Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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A noite mais longa

Mails para a minha Irmã
A noite mais longa

Olá mana,
há já muito que te não escrevia. Sabes como é, as coisas urgentes vão-se fazendo primeiro que as importantes. Hoje, no início de uma reunião de trabalho, agarrei no meu caderno, escrevi com quem era a sessão de trabalho e coloquei a data. E, o que de imediato me veio à mente, foi a tua face com o aspecto reguila dos seus três anitos ainda plenos de esperança. Essa mesma esperança que estava prestes a sofrer uma contrariedade. Mas não só, porque a vida, felizmente, não é homogénea.
Faz hoje 36 anos que embarcámos. Sozinhos. Eu com 8 anos e tu com 3. E viajámos um oceano de desespero e solidão. E sobrevivemos. E houve uma desesperança e uma desentrega e uma sensação de estar tudo a desmoronar-se e a fugir por entre a impotência do nosso querer. Era uma espécie de fim. Mas, como disse, a vida não é homogénea. Eu acho, mana, que nós sempre gostámos muito um do outro. Acho mesmo que sempre fomos unidos porque nunca soubemos ser de outra forma, mas a violência daquela noite e dos dias infinitos e infindáveis que se lhe seguiram constituíram para nós um teste, uma provação. E o elo reforçou-se. Tornou-se inquebrantável. E as coisas que viríamos a viver daí para a frente, boas ou más, haveriam de estar para sempre eivadas dessa superação conjunta. Eu acredito, mana, que as pessoas que sofrem juntas, nunca mais se separam. O sofrimento é uma cola da alma.
Faz hoje 36 anos, os homens quiseram-nos fazer mal. Muitos morreram, entretanto. Outros ficaram sozinhos, outros perderam-se nas multidões, a maioria está esquecida e nós, da fragilidade e da vulnerabilidade das nossas vivências, crescemos irmãos, fortalecemo-nos e viemos a viver este dia olhando para trás no vácuo do tempo e sorrindo aos homens esquecidos com a ternura do nosso amor irmão. Nós, mana, estamos aqui. Companheiros de vida, com alegria e com sofrimento. Ainda bem.
Beijo,
Mano.


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o culto e o oculto

Querida Mana,
enredados que estamos no nosso próprio culto, no culto das nossas pequenas e efémeras existências, desmultiplicamo-nos em estatísticas e planos de emergência e casos reais e notícias mais ou menos desinteressantes sobre a percentagem de aviões que pode ou não descolar e aterrar e jogamos para o oculto esquecimento dos dias aquilo que é a maior evidência de todas: a nossa patética fragilidade. Um vulcão adormecido tossiu e toda a maravilhosa tecnologia humana ruiu. A Natureza enfadou-se de estar dormitando e bocejou e toda a sapiência acumulada em milhares de anos de estudo e investimento serviu de nada. E toda a robusta estrutura social colapsou. Fica-me, mana, desta breve mas poderosa manifestação de força por parte da Mãe Natureza, a sensação de que devíamos olhar em volta com mais atenção. Admirar o oculto e desenvolver menos o umbilical e patético culto de nós. Nem radares, nem GPS, nem jacto, nem piloto automático, nem era digital, nem afirmação computacional, nem nano nadas, nem mega tudos, nem gigas, nem teras, nem bites, nem ecrãs tácteis, nem sem fios, nem coisa nenhuma pôde nenhuma coisa contra um sussurro do vulcão voltando-se no tempo como eu na cama. Fica-me o respeito. Fica-me o olhar preso nas cinzas magnânimas para me lembrar da próxima vez que um humano se mostrar grande ou grandioso. Fica-me a humildade de reconhecer-me o meu lugar de bicho da terra tão pequeno.
Mano


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O acordar de Domingo

Olá mana,
hoje, quando acordei, já éramos três na cama. Vindo da penumbra do seu território, o miúdo enfiou-se no nosso ninho.

E dei comigo a recordar os momentos em que fazíamos exactamente o mesmo. Ao longo da semana afirmávamos a nossa independência juvenil, íamos às lutas todas, desafiávamos a figuras paternas e, depois, assim que desconfiávamos que estivessem acordados, como que descansando das guerras e das máscaras, havia um diamante bruto, um sentir insubstituível, uma pulsão de carinho e ternura que nos fazia trepar pela cama dos pais acima até ao centro e ali ficávamos entre o seu calor e o seu amor contando as aventuras, as estórias, rindo, usufruindo do correr aconchegante do tempo. Era como o sono depois de um dia de trabalho: o momento de aprender, de tirar partido, de amar.

