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o culto e o oculto
O acordar de Domingo
Olá mana,
hoje, quando acordei, já éramos três na cama. Vindo da penumbra do seu território, o miúdo enfiou-se no nosso ninho.
E dei comigo a recordar os momentos em que fazíamos exactamente o mesmo. Ao longo da semana afirmávamos a nossa independência juvenil, íamos às lutas todas, desafiávamos a figuras paternas e, depois, assim que desconfiávamos que estivessem acordados, como que descansando das guerras e das máscaras, havia um diamante bruto, um sentir insubstituível, uma pulsão de carinho e ternura que nos fazia trepar pela cama dos pais acima até ao centro e ali ficávamos entre o seu calor e o seu amor contando as aventuras, as estórias, rindo, usufruindo do correr aconchegante do tempo. Era como o sono depois de um dia de trabalho: o momento de aprender, de tirar partido, de amar.
Fundiam-se os territórios, esbatiam-se as fronteiras e as barreiras, não havia conflito de gerações nem qualquer outro porque o momento era de magia. A minha mulher tem uma imagem terna do assunto: diz que gosta de imaginar que vamos os três voando juntos, isolados do resto do universo e que a nossa cama seria assim uma jangada de percorrer os mundos todos…
Às vezes penso que a magia do acordar ao Domingo de manhã na comunhão dos espaços, dos risos, das aventuras e das desventuras podia bem ser uma forma de refundar a nossa sociedade.
Beijo,
mano.
De pequenino…
Olá mana,
por estes dias, finalmente tristes, de Inverno, um sol houve que brilhou na seara da minha esperança: os miúdos fizeram um blogue.
Ao que parece a zona é complexa, mas, como sempre, os miúdos encaram a vida com alegria e galhardia e aquilo que entre os adultos poderiam ser problemas complexos, discussões, litígios, para eles são só o dia-a-dia.
E depois, há no meio disto tudo um professor, o Manuel, que acredita, efectivamente, no que faz e faz bem.
Estão por isso reunidas as condições para que a vida aconteça. E no espaço de um apoio, criam-se blogues, visitam-se blogues, pesquisa-se, intervem-se, aprende-se!
Como sabes, tenho sido um defensor prudente das novas tecnologias nos ambientes educativos. Defendo-as, sim, mas com critério, com acompanhamento para que o crescimento seja sustentado. Acontece, contudo, que a vida acontece e irrompe para além das nossas ânsias e mesmo para além das nossas capacidades de controlo. E mesmo com o acompanhamento do Manuel, os miúdos inscreveram-se na esfera cibernética e agora a vida é deles e acontecerá como tiver de acontecer. Resta-nos estar atentos.
Não farei o texto muito longo porque eles não gostam, mas queria usar este espaço que é, por norma, teu para divulgar o trabalho e o orgulho destes miúdos que de resto me lembram a tua fibra e o brilho do teu olhar quando tinhas feito alguma…
Sejam muito bem-vindos, amigos, a este mundo paralelo do outro e que ele vos traga as alegrias todas.
Aos leitores de “Mails para a minha Irmã” sugiro uma visitinha a:
Parabéns mana!
Doce mana,
É como se não fosses “só” minha irmã, mas o milagre de toda uma vida. É como se a minha existência se tivesse iluminado a partir do dia em que te vi, rosada, pela primeira vez.Dia de Todos os Santos
por mais complexos que possamos parecer ou queiramos assumir, a verdade é que, nós, os humanos, somos seres de síntese. Senão vejamos, há dias para este santo, para aquele santo, para algumas santas e há, depois, o dia de todos os santos. E, em síntese, colocamos os santos todos num mesmo saco que é o saco para onde vão os que se não destacaram por nada a não ser terem tido a coragem de atravessar o tenebroso rio.
Estava aqui a pensar nisto, donde se infere que sou um tipo esquisito, quando me lembrei que o pai, o avô Velez, a avó Ana, o avô Francisco, a avó Lectícia, a Mimi e mais uns quantos humanos que nos preencheram as vidas da juventude já são santos. O que não deixa de ser curioso porque entre estes admiráveis santos havia alguns que celebravam o dia com particular interesse.
Para nós tudo se resumia a um ritual que começava numa visita ao cemitério e terminava entre febras grelhadas na brasa e castanhas assadas nos pinhais de Santa Quitéria com fumos intensos de café de borra aquecido no lume perfumado das carumas.
Só hoje, à distância inultrapassável de umas quantas partidas definitivas, eu percebo o sentido dos rituais porque lhes sinto a falta. A verdade, mana, é que nada pode ser vivido antes do tempo. E é por isso que o dia de todos os santos teve uma altura em que era uma festa e tem, agora, um tempo em que é uma celebração. A celebração dos meus santinhos.
A celebração da dedicação com que o nosso pai nos conduzia até ao local perfeito, a celebração da sua voz moderadamente entusiasmada falando da feira e observando os seus pormenores de vida, a celebração da agitação genuína da Mimi, a celebração da insubstituível falta que me fazem os humanos, que, por serem os meus eleitos, são os meus santinhos, por mim beatificados e canonizados no altar da gratidão, do reconhecimento, do amor nascido de uma vida partilhada.
Se outras razões não houvesse, se outros santos o não justificassem, todos os meus santos de amar justificaram a noite de festa e febras e castanhas e água pé e vozes iluminadas pela companhia e pelo sentir que estamos vivos entre os vivos e, por isso, em condições de celebrar os vivos entre os mortos.
