Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Os itinerários das cãs!

[Este foi o primeiro dos mails a ser publicado. Em Novembro de 2002 discutia-se o orçamento para 2003, claro. Surgem as primeiras notícias de que o Papa João Paulo II está em risco de vida. Bush e Blair preparam a ofensiva militar no Iraque. O Ministério Público conclui as investigações ao desastre da ponte de Entre-os-Rios e podem ser incriminadas pessoas ligadas à extracção de areias e organismos públicos. O Benfica ganhou por 7-0 ao Paços de Ferreira.
Data da primeira publicação: 1 de Novembro de 2002]

Os itinerários das cãs!
Querida mana!

Quando as horas pesam e o som absurdo do silêncio daqueles que amo invade a casa costuma acontecer-me uma vontade tremenda de escrever coisas extraordinárias, histórias de paladinos e romeus que corajosamente salvam suas julietas delambidas. A maior parte das vezes paro, recomeço o trabalho e esqueço os devaneios da escrita que me assaltam como a consciência diabólica do Pluto quando o Mickey deixa a cesta do farnel a descoberto. Hoje, porém, tentei ser mais forte que a minha indolência, que a desculpa do trabalho ou mesmo do cansaço. E digo desculpa porque escrever é, certamente, o acto mais corajoso e de maior valentia que um homem pode cometer. Trata-se de deixar marcado na Humanidade o traço da nossa passagem. O que fica escrito pega-se a nós como uma segunda pele e persegue-nos a consciência até sempre, creio.

Não foi, contudo, a minha escrita que me trouxe até ti. Lembro-me bem, como se fosse hoje, de frases de política pujante e agressiva, cuspida frontalmente na cara de quem a merecia, que o nosso pai foi guardando em parágrafos perdidos na sua desilusão e na gaveta solitária da cristaleira de propaganda que nos acompanhou a infância. Não me interessa o que lá está escrito, não me interessam (ai de certeza que não!) os destinatários mas busco, errante e perdido na esperança cristã da ressurreição, a alma do autor! Onde pára em nós esse Homem? Onde entrever nos nossos actos o espírito crítico e acérrimo mas profundamente justo e humano do nosso pai? Sei que te pergunto por ele em vão, sei que ninguém o encontrará em mim senão eu, sei que preciso de o procurar, de o trazer de novo à vida, em mim, por mim!

Um destes dias percorri um caminho diferente mas interessante, percorri o itinerário das cãs. Comecei no gafanhoto que apanhaste com as mãozitas ainda rechonchudas de bebé na montra de uma livraria portuguesa em África, lembrei-me de uma pulseira de ouro grossa num pulso forte e poderoso de um braço a terminar numa manga sempre curta de uma camisa sempre branca! A pulseira tenho-a eu… os braços é que já não são os mesmos! Que falta me fazem! Viajei depois para uma madrugada violenta em que, felizmente, dormiste e lembro-me do teu semblante calmo de menina e como ele se desfez na despedida e… ainda estava a saborear estas coisas boas e más mas partilhadas em família e já via o rodopio das saias das raparigas que me envolveram a adolescência e percorri, sempre contigo a meu lado, o trilho do meu envelhecimento. E vejo-me hoje com um filho que me julga certo e a quem, dentro em pouco, não restará senão a memória de mim! E que memória? Quem me dera, com todos estes estudos, com todas estas horas de reflexão aturada, com toda a pompa e a circunstância que rodeiam o meu estatuto saber fazer as coisas mais simples e importantes tão bem feitas como o nosso pai! Quem me dera saber construir no meu filho e na minha irmã a memória de um ente insubstituível. Escrevo-te assim porque temos falado pouco dele, porque temos falado demasiado das coisas urgentes e pouco das coisas importantes. Urgente é o comer, o dinheiro para o sustento, o abrigo! Importante é a alma, a memória, a essência do ser!

Escrevo-te porque te amo e porque quero que o saibas mais uma vez, escrevo-te porque somos filhos do mesmo pai, raízes do mesmo Homem. Escrevo-te para que te não esqueças que me lembrei.