Fundiam-se os territórios, esbatiam-se as fronteiras e as barreiras, não havia conflito de gerações nem qualquer outro porque o momento era de magia. A minha mulher tem uma imagem terna do assunto: diz que gosta de imaginar que vamos os três voando juntos, isolados do resto do universo e que a nossa cama seria assim uma jangada de percorrer os mundos todos…

Às vezes penso que a magia do acordar ao Domingo de manhã na comunhão dos espaços, dos risos, das aventuras e das desventuras podia bem ser uma forma de refundar a nossa sociedade.

Beijo,
mano.


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De pequenino…

Olá mana,
por estes dias, finalmente tristes, de Inverno, um sol houve que brilhou na seara da minha esperança: os miúdos fizeram um blogue.

Ao que parece a zona é complexa, mas, como sempre, os miúdos encaram a vida com alegria e galhardia e aquilo que entre os adultos poderiam ser problemas complexos, discussões, litígios, para eles são só o dia-a-dia.

E depois, há no meio disto tudo um professor, o Manuel, que acredita, efectivamente, no que faz e faz bem.

Estão por isso reunidas as condições para que a vida aconteça. E no espaço de um apoio, criam-se blogues, visitam-se blogues, pesquisa-se, intervem-se, aprende-se!

Como sabes, tenho sido um defensor prudente das novas tecnologias nos ambientes educativos. Defendo-as, sim, mas com critério, com acompanhamento para que o crescimento seja sustentado. Acontece, contudo, que a vida acontece e irrompe para além das nossas ânsias e mesmo para além das nossas capacidades de controlo. E mesmo com o acompanhamento do Manuel, os miúdos inscreveram-se na esfera cibernética e agora a vida é deles e acontecerá como tiver de acontecer. Resta-nos estar atentos.

Não farei o texto muito longo porque eles não gostam, mas queria usar este espaço que é, por norma, teu para divulgar o trabalho e o orgulho destes miúdos que de resto me lembram a tua fibra e o brilho do teu olhar quando tinhas feito alguma…

Sejam muito bem-vindos, amigos, a este mundo paralelo do outro e que ele vos traga as alegrias todas.

Aos leitores de “Mails para a minha Irmã” sugiro uma visitinha a:

Beijo,
mano.


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Parabéns mana!

Doce mana,

já em tempos escrevi um texto sobre o dia em que nasceste daí que tentarei felicitar-te sem repetir o caminho de magia que foi, para mim, o dia em que nasceste.

O texto será breve porque no que respeita à tua chegada, à tua existência, à tua vida, ao teu nascimento e ao teu aniversário, as coisas que sinto são de tal forma avassaladoras que me compactam os sentidos e tolhem as palavras. Todas me parecem de menos, pequenas, limitadas e aquém do turbilhão com que lido desde o dia 4 de Novembro de 1972.
É como se não fosses “só” minha irmã, mas o milagre de toda uma vida. É como se a minha existência se tivesse iluminado a partir do dia em que te vi, rosada, pela primeira vez.

O engraçado é que eu acho que tu sempre pensaste que eu era um exemplo a seguir e em surdina, num silêncio respeitoso de quem deixa passar a vida, eu seguia o teu exemplo. A bravura, o brilho malandro no olhar dedicado, o dente cerrado aquando da defesa das tuas posições e o carinho…

Não sei, não saberei nunca se fui um bom irmão. Não me interessa isso muito. Não é o tipo de mensurabilidade que eu ache que possa alguma vez ser justa. Sei, contudo, que devo ter sido um irmão aquém de ti porque tu mereces sempre mais. Sei, também, numa avaliação muito subjectiva mas que considero que é pertinente porque é a minha, que foste a melhor irmã que alguém poderia ter tido. Foste tudo o que sonhei no dia em que desejei um mano. E foste muito mais do que isso tudo.

Já uma vez to disse e agora repito: a palavra “irmã” faz sentido porque tu existes.

Parabéns, mana. Do fundo mais honesto e genuíno que o teu irmão encontra em si emana este voto, assim, cristalizado nesta palavra “parabéns”.

Gosto muito de ti e quero ver-te viver até que a Parca corte a corda. E peço à Parca que corte a minha primeiro!

