado um álbum dos Platters onde figura, entre outras preciosidades o velhinho “Only You”.

Era a canção preferida do nosso pai. A única e a primeira que lhe ocorria quando instado a responder à velha e pouco original questão: “Qual é a tua música preferida?” O texto teria pouco interesse se ficasse por aqui. O que me interessou mais foi indagar, à laia de explorador dos recantos da mente, o mundo de referências que a música contém…

Não se trata só de uma canção de amor. Trata-se de uma canção de amor e exclusividade. A mesma exclusividade que os nossos pais reservaram um para o outro. A dedicação única de uma vida. Mais, trata-se de uma canção de amor na década de cinquenta que invadiu a de sessenta! Trata-se de um tema que marcou uma forma de estar. Noites no clube de baile, orquestras ao vivo, cigarros despreocupados, saias de roda ao som do twist, e, claro, um “slow” partilhado, uma mão na cintura, a outra mão numa mão à espera de fechar-se nela e as emoções todas de uma noite de estórias a contar pela vida fora. Vivacidade e energia nas associações recreativas… o ARA! lembras-te do ARA? Associação Recreativa do Amboim. O ARA era um desses lugares mágicos onde se entrava inocente e saía dançante. Um lugar onde a magia das noites mágicas acontecia na vida das pessoas. A primeira mão dada, o primeiro pedido de namoro, a primeira autorização da figura paterna, aquele fundamental, inesquecível primeiro beijo…

Os Platters condensaram tudo isto, todo este mundo de vivências, em dois minutos e quarenta segundos. Sabes mana, eu acho que o pai não ouvia a canção. Ele vivia-a. E revivia a sua própria e extraordinária vida. E eu, agora, venho revivê-la contigo. A dele e a nossa com ele! Assim, como que a querer fintar a inexorabilidade do tempo, a fugacidade dos dias. Sentindo e ouvindo os Platters de novo!

Beijo,
Mano.