Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


2 comentários

O Carro dos Bombeiros

[Uma enigmática campanha anti-terrorista promovida por uma organização desconhecida está a percorrer vários países europeus, incluindo Portugal, através de anúncios publicados em jornais e revistas de grande circulação, mas ninguém sabe quem a financia. O Exército americano prevê manter cerca de cem mil soldados americanos no Iraque até 2006. Jornalistas portugueses ficaram autorizados a acompanhar o Sub-Agrupamento Alfa da GNR para Nasiriyah, Iraque. Carlos Raleiras, repórter da TSF, continua desaparecido e sobre ele pesa um pedido de resgate de 50 mil dólares. O jornalista foi raptado perto da localidade de Marditz, no Sul do Iraque, quando seguia com mais oito enviados para Bassorá. No mesmo ataque foi ferida a tiro a jornalista da SIC Maria João Ruela, que teve que ser operada a uma coxa. Entre 24 de Outubro de 2002 e 24 de Outubro de 2003, os canais generalistas portugueses emitiram 5612 notícias (correspondentes a mais de 219 horas) sobre o “escândalo da Casa Pia”, as quais foram vistas por uma audiência média de 8,5% (798 mil indivíduos). Os dados constam do Telenews da MediaMonitor divulgados na mais recente edição da newsletter da Marktest.

[Data da primeira publicação: 28 de Novembro de 2003]

O Carro dos Bombeiros
Querida mana,

É interessante a mente humana. É interessante a lógica torcida, retorcida mas implacável e paradoxalmente correcta como se movimenta e manifesta mesmo quando erra! Frase complexa e complicada esta! Donde vem? Vem de pensamentos ainda mais emaranhados que procurarei desentrançar para ti. Estava aqui a pensar, para te dizer, como as noções de Espaço e Tempo se alteram à medida que crescemos e como isso altera, também a visão que temos do universo que nos rodeia e consequente gestão das nossas atitudes, da construção que fazemos da nossa própria imagem. Não raro surpreendemo-nos a pensar “eu não sou este” ou “eu já não sou este” ou ainda “eu já fui este? Como foi possível?” Estas reflexões não implicam, necessariamente, arrependimentos. Implicam somente mudanças, crescimento. A generosidade com que a Natureza nos presenteia o espírito leva a que os espaços comecem por ser enormes. Qualquer quintal é um bosque, qualquer rua é uma avenida, qualquer casinha humilde e parca de corredores e metros quadrados é um castelo de aventuras. O tempo passa, os olhos abrem-se para o mundo e, curiosamente, começamos a ver menos. Os espaços encolhem-se. Os sonhos entrecortam-se de sobressaltos e obstáculos. Com a ideia do curso do Tempo o fenómeno repete-se. No dealbar da vida os dias são longos, as semanas são extensas e os meses são vidas de histórias para contar, períodos infindáveis de grandes esperas, grandes ansiedades e, claro, sofrimentos incontáveis. Por essa altura, me parece, a nossa mente não alcança um ano no horizonte, daí o desapego material que tanto necessitaremos mais adiante no tempo e que, quase invariavelmente, esqueceremos absortos na prisão das liberdades que chegam com a idade adulta. Isto te escrevo para lembrar contigo como os dias eram longos quando brincávamos no quarto de arrumação. O mundo começava e acabava ali em tardes infindáveis de risos, de brincadeira inocente, de brigas, de corridas, de fazer prendas artesanais para o dia do pai, para o dia da mãe. Foi sentados no chão desse quarto que ensaiámos o crochet de um naperon para a mãe. Era aí que eu alinhava para as corridas os carrinhos de brincar que tinham sobrevivido à guerra colonial e, mais risco menos risco, mais amolgadela menos amolgadela, ainda davam para imaginar correrias. De todos eles, um havia que me entusiasmava mais que os outros. Um havia que eu, o motorista, secretamente e às escondidas de mim mesmo, o juiz da corrida, favorecia com empurrões extra para ganhar: era o carro dos bombeiros. Não é original. Todos os miúdos, um dia, quiseram ser bombeiros. É o dom da dádiva que nasce pujante connosco e que depois deixamos esmorecer à excepção daqueles que mantêm a força e a pureza de coração suficientes para continuarem.

São pessoas de excepção os bombeiros. E são-no, quanto a mim, porque conservam em bruto, pelos anos da vida, a capacidade de dar, o heroísmo intrínseco e anónimo que os caracteriza. Porque envergam uma farda que só tem dois destinos: superar uma dificuldade ou morrer a tentar! É por isso, mana, que me entristece e envergonha quando vejo, nos dias que correm, aparecer uns homenzinhos cinzentos na televisão a atribuir incompetências e culpas aos bombeiros. Onde pára o respeito pela nobreza de quem dá a vida pelos outros? Que incompetência é a dos bombeiros? A incompetência de defender voluntariamente aquilo que não é deles? A incompetência de arriscar a vida? A incompetência de morrer no posto de trabalho? Quantos, mana, desses senhores cinzentos de poder na mão, já morreram no posto de trabalho? É uma pena e uma tristeza que se esteja a matar a nobreza de ser-se bombeiro com a injustiça das palavras mal proferidas, com a cegueira dos interesses económicos. Eu cá gostava de poder acreditar que as crianças, pelo mundo fora, continuam a sentir o peito crescer de emoção e grandiosidade sempre que vêem um carro de bombeiros. Nem que seja de brincar. Nem que seja alinhado para uma corrida num soalho velho de uma casa velha, outrora castelo das nossas brincadeiras no tempo infinito da nossa infância.

Beijo
Mano


Deixe um comentário

Oh Toneca, viste o topázio?

[Uma enigmática campanha anti-terrorista promovida por uma organização desconhecida está a percorrer vários países europeus, incluindo Portugal, através de anúncios publicados em jornais e revistas de grande circulação, mas ninguém sabe quem a financia. O Exército americano prevê manter cerca de cem mil soldados americanos no Iraque até 2006. Jornalistas portugueses ficaram autorizados a acompanhar o Sub-Agrupamento Alfa da GNR para Nasiriyah, Iraque. Carlos Raleiras, repórter da TSF, continua desaparecido e sobre ele pesa um pedido de resgate de 50 mil dólares. O jornalista foi raptado perto da localidade de Marditz, no Sul do Iraque, quando seguia com mais oito enviados para Bassorá. No mesmo ataque foi ferida a tiro a jornalista da SIC Maria João Ruela, que teve que ser operada a uma coxa. Entre 24 de Outubro de 2002 e 24 de Outubro de 2003, os canais generalistas portugueses emitiram 5612 notícias (correspondentes a mais de 219 horas) sobre o “escândalo da Casa Pia”, as quais foram vistas por uma audiência média de 8,5% (798 mil indivíduos). Os dados constam do Telenews da MediaMonitor divulgados na mais recente edição da newsletter da Marktest.