Beijo, mano.


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Dia de Todos os Santos

Querida mana,

por mais complexos que possamos parecer ou queiramos assumir, a verdade é que, nós, os humanos, somos seres de síntese. Senão vejamos, há dias para este santo, para aquele santo, para algumas santas e há, depois, o dia de todos os santos. E, em síntese, colocamos os santos todos num mesmo saco que é o saco para onde vão os que se não destacaram por nada a não ser terem tido a coragem de atravessar o tenebroso rio.

Estava aqui a pensar nisto, donde se infere que sou um tipo esquisito, quando me lembrei que o pai, o avô Velez, a avó Ana, o avô Francisco, a avó Lectícia, a Mimi e mais uns quantos humanos que nos preencheram as vidas da juventude já são santos. O que não deixa de ser curioso porque entre estes admiráveis santos havia alguns que celebravam o dia com particular interesse.

Para nós tudo se resumia a um ritual que começava numa visita ao cemitério e terminava entre febras grelhadas na brasa e castanhas assadas nos pinhais de Santa Quitéria com fumos intensos de café de borra aquecido no lume perfumado das carumas.

Só hoje, à distância inultrapassável de umas quantas partidas definitivas, eu percebo o sentido dos rituais porque lhes sinto a falta. A verdade, mana, é que nada pode ser vivido antes do tempo. E é por isso que o dia de todos os santos teve uma altura em que era uma festa e tem, agora, um tempo em que é uma celebração. A celebração dos meus santinhos.

A celebração da dedicação com que o nosso pai nos conduzia até ao local perfeito, a celebração da sua voz moderadamente entusiasmada falando da feira e observando os seus pormenores de vida, a celebração da agitação genuína da Mimi, a celebração da insubstituível falta que me fazem os humanos, que, por serem os meus eleitos, são os meus santinhos, por mim beatificados e canonizados no altar da gratidão, do reconhecimento, do amor nascido de uma vida partilhada.

Se outras razões não houvesse, se outros santos o não justificassem, todos os meus santos de amar justificaram a noite de festa e febras e castanhas e água pé e vozes iluminadas pela companhia e pelo sentir que estamos vivos entre os vivos e, por isso, em condições de celebrar os vivos entre os mortos.

E foi assim que celebrei os meus santinhos, entre amigos, com todos os ingredientes, excepto o frio que muita falta fez por ser catalizador de conversas e por permitir aquele gesto que é uma pessoa agarrar numa chávena de café quente, encolher os ombros dentro da roupa e soprar o bafo à medida que vai comentado “está frio, não está?”…

Beijo,
mano.


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E quem liga o acordo ortográfico ao "productor"?

Querida mana,

quando uma manhã de sábado acorda brilhante e quente não há como resistir: sair de casa é a única solução. Um destes sábados, a manhã levantou-me da cama a ameaçar que se aí ficasse perdria um excelente dia.
Entre a pasta dos dentes, o pequeno-almoço e o entrar para o carro a coisa foi breve e lá partimos os três à descoberta dos recantos deste país que ainda são portugueses. Algures numa curva à esquerda, em plano inclinado, dou de caras com um letreiro todo janota, com uns cachos de uva pintados e cuja inscrição assim rezava: VINHO DO PRODUCTOR.
Aquele intrometido C atrás do T fez-me parar o carro e tirar uma foto, primeiro, depois começou a estorvar-me a tranquilidade da alma.
Não sei se te lembras, mas acredito que sim, aos sábados, a nossa mãe, antes de sair de casa para o trabalho, deixava sempre uma imensa lista de tarefas para cumprirmos quando acordássemos. Sempre achei, de resto, que era um contra-senso deixar-nos a dormir porque, se o fizéssemos, não tínhamos tempo para as tarefas todas e era o cabo dos trabalhos, ou não, consoante o humor. Nesses bilhetes, relembro com carinho alguns pormenores de escrita sendo que um sempre me ficou mais vivo na memória e me levou mesmo a interrogar alguns professores: “Ó setôr, como é que se escreve coêlho? É com acento não é?” E andei procurando pela juventude fora um professor que me dissesse que a mãe tinha razão, que ela é que escrevia bem. A razão desta procura é simples. A mãe era tão perfeita em tudo que eu não queria que ela falhasse na palavra coelho!? Nunca consegui essa tranquilidade até ao dia em que encontrei o PRODUCTOR.