E foi assim que celebrei os meus santinhos, entre amigos, com todos os ingredientes, excepto o frio que muita falta fez por ser catalizador de conversas e por permitir aquele gesto que é uma pessoa agarrar numa chávena de café quente, encolher os ombros dentro da roupa e soprar o bafo à medida que vai comentado “está frio, não está?”…
Beijo,
mano.
E quem liga o acordo ortográfico ao "productor"?
Querida mana,
Entre a pasta dos dentes, o pequeno-almoço e o entrar para o carro a coisa foi breve e lá partimos os três à descoberta dos recantos deste país que ainda são portugueses. Algures numa curva à esquerda, em plano inclinado, dou de caras com um letreiro todo janota, com uns cachos de uva pintados e cuja inscrição assim rezava: VINHO DO PRODUCTOR.–
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Por muitos a zero!
Querida mana,
O pai sentava-se na sua mesa, fazia contas, lia o jornal, escrevinhava papéis ou abatia-se sobre os braços e adormecia profundamente donde só acordava para comentar o que se estava a passar na tv como que anunciando “eu estou aqui, não estou a dormir”. Mas estava e isso não tinha importância nenhuma. A mãe sentava-se costurando uma coisa qualquer, fazia um bolo, conversava ou escapava-se para o quarto, ali mesmo ao lado, donde emergia sonolenta para fazer algumas das coisas que ainda agora referi. Nós andávamos pela sala, no chão, debaixo das mesa, como se esse território nos pertencesse em exclusivo. Espreitávamos a televisão e sobretudo, brincávamos.
s casos nunca se resolviam na tv, não se ganhavam os jogos antes de começarem nem depois de acabarem, e havia sempre muitos golos. Ser do Benfica era, na altura, o mesmo que ganhar por muitos a zero. E, na segunda-feira, todos discutíamos as jogadas que não víramos como se as tivessemos visto. E todos tínhamos certezas. Era o inefável poder da imaginação despertado pela rádio. Havia mesmo alguns de nós que conseguiam dizer “eu vi bem que foi falta!”.–
O que eu gosto no Benfica de hoje, ou no de ontem à noite, é o despudor com que defende mal, até porque defender não interessa para nada, é a ingenuidade de estar a ganhar por 4 a 0 e os jogadores continuarem a correr como se não houvesse amanhã, loucos, esses loucos, que jogam à bola como cachopos entusiasmados mesmo quando o resultado já está feito. O que eu gosto no Benfica de ontem à noite é que joga dentro do campo para quem cá está fora. O que eu gosto é do renascer da ideia de espectáculo e do que eu gosto mesmo, acima de tudo, em nome da minha infância distante, é que me devolveu a alegria de ganhar por muitos a zero.
–Querida manucha, este mail era para ser sobre política, sobre a apresentação do novo governo do senhor engenheiro que nos vai conduzir nos próximos anos. Mas quem é que quer saber disso quando o Benfica está a ganhar por muitos a zero?!
–O nosso avô e o nosso pai, lá onde estão, seja isso onde for, estão a gozar à brava. À uma, porque eram Benfiquistas à moda antiga, sem “ses” nem “mas”. À duas, porque têm lugar cativo e não pagam tv. Será que no Céu há cervejinha e tremoços?
Beijo divertido,
mano.
O que é a felicidade?
Olá mana,
A meu ver, a ideia de consquistar a felicidade gera a impossibilidade de a viver. A felicidade não se conquista, não se possui, não se compra, não se tem. Vive-se em cada gesto, em cada pensamento. Ser feliz tem muito mais a ver com abdicar do que com conquistar. Tem a ver com a partilha, com a dádiva, com a grandeza de nos percebermos pequenos, com a consciência do pouco que é Ter e, mesmo assim, estar disposto a partilhar. Tem muito mais a ver com a valorização dos momentos, das trocas e daquilo que se tem do que com aquilo que se pode vir a ter.mano.
O trilema do mano da outra Teresa
Querida mana,
Ora, para lhe facultar tal explicação necessitava de um referente. Não me considerando tal resolvi pensar no nosso pai e explicar-te a ti, porque contigo entendo-me bem, a explicação que talvez sirva para o nosso leitor e, eventualmente, para a sua irmã.
Ora, o nosso pai, fazia o impossível. É que, como reparaste, tudo isto está eivado de fracturas, de fronteiras e barreiras, e é de difícil articulação. Perdem-se as coerências e com facilidade se cai em contradição. Quer nas palavras, quer na acção. O impossível que ele fazia era ser tudo isto ao mesmo tempo em harmonia, com naturalidade. Com uma orientação que diria empírica e imediatista mas a resultar melhor que as estratégias todas e todas as pedagogias. Nunca foi um homem, um marido, um pai de fundo. Foi sempre um homem, um marido, um pai do momento, daquele problema específico, daquele sorriso, daquela mão na hora certa, do olhar severo e do terno na hora da severidade e da ternura. Só quando morreu, nós conseguimos ver o quadro por completo. Só nessa altura vimos que o nosso pai tinha sido, efectivamente, um homem, um marido e um pai de fundo. Fê-lo, paradoxalmente, negando essa condição em prol do contínuo imprevisível da vida.