Com carinho,
Mano.


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O meu ET

[Este texto nasceu de forma espontânea e nunca foi corrigido ou melhorado. Foi enviado por e-mail para a minha irmã. Ela pediu mais e fui escrevendo, foram-se conhecendo e acabaram num jornal regional. Guardo-o sempre como a origem de todo o processo de escrita destes mails que se transformaram em crónicas. A ideia era ir ao passado desenterrar tesouros e confrontá-los com o presente…

Primeira Publicação: o texto data de 2000 e nunca foi publicado. É, portanto, inédito.]

O meu ET.
Coimbra, algures no Outono de 1984…

Nas águas furtadas do nº 49 da rua figueira da foz há um cadeirão, nesse cadeirão está um rapazola, os olhos brilham… O entusiasmo torna-o rubro, parece que vai rebentar de alegria. Entre as mãos trémulas de felicidade tem um envelope perfumado de um remetente feminino. Abre-o à saciedade, os olhos procuram a escrita do coração e… Mais rápido do que crescera, o entusiasmo morre súbito, a alegria cai pelo chão, o encarnado das faces mantém-se mas agora é de raiva. A carta era do passado, escrita em tempos anteriores, já lida e relida, já sem novidades. De súbito levanta-se, “foi ela” pensa. Apressa-se para o quarto da irmã mas não precisa de lá chegar. A meio do caminho, na sala, mãe e irmã riem-se cúmplices da partida, e o pai, ao fundo, sorri. Acha piada mas o respeito impele-o à serenidade. Sempre.

O resto já sabes… A remetente era mesmo uma cabra safada. Não é isso que interessa. O que interessa é o quadro que me ficou gravado na memória: tu, cabelito curto, olhar brilhante, sorriso de quem surpreende, malandreco como só o teu. A mãe, já na altura lembrando-me a avó, só a minha memória ainda se não tinha apercebido disso pela certeza de que ela ia durar para sempre e não seria preciso lembrá-la. Ilusões de cachopo adolescente que acredita no dia em que virá um ET com a poção da vida eterna para ele usar com um número limitado de pessoas: curiosamente as da sua família. Tantos anos contei a família. Tantos esperei por ele. O meu ET não veio. E agora se viesse seria tarde demais. Já não o quero. E o pai, indescritível, por não ser necessário relembrar o que se não esquece. Um pilar. Uma segurança. Uma certeza de que tudo vai correr bem. Isso é ser pai. O resto são complicações de heranças e distribuições de coisas que ninguém precisa mas todos querem.

O que quero é mais fins-de-semana contigo por perto. O teu cheiro, ainda de menina, sempre de menina para mim, a tua sinceridade pueril – como é possível conservar uma coisa assim tão pura aos 28 anos! – a tua honestidade, gravada no mais profundo de ti e espelhada nos teus gestos, na tua insegurança feminina. Escrevo-te porque ainda agora aqui estiveste, ainda agora partiste e já as saudades me roem o peito, e já quero ver-te outra vez. Primeiro não soube porque era este tumultuo mas depois investiguei a minha mente e descobri: é que algures neste fim-de-semana movimentado de almoços e jantares, bolas e filmes, pais, mães e cunhados, eu vi os teus olhitos pretos, brilharem outra vez como no dia em que me pregaste a partida da carta e senti-me renascer. Foi o meu pequeno milagre. O meu ET afinal revelou-se… Veio na nave da memória e eternizou-te na minha alma… A ti, à mãe e ao pai…

Eu sei que me amas muito. Eu amo-te mais do que posso explicar. Foi isso que os pais nos ensinaram. É essa a nossa herança. A mais preciosa de todas. A palavra irmão (irmã, neste caso) só faz sentido para mim porque tu existes. Sabes quando começamos a aprender a escrever e nos ensinam ca-dei-ra e pensamos logo naquela em que nos sentamos lá em casa? Para mim é assim com a palavra irmã(o)… Vou logo vendo os teus cabelitos, o sorriso, o tom da voz… A pureza dos sentimentos: tu!

Um beijo,

Mano