Eu percebo o que se pretende com o acordo ortográfico. Unir povos. Unificar culturas. homogeneizar a grande diáspora portuguesa. Tudo isso está muito certo mas penso, por vezes, se não será inglório tentar homogeneizar o que não é homogeneizável. Eu vejo a Língua como um organismo vivo e percebo, por isso, que tem de evoluir mas não acredito que essa evolução deva ou possa ser artificial. Uma tal evolução deve seguir e respeitar o uso que os falantes fazem da Língua. E a verdade é que se os nossos irmãos brasileiros dizem fato em vez de facto ou diretor em vez de director e assim o escrevem, então devem ter liberdade para o fazer. Tal liberdade contudo não deve fazer tábua rasa de uma maior proximidade que nós, falantes do português de Portugal, temos em relação à origem desta nossa maravilhosa Língua: a cultura greco-romana.

Uma proximidade assim aduz um argumento que parecendo frágil pode revelar-se determinante: os nossos falantes quando dizem facto ou director sentem o C. É verdade mana, há sons que se sentem e outros que só se pressentem mas estão lá. Talvez não seja por isso que a mãe escrevia coêlho mas é de certo por isso que o produtor escreveu PRODUCTOR!

Sem querer aborrecer-te, ainda avanço um esclarecimento: produtor emana do verbo latino produco que tem o supino productum onde está o tal C. Quem escreveu o letreiro não conhecia estas minudências da etimologia mas sentiu o C! E isso é que é importante!

Eu penso, mana, que este acordo vai descaracterizar a Língua Portuguesa continental, penso que vai desbaratar uma importante herança cultural e penso, também, que causará o caos entre os aprendentes mais jovens. E é por isso que não concordo com ele.

Depois e não menos importante, se a mãe até há pouco tempo ainda escrevia coêlho e o senhor das vinhas ainda escreve PRODUCTOR, porque é que eu tenho de tirar o C ao facto?

A Língua há-de evoluir, como sempre aconteceu, mas essa evolução tem de ser determinada pelos falantes, os falantes é que são os soberanos da Língua! O que está a contecer é, a meu ver, a introdução espúria de alterações à regra que não respeitam a norma, é um processo artificial e o que é artificial, a humana mente costuma rejeitar. Já para não falar de outras motivações e complicações como, por exemplo, perceber critérios comerciais a antecipar os culturais.
E pergunto, se o acordo ortográfico é para ligar, unir, unificar, como é que se liga o productor ao acordo ortográfico?
Lembrei-me, a propósito disto, de um arrozinho de coêlho que a mãe costumava fazer…

Beijo,
mano.


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Por muitos a zero!

Querida mana,

Lembro, por vezes, a eternidade das tardes domingueiras passadas a quatro, ou cinco, quando estava a Mimi, e lembro a sua simplicidade tanto como a fruição do tempo. Sermos uma família era mais, muito mais, do que termos laços de sangue. Era estarmos juntos.
O pai sentava-se na sua mesa, fazia contas, lia o jornal, escrevinhava papéis ou abatia-se sobre os braços e adormecia profundamente donde só acordava para comentar o que se estava a passar na tv como que anunciando “eu estou aqui, não estou a dormir”. Mas estava e isso não tinha importância nenhuma. A mãe sentava-se costurando uma coisa qualquer, fazia um bolo, conversava ou escapava-se para o quarto, ali mesmo ao lado, donde emergia sonolenta para fazer algumas das coisas que ainda agora referi. Nós andávamos pela sala, no chão, debaixo das mesa, como se esse território nos pertencesse em exclusivo. Espreitávamos a televisão e sobretudo, brincávamos.
Havia uma actividade que me entretinha imenso. Eu copiava um totobola para uma folha quadriculada e deixava um espaço grande entre o nomes da equipas para registar os golos. E no curso dessses dias distantes várias coisas não tinham acontecido ainda. Não havia transmissões televisivas do futebol e a riqueza do jogo dependia da arte dos senhores que gritavam “Gooooolo!”. Da forma como narravam o jogo, das suas opiniões, dos juízos de valor sobre a partida, do colorido que emprestavam às minhas tardes de Domingo. É curioso que, sem tv, havia menos casos de jogo. As faltas eram faltas, os golos aconteciam quando a bola entrava na baliza e, mais do que tudo isto, valia a festa. A festa fazia-se, também, dessa singularidade que era os jogos serem todos ao mesmo tempo, nas imensas tardes de Domingo. Por vezes, o senhor gritava “Goooooolo”, eu estava já aos pulos, radiante e festivo, quando ouvia “o árbitro anulou o golo”. Era um descer à terra, uma desilusão e retomavam-se as expectativas. E lá ia, Domingo a dentro, registando os golos na minha folha quadriculada.
Nessa altura, havia o hábito salutar de se investir muito no jogo e menos nas coisas à volta dele e, fosse por isso ou por outra qualquer e desconhecida razão, havia sempre quem ganhasse por muitos a zero!
Lembro-me, por esses estranhos e alienígenas tempos, de haver um treinador do Benfica que fazia gala em não fazer substituições e orgulhava-se de sofrer muitos golos porque, dizia, marcava sempre mais.
Os casos nunca se resolviam na tv, não se ganhavam os jogos antes de começarem nem depois de acabarem, e havia sempre muitos golos. Ser do Benfica era, na altura, o mesmo que ganhar por muitos a zero. E, na segunda-feira, todos discutíamos as jogadas que não víramos como se as tivessemos visto. E todos tínhamos certezas. Era o inefável poder da imaginação despertado pela rádio. Havia mesmo alguns de nós que conseguiam dizer “eu vi bem que foi falta!”.