[Data da primeira publicação: 14 de Novembro de 2003]

Oh Toneca, viste o topázio?

Querida mana,

Estava aqui a pensar na nossa família como quem passa as tropas em revista. De repente, apareceram-me todos à frente, os mortos e os vivos, encheram o peito de ar e perfilaram-se numa longa fila. Que heterogeneidade! Os mais simples, os mais complexos, os mais generosos, os mais extrovertidos, os mais preocupados, os mais tímidos, os mais baixos, os mais altos, os mais magros, os mais gordos e todos, sem excepção, com a marca indelével do amor que lhes tenho. Do amor que lhes temos. Enquanto os percorria, um a um, na minha mente, demorava-me um pouco em cada um e atirava-lhe um sorriso como que a dizer “conheço-te bem!”. Decidi, por razões que agora não vêm ao caso, parar junto de um tio nosso e conversar com ele. Sabes, há pessoas que nascem simpáticas, vivem simpáticas, e não sabem estar de outra maneira senão simpaticamente. Há mesmo pessoas em quem a simpatia não provem da educação. É um factor endógeno, determinante, não determinado e qualquer que fosse a educação que alguma vez tivessem recebido a simpatia precedê-los-ia, sempre! Nasceram assim como quem nasce com um sinal no braço, como quem nasce com esta ou aquela cor de olhos, como quem nasce com o dedo mindinho do pé esquerdo sem unha. Não é um defeito nem um feito, é uma forma de estar enraizada desde antes do ser. Eu acho que o nosso pai nasceu assim mas hoje não é sobre ele que reflicto, não é sobre ele que te escrevo.
Não quis Deus que este nosso tio viesse grande nos tamanhos físicos, mas quis que trouxesse consigo um coração que quase lhe não cabe no peito. É uma pessoa a aproximar-se e ele a dizer de braços abertos e olhos brilhantes “então, rapaz?!”. E aquela expressão vem sempre marcada de uma comunhão inexcedível, de um querer saber para fazer bem, de um sentir grande do tamanho do mundo como se dele fossemos filhos também. Tem pela vida um respeito extremo mas não a teme. Encara-a sempre com aquela disposição natural de quem quer seguir em frente, de quem sabe que se não pode parar, de quem quer tirar dela o melhor que ela tiver para dar.

Nos dias que vivemos, de tão soturnos e cinzentos contornos, e em que os seres humanos parecem estar a enveredar pelas opções complexas e complicadas da vida, venho admirar contigo a simplicidade com que o tio Toneca a doma. É quase como quem a orienta, amparando-a, mas a não agarra à força na ânsia de a dominar e controlar e, no entanto, controla-a. É um saber invejável este. É o saber viver deixando viver, é o saber respeitar ganhando assim o direito ao respeito. Quase parece simples, quase parece fácil. E depois, surpreende-me, por entre as dificuldades e as partidas que o destino lhe tinha reservadas, a alegria, o peito feito para mais uma história, para mais um sorriso. A simpatia. Parece-me mesmo que se um dia o tio Toneca quisesse ser antipático ou indelicado não o conseguiria. Há nele uma força que lhe sobrevém a todas as outras e essa impele-o a uma delicadeza, a um gesto cortês, a uma atitude conciliadora, a optar pelas coisas simples e bonitas do quotidiano. No outro dia, estivemos com ele e, terminada a visita, fiquei orgulhoso por ter um tio assim. Pensei nas semelhanças com o pai. Não nas mais evidentes, claro, essas saltam à vista: as mãos, a careca, a face… mas nas outras. Na força que se impõe pela serenidade, no coração grande de querer ver todos bem, no procurar uma solução que a todos agrade. E fico-me a pensar se não será ele o que temos de vivo e pulsante mais próximo do que seria o pai? Por vezes ainda me lembro das brincadeiras que tinham juntos. Tudo se resumia a jogos de palavras que resultavam de um passeio, de um piquenique, de um dia de farnel às costas, pinheiros verdes, dedos entalados nas portas e outras histórias que ficavam para contar. Tudo prometia um sorriso, tudo evocava um pensamento malandreco e divertiam-se assim, os irmãos, a brincar com as palavras. Fosse porque uma certa terra se chamava Mesão Frio, fosse porque num certo cruzamento e perante um sinal de STOP a tia Hilda advertira “Oh Toneca, viste o topázio?”.

Tiravam da vida tudo o que ela permitia e não pediam mais estes sábios de saber viver com o que se tem, sem pensar no que se não tem, sem saber nem querer saber como seria se se tivesse mais… só viver-se assim, simples, fácil e descomprometidamente com o que os rodeia, com os braços abertos, os olhos brilhantes e com simpatia… uma desconcertante e acolhedora simpatia: “então, rapaz?!”

Beijo
Mano


Deixe um comentário

A Espera

[Christian Science Monitor, em prefácio ao novo livro de Todd Oppenheimer, ‘The Flickering Mind- The False Promise of Technology in the Classroom’, reflectindo sobre o impacto da tecnologia dos computadores nas escolas norte-americanas, afirma que “putting computers in classrooms has been almost entirely wasteful, and the rush to keep schools up-to-date with the latest technology has been largely pointless”. Os novos programas de Português para o Ensino Secundário continuam a ser alvo de contestação: desta vez é a referência ao programa televisivo “Big Brother” num manual. A Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) considerou uma prática ilícita “a intercepção de conversas telefónicas por iniciativa de jornalistas, seja em que circunstâncias for”.

[Data da primeira publicação: 31 de Outubro de 2003]

A Espera

Olá mana,

Aproxima-se o dia 1 de Novembro, dia de todos os santos, dia que me acorda na memória rituais populares de recorte religioso e pagão. Pelo que me lembro, o frio mostrava-se forte mas quase sempre a chuva se encolhia e os dias abriam-se luminosos aos nossos desejos de uma jornada diferente. Pela manhãzinha, bem cedo, levantava-se a mãe e preparava o farnel da diversão. Pratos, talheres, copos, guardanapos, uma toalha estampada de frutos e algumas coisas menos comuns como um frasquinho com um pouco de detergente e uma cafeteira de café, um saquinho com um punhado de sal e duas folhas de louro. Juntava os embrulhos e os sacos e colocava-os ao cimo das escadas. Pouco depois juntava-se-lhe a Mimi e os gestos de preparação multiplicavam-se por dois. Por fim, eu, tu e o pai acordávamos para o dia com os corações à espera de coisas diferentes, de risos mais abertos, de momentos que sabíamos iam acontecer mas surgiam sempre renovados. São assim os rituais. Oferecem-nos a certeza das coisas que se repetem sem surpresas e a surpresa de se repetirem sempre diferentes. Todos no carro, lá íamos pelas curvas da conversa, pelo timbre entusiasmado das vozes a caminho de um dia diferente. Olhávamos o rio, as árvores e tudo transpirava harmonia. Comentávamos as mesmas filas de trânsito, discutíamos sempre onde teríamos assentado arraiais no ano anterior e acabávamos por ficar no mesmo local ainda que alguns de nós afirmassem que não havia sido bem ali. Chegados à Feira de Santa Quitéria iniciava-se o jogo de visita aos vendedores. O melhor pão aqui, a melhor carne ali, as morcelas, o chouriço e, claro, umas quantas castanhas para assar. Parávamos com frequência para cumprimentar outras famílias que, assim, fora da azáfama do quotidiano, pareciam mais felizes e bonitas.
Iniciava-se, depois, um ritual interessante. Era o acender do lume, o temperar das carnes, o retalhar das castanhas e outros pequenos gestos que acompanhavam a felicidade de estarmos a preparar uma refeição ao ar livre. O pai fumava um cigarro de contemplação, a Mimi desvendava os segredos de uma culinária empírica e, sem dúvida, extraordinária e a mãe garantia o sucesso da operação com a sua eficiência e a sua capacidade de trabalho mesmo quando já todos estávamos cansados. Nós corríamos monte acima e monte abaixo em aventuras de imaginosos contornos ou, se o frio apertasse muito, embrulhávamo-nos numa manta e ficávamos a ver como era bom estar quentinho com o frio à nossa volta. As conversas impunham-se, depois, com o cheirinho do café a dominar os ares e repetiam-se nos temas e nos assuntos. Os olhos de todos nós brilhavam mais, as vozes eram mais tranquilas e o coração dos homens abria-se mais para dar do que para receber.

E, nisto tudo, onde fica a espera? Porque venho falar-te de uma espera e ainda nada disse sobre ela? Por tradição e até por questões semânticas, a espera movimenta-se nos anéis da paciência e esperar é, de alguma forma, ter paciência, quiçá, capacidade de sofrer. Esperar é dar duas vezes. É dar a presença e dar o tempo de aguardar outra presença, uma que nos complete. Muitos dizem que não gostam de esperar nem de fazer esperar. Pobres! Duplamente pobres! Se não gostam de esperar é porque nada há que valha a pena a sua dádiva pessoal da paciência, do aguardar pelos que nos completam. Se não gostam de fazer esperar é porque não acreditam que possa haver quem queira sentir a sua falta por momentos para, pouco depois, a sentirem completada com a presença. Por vezes, penso mesmo que, se não houvesse espera, a presença não faria o mesmo sentido… tornava-se um petisco insosso, um dia sem sol, uma noite sem lua. E por que esperávamos nós nesses dias de todos os santos que foram levados na enxurrada do tempo e de que resta agora só o escolho da memória? Se bem te lembras, assim que saíamos de casa, o pai passava pelo cemitério. A Mimi comprava umas flores, entrava no recinto e nós esperávamos. Sentados, em silêncio, sem muito o que dizer uns aos outros, sentíamos um pequeno adiar das alegrias que estavam para seguir-se mas esperávamos sempre. Nunca contrariávamos aquele ritual de espera e de respeito. Era como se o silêncio dos silenciados falasse mais alto. Era como se se impusesse um respeito secular que não sabíamos bem de onde vinha mas que nos não atrevíamos, sequer, a questionar. É interessante pensar que passamos uma vida a tentar que nos oiçam, a tentar encontrar um lugar para estarmos e a tentar encontrar alguém que espere por nós, sempre! E é curiosamente quando superamos a fronteira fina e frágil da morte que o silêncio dos outros permite que fale a voz do que fomos, que conquistamos todos os espaços que ansiávamos e, mais do que isso, é quando partimos para não voltar que os outros encontram tempo para esperar! “Mísera sorte, estranha condição”.

No próximo dia um de Novembro estaremos juntos e subiremos, de novo, Santa Quitéria e eu venho propor-te que esperemos um pouco por duas das personagens que ocuparam estas linhas e que já tiveram a coragem de atravessar a fronteira. Um porque sabia fazer-se esperar no ofício de respeitar os que partiram. O outro porque esperava com a paciência e o respeito de quem abre o coração ao mundo para dar de si o que melhor de si encontrar!

Beijo
Mano.


1 Comentário

O Suporte

[Christian Science Monitor, em prefácio ao novo livro de Todd Oppenheimer, ‘The Flickering Mind- The False Promise of Technology in the Classroom’, reflectindo sobre o impacto da tecnologia dos computadores nas escolas norte-americanas, afirma que “putting computers in classrooms has been almost entirely wasteful, and the rush to keep schools up-to-date with the latest technology has been largely pointless”. Os novos programas de Português para o Ensino Secundário continuam a ser alvo de contestação: desta vez é a referência ao programa televisivo “Big Brother” num manual. A Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) considerou uma prática ilícita “a intercepção de conversas telefónicas por iniciativa de jornalistas, seja em que circunstâncias for”.

[Data da primeira publicação: 17 de Outubro de 2003]

O Suporte

Querida mana,

Cumprindo o prometido de há umas semanas atrás, venho oferecer-te, como quem dá uma flor a cheirar, o odor nostálgico da minha primeira memória. Presente agradável, talvez, como as flores e, certamente, efémero como a memória dos homens. Emerge do gesto a intenção clara de partilhar contigo algo que me é muito caro, muito precioso, pois representa para mim o princípio de tudo, a primeira de todas as coisas, a imagem primeira e a primeira sensação. Por egoísta que te possa parecer, a verdade é que não me interessa muito a teoria do “Big Bang”, o evolucionismo darwinista, e mesmo, com o devido respeito, Adão e Eva me dirão pouco a partir do momento em que me roubarem o que estou para dar-te. A brincadeira tinha-me esgotado as forças, o dia fora, decerto, repleto de aventuras e imaginações e o sono abatera-se-me pesado e algures no regresso adormecera no banco de trás. Sei que isto foi assim mas não me lembro de nada! A única e primeira coisa de que lembro é de ir, com os olhos fechados a subir as escadas para o primeiro andar. Levava o corpo todo inclinado para trás. Não fiques perplexa. Eu sei que uma pergunta te salta agora à mente: como é que um miúdo de dois anos e picos sobe escadas de olhos fechados e corpo inclinado para trás? A resposta é simples. Tinha uma orientação e, fundamentalmente, tinha um suporte. Uma mão forte e enorme, aberta e espalmada a ocupar-me as costas todas evitava a queda, orientava o caminho e, sobretudo, oferecia-me a força para subir. Pois… o quadro não é muito nobre, a primeira recordação de uma pessoa ser a subida de umas escadas. Mas, para mim, é nobre o suficiente. Mais tarde já os meus olhos viam pouco mais do que as raparigas a rondarem-me a alma e a ocuparem-me o tempo tive a mesma sensação. Teria, talvez, quinze anos. Estava doente. Necessitei de ir à casa-de-banho. Quando lá cheguei uma tontura tomou conta do mundo esfumado e toldado pela semi-inconsciência e tombei para trás. Ainda hoje penso que semelhante queda, assim, de corpo morto, a encontrar o duro do chão poderia ter sido fatal. Mas o meu suporte lá estava. A mesma mão a amparar-me as costas, a mesma força, o mesmo orientar. Parecia uma predestinação ter aquela mão comigo nos momentos chave. Uma coisa que eu sempre achei extraordinário no nosso pai foi a forma intuitiva mas incrivelmente oportuna como ele escolhia os momentos para nos tocar. Se bem te lembras não era homem de beijinhos e festinhas constantes, não era frequente, diria mesmo o contrário, era raro vê-lo dirigir-se-nos para nos abraçar mas… a ausência da quantidade nunca perturbou a eficácia da qualidade. Olhava-nos, falava-nos e tocava-nos exactamente quando precisávamos que o fizesse. É esse o discernimento que invejo e procuro. Como é difícil!