Entretanto, a vida roubou-nos as tardes de Domingo, a rádio perdeu espaço, a televisão ocupou demasiado, os jogos passaram também a ser jogados antes e depois de começarem, o futebol esterilizou-se em tácticas suicidas, e deixou de se ganhar por muitos a zero! Passou a interessar mais o resultado do que o seu volume, deixou de haver vitórias morais, morreu o “fair play”, 1-0 é um resultado comum e uma goleada é uma excepção, um motivo de festa. Tudo é esquadrinhado por câmaras, os árbitros são quase tantos como os jogadores e tudo isto estava sem graça nenhuma até ter chegado Jesus!

O que eu gosto no Benfica de hoje, ou no de ontem à noite, é o despudor com que defende mal, até porque defender não interessa para nada, é a ingenuidade de estar a ganhar por 4 a 0 e os jogadores continuarem a correr como se não houvesse amanhã, loucos, esses loucos, que jogam à bola como cachopos entusiasmados mesmo quando o resultado já está feito. O que eu gosto no Benfica de ontem à noite é que joga dentro do campo para quem cá está fora. O que eu gosto é do renascer da ideia de espectáculo e do que eu gosto mesmo, acima de tudo, em nome da minha infância distante, é que me devolveu a alegria de ganhar por muitos a zero.

Querida manucha, este mail era para ser sobre política, sobre a apresentação do novo governo do senhor engenheiro que nos vai conduzir nos próximos anos. Mas quem é que quer saber disso quando o Benfica está a ganhar por muitos a zero?!

O nosso avô e o nosso pai, lá onde estão, seja isso onde for, estão a gozar à brava. À uma, porque eram Benfiquistas à moda antiga, sem “ses” nem “mas”. À duas, porque têm lugar cativo e não pagam tv. Será que no Céu há cervejinha e tremoços?

Beijo divertido,
mano.


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O que é a felicidade?

Olá mana,

um dia destes, recente, fomos os três ao cinema como tantas vezes vamos. Também desta vez, mais pela distracção do que pela promessa do filme. Era um daqueles romances previsíveis em que eu e o Iago adivinhamos as falas das personagens. Homem conhece mulher. Mulher conhece homem. Detestam-se. Apaixonam-se. Zangam-se, reatam, toca uma balada e… The End!

Contudo, por entre o ziguezaguear de um argumento estafado, uma personagem, confrontada com as escolhas que tem pela frente, pergunta: “O que é a felicidade?”

Perdi-me na resposta e quando voltei ao filme já vários eventos se tinham sucedido. É essa resposta que quero ver se te alinhavo.

Para além da verdade óbvia que é a impossibilidade de definir-se a felicidade em termos absolutos, eu vivi sempre esta sensação esquisita e perturbante de que a felicidade não estaria forçosamente ligada a coisas boas do quotidiano. A nossa infância e a nossa juventude foram atravessadas por momentos dificílimos, terríveis de viver, de perceber, de digerir. Traumáticos, mesmo. As crianças não deviam ter de viver a violência das guerras, das separações, dos desencontros… Nós vivemos esses momentos de ódio e sangue ultramarino. Os jovens não deviam ter de conviver com a decadência prematura da saúde dos pais. Nós convivemos com isso. E, no entanto, não posso deixar de pensar que fomos imensamente felizes!