Um dia destes, esta minha primeira memória cruzou-se-me nas entrelinhas do cérebro com esta questão tão feia e melindrosa que nos assalta os lares todos os dias. A Pedofilia. Algo que me parece claro é que o sistema judicial português a que chamamos mais latamente e plebeiamente de justiça não funciona, funciona mal e, pelo menos, da suspeita já se não livra. Há pessoas que são presas e soltas. Outras há que são soltas e presas. Outras há que são só presas e também as há que nunca são presas. Tudo isto, depois, é alvo de uma série de combinatórias politico-sociais que emergem mais da nossa revolta de pais e cidadãos do que propriamente de raciocínios bem estruturados. Algo há, no entanto, que fica iniludível: ninguém ainda deu mostras de ter compreendido o critério. O critério moral, o critério religioso, o critério social, o critério político, o critério criminal, o critério… o critério… resta invisível e um dia destes vai-se a ver e a culpa de tudo isto era das criancinhas!!!

E porque te falo disto agora? Que tem isto a ver com a minha primeira memória? É o suporte, mana, é o suporte! Não podendo contar com a eficácia e rapidez da justiça temos de apostar no suporte. Temos de construir e ajudar a construir pais atentos, pais que se não distraiam, pais que, como o nosso, estejam lá quando os filhos precisarem mesmo que sejam poucas vezes. A nossa acção não se deve deixar levar pelo jornal das oito. O país não se pode decidir à hora do jantar. Os castigos pesados não serão sentenciados em directo se é que alguma vez serão sentenciados! Os autores do nojo nunca sentirão nojo porque não sabem o que o nojo é… resta-nos amparar as nossas crianças quando estiverem para cair, resta-nos apostar na família. Não tem de ser uma família de sangue. Basta que seja uma família de amor, uma família prevenida. Não precisa de ser uma família numa vivenda, basta que seja na escola, na igreja, num lar, na rua! Prevenida! Não são precisos tribunais inaptos nem advogados que dizem as mesmas coisas de maneira diferente, basta que haja uma mão aberta a orientar e a amparar aqueles que têm o direito de viver a inocência nos dias de inocência.

Um beijo grande,
Mano.


Deixe um comentário

Mimi

[Christian Science Monitor, em prefácio ao novo livro de Todd Oppenheimer, ‘The Flickering Mind- The False Promise of Technology in the Classroom’, reflectindo sobre o impacto da tecnologia dos computadores nas escolas norte-americanas, afirma que “putting computers in classrooms has been almost entirely wasteful, and the rush to keep schools up-to-date with the latest technology has been largely pointless”. Os novos programas de Português para o Ensino Secundário continuam a ser alvo de contestação: desta vez é a referência ao programa televisivo “Big Brother” num manual. A Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) considerou uma prática ilícita “a intercepção de conversas telefónicas por iniciativa de jornalistas, seja em que circunstâncias for”.

[Data da primeira publicação: 3 de Outubro de 2003]

Mimi
Querida mana,

Escrevo-te hoje sobre a Primavera, a Convicção e a Fé. Porquê? Não sei bem, talvez porque se aproxima o Outono, porque as convicções estão em falência e a Fé vai, a pouco e pouco, perdendo a força de outros tempos. Tempos em que era mais autónoma, menos justificada e mais justificação, menos imiscuída em assuntos da razão e da ciência e mais ligada àquilo a que realmente pertence: a nossa existência espiritual.

O dia não podia estar mais radioso como ainda o atestam as fotos que por cá ficaram a mostrar-nos que estamos mais velhos, gordos e sedentários. O Sol despontou com vontade de fazer sorrir os mais tristes, com ânsias de fazer acordar na nossa existência pequena e condicionada de humanos e terrenos vontades empreendedoras de ser melhor, de ir mais além… a felicidade talvez. É assim o astro rei: lembra-nos, por vezes, coisas que não sabíamos ter na memória, no espírito. A Ladeira de Santa Justa perdera o seu ar pedregoso e pardacento e a igreja com o mesmo nome exalava vozes, sussurros, passar atarefado de gentes que, de certo, preparavam algo. Mesmo os que a não frequentavam se aperceberam com facilidade que aquele Domingo não era só de missa sendo, bem entendido, que a missa nunca é só no que a quantitativas medidas diz respeito. É sempre uma festa, uma comunhão. Mas aquele dia era, sem dúvida, diferente. Subi a ladeira e entrei na igreja e lembro agora para nós o que minha mente registou então. Do escuro e do fresco sobressaía o branco. O branco das flores nos altares e nos bancos. O branco das fitas. O branco das camisas e o branco dos vestidos das meninas que faziam a primeira comunhão. De todas, uma me interessava em particular. Emergia-lhe a face morena de tanto branco, brilhavam os olhos negros que não escondiam alguma apreensão ou, pelo menos, a seriedade e a responsabilidade que o acto impunha. Estavas bonita, ali, de olhos postos em não sei quê, em nem tu sabes o quê. O inegável é que a Primavera entrara na igreja para ajudar à festa. Entrara com as flores, com os sorrisos abertos, com os olhares de esperança e com aquela pontinha de vaidade não pecaminosa que emanava dos familiares de vós todos. A convicção entrara contigo e com quem te guiara até ali com a sua voz alta e forte e convicta de fazer bem, com a sua forma franca e aberta de encarar a vida, de a abraçar, de a viver sempre de peito feito e intenções claras. Era daquelas presenças de encher salas vazias, de por a comunicar os mais tímidos e punha convicções em tudo o que fazia, até na forma com partia o pão para as torradas! E foi assim que esse se tornou num dia de convicções. As convicções do pastor que acredita no seu mais íntimo sentir que está a orientar para o melhor e a convicção do cordeiro que quer ser orientado.

Colocadas na ordem dos pensamentos a Primavera e a Convicção, falta dizer-te por que é que, para mim, esse foi um dia de Fé. A bem da verdade não se tratava da minha Fé, eu acordei bem mais tarde para esses caminhos da vida, tratava-se da tua Fé. Os professores tinham-me ensinado até então e mesmo depois disso que a Fé era uma coisa que se sentia mas não se via. Erraram. Humanos que são é natural que errem mesmo tendo o fardo pesado da responsabilidade de ensinar. E erraram porque nesse dia eu vi a Fé. Não sabia que a estava vendo, é certo, mas vi-a. Na altura senti uma coisa esquisita, assim como quem olha para a paisagem e não sabe o que está a ver mesmo estando perante ela. Anos mais tarde, quando o destino me deu esta missão formidável de ter um filho e ser obrigado a encontrar resposta para todas as perguntas, mesmo as que a não têm, sou surpreendido com esta: “Ó pai, o que é a Fé?”. E foi aí que senti o flash da memória escarrapachar-me diante dos olhos a tradução em letras garrafais do sentido daquela tua imagem forte e compenetrada de menina vestida de branco no terceiro lugar do quarto banco ao lado daquele teu colega loirinho com quem se dizia namoriscavas, mas, claro, tudo mentiras de quem gosta de se armar em Santo António e ver o casamento onde o não há. A Fé eras tu, ali, de branco, com olhos postos No melhor de ti que é isso que é Deus, o melhor que há em nós. A Fé é aquela força de querer seguir um caminho bom, de acreditar porque… se acredita, de acender uma velinha todas as noites durante mais de cinquenta anos, sem nunca falhar, para iluminar uma santa que só foi de barro quando lhe faltou a dedicação e desvelo de quem a iluminava. Ou se iluminava. Foste uma menina de sorte. E fui-o eu, também, por termos tido a oportunidade de partilhar o correr dos dias com a senhora que todas as noites punha uma velinha. Como deves calcular, eu não disse ao meu filho que a Fé eras tu! Mas a verdade é que és a minha primeira imagem de Fé, a minha aparição pessoal e egoísta e a ti fica-te a responsabilidade de honrares os sentimentos que despontaste.
O resto é assunto pessoal de cada um, a ser gerido por cada um. Mas ainda gostava de ver outra vez a Fé!

Talvez te fique uma questão na mente ao ler o atabalhoado destas linhas. Porque é que chamei “Mimi” a este texto. Tem a ver com a Primavera, com a voz de rouxinol impregnando os dias, com convicções de fazer as coisas, com Fé de viver. É só um nome. Um nome que tu conheces bem, melhor do que eu, até, e que espero se cruze na tua mente com as palavras que agora te deixo.

Um beijo grande,
Mano.


1 Comentário

O Mundo Depois de Harry Potter

[Continua, em Portugal, uma das mais violentas vagas de incêndios. Para além da suspeita de fogo criminoso, vêm a lume, na imprensa, notícias que envolvem interesses paralelos como seja o comércio de aluguer de helicópteros para o combate às chamas. A saga de Harry Potter conquista o estatuto de livro mais vendido do mundo. A sua divulgação não é pacífica.

[Data da primeira publicação: 19 de Setembro de 2003]

O Mundo Depois de Harry Potter

Querida mana,

Fiz hoje um exercício que costumamos fazer na adolescência quando nos assaltam as grandes dúvidas existenciais, quando queremos saber quem somos, donde viemos e qual a nossa missão neste mundo que nos reveste. Tentei fixar a memória no seu ponto mais remoto: a minha primeira lembrança. Quase sempre fazemos isto levados pelo humano e natural impulso de querer saber onde começámos. A experiência não é de fácil resolução uma vez que o nublado do tempo adensa-se à medida que recuamos e esfumam-se as certezas para ficarem as impressões. Ainda assim, tentei mexer na memória como faziam algumas pessoas antigamente com a água quando esta se bebia dos lagos e nos não chegava a casa pela comodidade e higiene dos canos públicos. Juntei as mãos abertas e depois em movimentos lentos e cuidadosos ia-as separando para as juntar outra vez. A ideia era separar a lembrança pura e potável dos lixos que o tempo lhe havia juntado. Sosseguei, pouco depois, quando isolei a minha primeira memória, como se de algo precioso se tratasse, embrulhei-a em veludo e guardei-a numa caixinha de prata e prometo falar-te dela um dia destes. Por agora venho falar-te de aventuras que nós dois protagonizávamos a expensas da minha malandrice e do teu tácito e cúmplice acordo. A verdade é que não podias fazer nada senão estar de acordo porque eras um bebezinho pequenino que dormia a maior parte do tempo um sono inocente e só despertavas dele para o mais urgente. Na altura davam-me a missão de tomar conta de ti. Colocavam-te num carrinho de bebé enorme, com umas enormes rodas com molas e um travão e eu tinha-te a ti e à rua inteira para desbravar. Sem que nenhum livro ainda me tivesse educado o pensamento, sem que nenhum jogo didáctico me tivesse ensinado a ser melhor, a ser gente, sem que nenhum plano de apoio pedagógico me tivesse sido aplicado, a minha imaginação funcionava e cavalgava à solta até onde lhe apetecia. Empurrava lento e a muito custo a minha carroça de cow-boy rua acima, escondia-me de índios ferozes e ululantes, protegia deles e dos animais ferozes do velho Oeste o tesouro precioso que transportava comigo e uma vez chegado ao cimo da rua, perdão, ao cume da ravina, havia que descê-la ágil e veloz por entre as gentes que ali passavam onde via hordas de inimigos em perseguição. Preparava a carroça o melhor que podia, verificava os travões, olhava em desafio a descida e a correria iniciava-se, excitante e divertida, e só acabava quando a rua que lhe servia de palco não permitia continuá-la. Voltava a subir a rua e, enquanto o fazia, mudava o cenário, inventava uma aventura nova que justificasse a nossa correria por ali abaixo e depois era mais uma volta na montanha russa da minha imaginação. Nunca precisei que me dessem uma receita, nunca senti necessidade de comprar um imaginário!