A meu ver, a ideia de consquistar a felicidade gera a impossibilidade de a viver. A felicidade não se conquista, não se possui, não se compra, não se tem. Vive-se em cada gesto, em cada pensamento. Ser feliz tem muito mais a ver com abdicar do que com conquistar. Tem a ver com a partilha, com a dádiva, com a grandeza de nos percebermos pequenos, com a consciência do pouco que é Ter e, mesmo assim, estar disposto a partilhar. Tem muito mais a ver com a valorização dos momentos, das trocas e daquilo que se tem do que com aquilo que se pode vir a ter.

Para mim, a felicidade é olhar para o meu filho. É ver a minha mulher sorrir. É dar um passeio só para sentir o sol na pele, cheirar o mar profundo. É correr debaixo da chuva e senti-la fresca na face. É fazer uma festa num cão. É convidar a família e os amigos para um almoço onde a mais séria das conversas seja uma banalidade. É escrever-te um mail. É ir vivendo tudo isto intercalado com dor, com perda, com lágrimas, com sacrifícios. Porque são estes que emprestam significado àqueles!

Não entram nesta equação as questões da conquista e da posse. Sabes, mana, uma vez uma pessoa amiga disse-me que “As coisas mais extraordinárias da vida são de graça!” E, hoje, dou-lhe razão.

Ser feliz é crescer na tranquilidade de não precisar de Ter. É crescer nos outros e com os outros. É criar laços. É tentar escapar à infelicidade da solidão, à escravatura da posse.

Recentemente abdiquei de ter uma coisa importante e grandiosa para viver coisas mais pequeninas e singelas que se não têm mas vivem. Recentemente, pouco antes do cinema com filme previsível em tela, pus de lado um grande cometimento em troca de gestos pequenos e ternos.

Recentemente abdiquei. Já não era tão feliz há muito tempo!

De ti, mana, não abdicarei nunca.

Beijo,
mano.


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O trilema do mano da outra Teresa

Querida mana,

afinal, parece que há mais irmandade na terra para além da nossa!
Um dia destes, alguém comentou um dos textos que aqui publiquei tendo semi-assinado, semi-quebrado o anonimato. Anunciava-se o comentador como o “mano da outra Teresa”. Pressuponho quem seja a outra Teeresa e, por consequência, calculo que o signatário seja seu irmão.
Pedia-me, na altura, ajuda para explicar à sua mana o que é ser homem, marido e pai: o seu trilema. Está tudo aqui: http://mailsparaaminhairma.blogspot.com/2009/07/o-convite.html