Por esses dias dava os primeiros passos na escola. Gostava da bola nos recreios e de jogar às escondidas, gostava da caminhada de casa até à escola pelo fresco da manhã e, pensando bem, até gostava daquela pontinha de medo de poder vir o comboio cuja linha eu segui a pé durante parte do percurso. Ao terminar a primeira classe, quando ainda se chamava assim, ofereceram-me um livro da Anita. Fiquei maravilhado com os desenhos, com as cores, com as expressões do cão, com olhos muito abertos da Anita e li-o com avidez mas, depois dessa experiência maravilhosa de descoberta o meu mundo continuou intacto e à minha espera. O livro era mais limpo e mais perfeitinho do que as coisas que me rodeavam mas era, fundamentalmente, sobre as coisas que me rodeavam e que eu dominava. Fora uma magia, mas uma magia que ocupara só o seu espaço, só o espaço que uma magia deve ocupar.

A semana passada, por entre os afazeres de um ano lectivo que se anuncia a esta minha condição de professor, fui consultar o meu correio electrónico e vi que alguém me propunha que reservasse já o quinto volume de “Harry Potter” em Português pois, apesar de só sair em vinte cinco de Outubro, prevê-se que esgote, aliás, a verdade é que a mais de um mês da sua publicação na versão lusa, milhares estão antecipadamente guardados, reservados, enfim, vendidos. Enquanto fenómeno de vendas e no que concerne à sua aceitação junto dos jovens e não só, “Harry Potter” não é discutível. E é precisamente isso que me assusta: a forma absoluta e avassaladora como se impôs. A forma como tão rapidamente se constituiu num receituário para o imaginário infanto-juvenil. Será que os jovens dos quatro cantos que habitamos não viviam aventuras inimagináveis antes? Será que as vão viver depois? Até que ponto é que “Harry Potter” é uma busca interessante e bem arquitectada da essência do que é ser jovem, nobre e corajoso e até que ponto é que é um livrinho de aventuras como tantos outros mas com uma estupenda máquina de marketing que vende filmes, pastas da escola, estojos, lápis, cromos, copos, canecas almoçadeiras, camisolas, sapatilhas, caramelos e mais um sem número de coisas que já existiam mas que agora “são do Harry Potter”?

O que me assusta na realidade é o espaço que este fenómeno está a ocupar no mundo dos jovens. Será o espaço próprio de um livro, de uma aventura, o espaço próprio da magia de ler, ou estará a impor-se, no quotidiano, para além dos limites do razoável? Uma coisa é imaginar imaginações, outra, bem diferente, é consumir imaginações… É por isto que, pensando que vai sair agora o quinto volume, e que só restam mais dois volumes de magia, me apetece perguntar: que será do mundo depois de “Harry Potter”? Para o teu sobrinho eu já encomendei o quinto mas, se fosse no meu tempo, voltava a subir a rua!

Beijo
Mano


2 comentários

As Chamas da Impunidade

[Continua, em Portugal, uma das mais violentas vagas de incêndios. Para além da suspeita de fogo criminoso, vêm a lume, na imprensa, notícias que envolvem interesses paralelos como seja o comércio de aluguer de helicópteros para o combate às chamas.

[Data da primeira publicação: 5 de Setembro de 2003]

As Chamas da Impunidade
Olá Mana,
As linhas que te escrevo hoje são de tristeza e apreensão.

Invertendo um pouco o que é habitual, não fui ao baú poeirento e nublado da memória arrancar uma qualquer lembrança preciosa e adormecida para depois a rememorar contigo até ao presente e reflectir sobre ele. Desta vez, a força e a pujança dos acontecimentos que marcaram o Verão português fez-me começar por este mesmo presente e as memórias vieram depois a tropel e, também elas, violentas.
Já não posso dizer como tanto se disse e escreveu que “Portugal está a arder”. Neste momento, o destino limita-me as palavras a um odor a cinza e a morte, a uma cor negra e desgraçada e a expressão que me atormenta a alma é tão só “já ardeu!” Como quase todos, sinto uma impotência e uma revolta viscerais que me saem das entranhas pela lágrima, pelo grito surdo, pela contemplação absurda de uma imagem inverosímil há um mês atrás e real de arrepiar, hoje. No regresso de férias vi o inferno, os meus olhos não queriam ver o que o cérebro me estava dizendo que viam. Entre Portalegre e Abrantes numa extensão só mensurável pela expressão “até onde a vista alcança” tudo está queimado, seco, negro, morto. E contudo, este horror era só uma parcela do verdadeiro desastre, da tragédia inteira que ceifou flora, fauna, habitações e vidas humanas. Ainda que muito nos custe admitir a verdade é que o Portugal verdejante de pinhais de beira da estrada a festejar piqueniques está a agonizar em cinzas.

Como é costume, como é natural e como é humanamente desejável multiplicaram-se os esforços e as ajudas e as tentativas de atenuar a miséria que o fogo semeou. Nisto, portugueses, somos bons. No remediar humanitário, no estender de mão. Sem dúvida. Não é isto que me preocupa. O que realmente me preocupa é a impunidade. Pelo que leio nos jornais e vejo na televisão, toda a gente sabe que há “esquemas” que envolvem uns e outros, proprietários de aviões, madeireiros, investidores em terra, construtores de grandes complexos turísticos. Só nunca vejo nem os uns nem os outros. A Culpa, em Portugal, raramente tem rosto embora se saiba que tem mão criminosa! Os suspeitos entram e saem das cadeias mais depressa do que os doentes das filas de espera nos hospitais. Começam por ser grandes criminosos e afinal nunca o eram. Se reparares bem, mana, o fogo que devorou o nosso país este Verão em proporções inimagináveis foi todo acidental, obra do acaso, e, mais abstracto ainda, função do azar.
Faço este parágrafo propositadamente para te escrever a minha tese que, de resto, é curta e linear: o que consumiu Portugal foram as Chamas da Impunidade. O saber antecipado do funcionamento entorpecido do sistema de prevenção, do sistema de vigilância, do sistema policial, judicial e punitivo. Já disse. E chega-me. Claro que podia alongar-me com teses do género: o dinheiro que se gastou em estádios de futebol… mas não vamos por aí que essa conversa é fácil, facilmente polémica, não leva a lado nenhum e distrai-nos do assunto central.
Vamos às memórias.
Se bem te lembras, durante muitos anos, quando chegava sábado depois da hora do almoço, acomodávamo-nos na 4L do pai e fazíamos uma pequena grande viagem entre Coimbra e São Pedro de Alva. Na altura aquilo era coisa para quarenta quilómetros e cerca de uma hora e quinze minutos de espectáculo. Percorríamos o Mondego “ao contrário” sem percebermos bem se era ele que acompanhava a estrada ou a estrada que o acompanhava a ele. Quase invariavelmente parávamos na fonte mais para saborear a paisagem do que a água. A montanha estendia-se esplendorosa do rio até ao céu e o fim-de-semana começava da melhor forma possível. Em tons de verde e azul, odores formidáveis, e uma banda sonora de marulhar de águas e conversas vadias da passarada. Torres do Mondego, Rebordosa, Penacova, Miro, Friúmes, Porto da Raiva, Silveirinho e por fim São Pedro. Era um caminho de comunhão com a natureza, de cortar a respiração. Nunca cheguei a perceber se demorávamos tanto a percorrer tão pouco por causa da estrada ser mazinha ou se era o pai que, em vez de conduzir o carro, saboreava a paisagem… foi observando esta paisagem que o pai contou uma história que se passara numa terra ali da região. Um homem havia pegado fogo à mata. Apanharam-no. Foi preso. Saiu rapidamente. Apanhou o autocarro para casa. O povo esperou-o. Tal como o fogo que consumiu a nossa floresta este ano, a sua vida fora consumida. Tal como a Culpa dos culpados que estão a assassinar o nosso país, a Culpa da sua morte nunca teve rosto. Todos lá estavam mas ninguém viu nada. O pai contou a história uma única vez e fê-lo com tom sério e grave. O suficiente para eu perceber que os seus contornos morais não eram de perfil fácil. Aquilo não estava certo, na altura, como o não estaria hoje. Mas também não estava errado!

Beijo, mano.


Deixe um comentário

Férias para Sempre, outra vez.

[Políticos franceses entram em reality show. As notícias relativas ao processo Casa Pia mostram que o mesmo está longe de resolvido. Apagão eléctrico em Nova York: inquietante a fragilidade de um empório tecnológico; admirável a tranquilidade e bonomia nas ruas novaiorquinas; recorrente o medo de uma nova tragédia accionada pelo terrorismo. Vaga de incêndios assola Portugal.

[Data da primeira publicação: 22 de Agosto de 2003]

Férias para Sempre, outra vez.
Olá manita,
Não sei que me deu, que avaria foi esta na cabeça ou no teclado do computador, mas o certo é que neste mês de Agosto só me apetece escrever-te sobre férias. Uma noite destas sentei-me à secretária e tentei obrigar-me a escrever sobre outra coisa qualquer. Mas os dedos fugiam-me, as palavras desobedeciam-me à formulação e tudo acabava em férias. Tanto mais esquisito isto se torna, quanto é verdade que não tivemos assim tantas nem tão prolongadas férias. Talvez, por isso, as que tivemos se imponham tanto à memória e forcem a saída para o papel.
Um dia destes, em reflexão vagabunda e desenfreada, concluí que há um verbo privilegiado quando se trata de falar de férias: IR. Ora, IR acorda-me as caravelas da memória, a lembrança de dias que não vivi mas quero contar, recontar, atirar para os mares de gerações não nascidas ainda. Há uma relação íntima entre este ser português que nasceu connosco e a ideia de IR, de viajar, de partir, de regressar. Por vezes, ainda não partimos e já sentimos saudades, já planeamos o regresso. Provavelmente porque nos agrada tanto regressar quanto partir. Por outro lado, partir tem a força de soltar amarras, de virar costas aos velhos do Restelo que nos assustam a alma. O que se me afigurou, de repente, e de forma muito portuguesa, foi que a viagem, propriamente dita, não é, afinal, o mais importante. O fundamental são a coragem de partir e o prazer de regressar. Há Ulisses e há Eneias e há Gamas à solta nisto que acabámos por vir a ser neste canto da península. Imagina uma viagem como uma corda. Quem quer saber do meio da corda? Quem lhe pega pelo meio? Ninguém! Queremos, sôfregos, uma das pontas para poder puxá-la, atá-la, talvez, para poder vivê-la! Talvez só queiramos as pontas porque sabemos o que fazer com elas; é como as viagens: sabemos sempre o que PARTIR e REGRESSAR querem de nós. O que não sabemos é o que fazer com a imensidão de opções que o meio da corda nos oferece. Vem isto a propósito de dizer que os portugueses são valentes “iniciáticos”, extraordinários “conclusores” mas atrapalham-se um pouco com o processo. O processo é que é o diabo.
Já não sei se foram as divagações que me despertaram a memória ou se a memória que divagou e se perdeu nas linhas que acabei de deixar-te. Sei, somente, que tudo isto surgiu quando me lembrei de ter viajado sozinho pela primeira vez. Fui (perfeito do verbo IR) ao Algarve! Tinha terminado o nono ano (quantos séculos!), e os pais ofereceram-me a oportunidade. Como quase sempre na minha vida, agarrei-a. Mochila azul até não poder mais, roupa, alimentos e a alma aparelhada para a aventura. Duas semanas inteiras de liberdade absoluta pela frente e, curiosamente, pouco mais me lembro do que da partida e do regresso! Lembro-me de firmar as pernas e subir para o autocarro, um aceno, um adeus, a mãe para trás, uma coragem de partir. Lembro-me, mais tarde, do fresco da minha Ítaca de primeiro andar em Coimbra e dos despojos de viagem pelo chão à mistura com narrativas empolgadas do que quer que seja que ficou no meio da corda.

Por que te escrevo disto hoje? Por que relembro uma viagem em que não participaste? Para dizer-te que foste comigo naquela altura como estás comigo hoje. Para dizer-te que faltaste tu na minha bagagem, para dizer-te que vinte e muitos anos passados e ainda hoje penso que tudo teria sido mais extraordinário se te tivesse levado comigo mais do que na alma. Para dizer-te que ser irmão é assim: ser o mesmo noutro corpo.

Beijo
mano


Deixe um comentário

Férias para Sempre

[Políticos franceses entram em reality show. As notícias relativas ao processo Casa Pia mostram que o mesmo está longe de resolvido. Apagão eléctrico em Nova York: inquietante a fragilidade de um empório tecnológico; admirável a tranquilidade e bonomia nas ruas novaiorquinas; recorrente o medo de uma nova tragédia accionada pelo terrorismo. Vaga de incêndios assola Portugal.