Ora, para lhe facultar tal explicação necessitava de um referente. Não me considerando tal resolvi pensar no nosso pai e explicar-te a ti, porque contigo entendo-me bem, a explicação que talvez sirva para o nosso leitor e, eventualmente, para a sua irmã.
Ser homem, marido e pai é, efectivamente muito difícil e quase todos nós, homens, maridos e pais, acabamos por falhar nalguma delas. Ou, pelo menos, a pagar o preço de não falhar que é elevadíssimo na medida em que significa aniquilarmos uma destas figuras dentro de nós sendo, tendencialmente, a de homem a mais “apagável”, depois a de marido e só por fim a de pai que é a mais “segura”.
O homem em nós é livre e libertino por natureza. Tem ritmos próprios, rotinas traçadas, hábitos, rituais e está pouco disposto a abdicar deles. É dominador e pensa com frequência que é sua obrigação cuidar do mundo, ser responsável por ele, traçar-lhe os destinos. Procura uma fêmea de cada vez e acasala tantas quantas pode na medida em que tem a ancestral e imperceptível marca de que é necessário garantir a continuidade da espécie. Isto, ou é assim, ou é um imenso e universal pretexto para andarmos sempre à procura de fêmeas!
O marido escolheu outro caminho. Percebeu que isso da continuidade da espécie é uma treta, e livremente aprisionou-se numa relação monógama de dedicação exclusiva à sua mulher: a eleita. Normalmente o marido não repara, mas a verdade é que a eleita é que o elegeu a ele! Há um senhor que explica isto muito bem no National Geographic para os leões e eu acho que assenta perfeitamente nos maridos. O marido vive feliz, dedica-se, esforça-se por manter a relação até ao dia tramado em que a sua natureza de homem chama por ele. Aí tem duas saídas. Ou arma-se em parvo e vai por África adentro à procura duma leoa mais jovem e promissora (estas leoas normalmente têm um ar mais desplicente, as nádegas firmes e usam fio dental) e embarca numa relação duradoura de três semanas. Ou reflecte, pensa nos seus compromissos, na qualidade da sua relação, e vai ao cinema, organiza um jantar a dois com velas pelo meio, arranja uma ocupação, por exemplo, colecciona uma coisa qualquer e mantém-se firme. Qualquer que seja a opção, a decisão não é fácil e, caso tenha tido o bom senso de continuar marido, irá sentir que o homem fez cedências. O marido considera as cedências naturais, o homem não.
O pai, curiosamente, sendo, por norma, o último a surgir dos três, está acima dos outros dois. Permanece firme no inabalável propósito de ser um bom pai que é a sua formulação para cuidar bem das crias porque são a imagem de si, mais ainda, são a sua continuidade, a sua imortalidade! Com facilidade um homem abdica de ser homem para ser marido. Ou, com menos facilidade, mas, ainda assim, com assinalável frequência, abdica de ser marido para ser homem. Já é raro que abdique de ser pai por qualquer um dos outros. Atenção que eu nunca escrevi “ser bom pai”. Não há bons nem maus pais porque antes e acima de isso tudo está ser-se pai, só. Como se sabe. Como se pode. Como se pensa que está bem. Não são os pais, nem mesmo os outros adultos que nos observam a ser pais, que podem dizer o que é ser bom ou mau pai. Para essa avaliação só os filhos têm competência ou, pelo menos, só a eles lha reconhecemos. E muito bem.
Ora, o nosso pai, fazia o impossível. É que, como reparaste, tudo isto está eivado de fracturas, de fronteiras e barreiras, e é de difícil articulação. Perdem-se as coerências e com facilidade se cai em contradição. Quer nas palavras, quer na acção. O impossível que ele fazia era ser tudo isto ao mesmo tempo em harmonia, com naturalidade. Com uma orientação que diria empírica e imediatista mas a resultar melhor que as estratégias todas e todas as pedagogias. Nunca foi um homem, um marido, um pai de fundo. Foi sempre um homem, um marido, um pai do momento, daquele problema específico, daquele sorriso, daquela mão na hora certa, do olhar severo e do terno na hora da severidade e da ternura. Só quando morreu, nós conseguimos ver o quadro por completo. Só nessa altura vimos que o nosso pai tinha sido, efectivamente, um homem, um marido e um pai de fundo. Fê-lo, paradoxalmente, negando essa condição em prol do contínuo imprevisível da vida.
Ao longo da sua vida, não só depois da morte, as pessoas que gravitaram à volta do nosso pai-estrela-de-luz, reconheceram-no como um bom homem, um bom marido e um bom pai. Uma trave. Uma segurança. A dedicação em pessoa. E contudo estou convicto de que nunca planeou sê-lo, nunca traçou uma estratégia. Limitou-se a ir sendo, a ir esgrimindo com a vida o jogo dos equilíbrios, a ir gerindo expectativas e tensões, dando exemplos, defendendo princípios.
Às vezes, quando olho para o meu percurso de homem, marido e pai, e me reconheço os erros, as falhas e os desacertos e sinto que estou tão longe dos padrões que o nosso pai estabeleceu, penso que foi tudo porque planeei, projectei, programei Ser em vez de ir sendo.
Acho que o mano da outra Teresa ainda ficou mais confuso. Acho que a Teresa não teve grande ajuda para entender o trilema do seu mano mas tenho a certeza de que ser homem, marido e pai vive da busca contínua e constante do equilíbrio. Vive da dádiva, de pensar nos outros antes de nós, vive da gestão sábia, da procura de consensos, do amor, do carinho, da protecção. Vive de Estar, mais do que de Ser. Mas isto eu não sei fazer e já me dou por muito feliz por ter visto fazer.
Às vezes perguntam-me qual foi o meu melhor professor e quase sempre estão à espera de um nome de um senhor professor doutor dos muitos por que passei na faculdade, mas a minha resposta, em nome da justiça tem de ser: “O meu melhor professor tinha a 4ª classe, foi o meu pai!
Beijo,
mano.