[Data da primeira publicação: 8 de Agosto de 2003]

Férias para Sempre

Olá mana,
Porque se aproximam as do presente, lembrei-me de rememorar para nós as férias do tempo em que ainda as não organizávamos, as não pagávamos. As férias do tempo em que ir de férias era só isso mesmo: ir de férias. Para ti a festa começava em Julho. Deixavas-nos a caminho da Figueira onde partilhavas emoções e sol quente com a generosidade da Mimi. Por essa altura, usavas o cabelito curto, os olhos despertos e as vontades aguçadas pelo génio de menina-senhora-do-seu-nariz. Eras um poço de força. Durante esse mês rumávamos à Figueira todos os fins-de-semana mais para ver-te do que por causa da praia. “Praieira” eras tu, escutando o vento, horas a fio na água a despeito das vozes adultas cá de fora: “Ó Ângela, já chega! Aquela miúda passa o dia de molho!”
Sempre te ficou bem o mar a enfeitar-te o espírito.
Depois vinha Agosto e a festa era diferente, mais familiar, mais nossa. Lembro-me bem das tardes intermináveis de sábados construídos de emoções carregando sacos, embrulhos, embrulhinhos e tudo o que coubesse e a mãe se lembrasse. Praticamente acartávamos a casa do primeiro andar para dentro do carro. Os colchões, as tendas, os pratos, os talheres, as almofadas, os baldes, as vassouras e quando já parecia estar tudo e o carro não podia com mais nada a mãe inventava mais uns embrulhinhos que acabavam, inevitavelmente, num saquinho com um frasco de vidro com um bocadinho de detergente, outro com sal e, claro, a cafeteira do café. A mãe providenciava, nós transportávamos escada abaixo e o pai, de paciência extrema, arrumava o inarrumável, inventava espaço para os sonhos de partir. Seguia-se o folclore da viagem. O espaço contado, ao milímetro, para cada um, a esperança de aventuras inigualáveis em cima de quatro rodas. Comentávamos os mesmos buracos na estrada, as mesmas curvas, aquela janela, esta casa, um telhado engraçado, e viajávamos em sonhos livres do que deixáramos para trás. Cantavam-se irrepreensivelmente as mesmas desafinações e parávamos mais ou menos nos mesmos locais para oficiar os mesmos rituais. Hoje sei que eram só quarenta quilómetros. Na altura diria que tinham sido dias intermináveis de viagem (a)venturosa. Na altura diria que tinham sido férias para sempre. Hoje sei que foram só alguns fins-de-semana em família. E volta-me sempre esta palavra como marca na pele, como responsabilidade de fazer de novo, de não deixar morrer: família!
Claro que nos instalávamos com alarido, perdíamos os ferros da tenda, falávamos alto, deixávamos de ver-te, aventureira de procurar outros espaços. Mas, como relógio interior da nossa aventura, concluíamos as tarefas essenciais à medida que o dia fenecia. E tudo terminava numa refeição ligeira adoçada com um café. E parece que vejo o pai de perna traçada, muita alva de não ver sol o ano todo. Calções cinzentos e camisa branca de manga curta e dobrada. A mãe envergava um vestido-bata, quase sempre em tons de verde, e movimentava-se afanosa em torno de nos fazer confortáveis. Nessa noite, depois de esticarmos as pernas e encostarmos os pés contra o pano fresco da tenda, adormecíamos felizes!
Nada disto era sofisticado. Tudo isto era verdadeiro.
Nada disto era grandioso. Tudo era à medida do que se podia e nunca acima do que se podia. E essa foi uma lição importante. Uma lição de Liberdade e Responsabilidade. É que, ao contrário do vou vendo e lendo à minha volta, as nossas férias não eram à medida do que se não podia gastar, não eram à medida do que estava para além de nós: eram à nossa medida. À medida da partilha em família, dos momentos em que nos olhámos, dos momentos em que conversávamos, ríamos juntos! As nossas férias não eram marcadas por bilhetes de avião, não tinham o selo de hotéis de luxo e o milagre é que hoje conheço isso tudo mas consigo lembrar-me de ser feliz sem ter necessitado disso. É como se o segredo da vida estivesse em aproveitar muito bem o que se tem e não em ansiar o que se não pode ter. Depois, quem tem uma família, de que precisa mais?

Beijo
mano


Deixe um comentário

A palavra dada

[Em Itália, o Ministro da Justiça, Roberto Castelli, tenta impedir as investigações judiciais a alegadas fraudes fiscais no grupo mediático Mediaset, do primeiro ministro, Silvio Berlusconi, argumentando que o caso caía sob a alçada da lei de imunidade, recentemente aprovada (de certo modo “ad casum”). Não só a oposição, mas inclusivamente parceiros da coligação, como os democratas cristãos, reagiram duramente contra esta pretensão. O Vaticano anuncia que pretende fazer do acto de beatificação de Madre Teresa de Calcutá, em 19 de Outubro próximo, um “acontecimento televisivo de repercussão mundial”. A TVE – Televisão Espanhola – é condenada por ter violado os direitos fundamentais da greve e da liberdade sindical. Esta situação surgiu na sequência da denúncia do sindicato Comisiones Obreras ter denunciado a TVE de manipulação informativa nos “Telediários” do dia 20 de Junho de 2002, dia de greve geral em Espanha. A Direcção do PS diz existir contra este partido uma cabala.

[Data da primeira publicação: 11 de Julho de 2003]

A Palavra Dada
Lembras-te, mana, dos natais em casa do avô Velez em Odivelas?
Lembras-te do alarido dos primos em correrias e risos de celebração de estarmos juntos?
Por essa altura, a avó fazia bolo-rei, torta de chocolate e moldava os seus cozinhados com a dedicação de quem ama, o carinho de quem dá e só quer em troca o sorriso de um neto. A sua figura pequena e a voz macia enchiam a cozinha e quando vinha à sala era para presenciar, com glória, a sua vitória. A vitória de ter as filhas à sua volta, os genros com elas e os netos a desarrumarem-lhe a casa de felicidade.
O avô, esse, como é seu timbre, falava alto, gesticulava, contava histórias de Áfricas antigas e trazia para a conversa todos os que o rodeavam. Era o exercício da memória; era o afanoso relembrar de sermos um clã em torno de si, para si.
Por vezes, as conversas ganhavam o entusiasmo dos argumentos esgrimidos com palavras. O avô, o pai, os tios, até a pequenada, todos opinavam e quem ganhava as batalhas aquecidas pelos petiscos e pelos vinhos da alegria era sempre a palavra dada!
Por alguma razão, as grandes questões eram sempre resolvidas em nome da honra, eram sempre assacadas as responsabilidades à palavra dada.
Lembro-me de pensar, um dia, que falar era como agir: uma palavra, um acto, uma consequência.
Entretanto, crescemos, cresceu o mundo à nossa volta, cresceram as explicações pedidas, multiplicaram-se os pedidos de provas. Apareceram no nosso quotidiano televisivo os tribunais, as testemunhas, as contratestemunhas e Dizer já não vale nada.
Que saudades tenho do eco das vozes numa mesa de família, da segurança de poder confiar numa afirmação só porque foi proferida.
É pena, mana, que a honra que brotava das palavras do avô e do pai não se veja já, nem escrita, nos papéis assinados e reconhecidos no notário.
Um beijo.
Mano