Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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A grande insolência

[Uma sondagem da Marktest para o DN e TSF, relativo a Março de 2003, apresenta as preocupações e prioridades dos portugueses, que se posicionavam do seguinte modo: – Desemprego (28%) – Listas de espera na saúde (25%) – Equilíbrio das contas públicas (14%) – Paz social (9%) – Violência (8%) – Qualidade da educação (7%). A Federação Internacional de Jornalistas exige um inquérito imediato e completo à agressão e detenção de um jornalista e um câmara da RTP e dois outros profissionais israelitas pelas tropas da coligação anglo-americana no Iraque.

Data da primeira publicação: 28 de Março de 2003]

A grande insolência

Olá mana,
Hoje estou particularmente bem disposto e nem sei porquê que é quando sabe melhor estar bem disposto.
Hoje quero lembrar-me de ti por ti num esforço de me substituir à tua própria memória. Bem sei que será impossível pois ninguém vive a vida de ninguém como o próprio, mas fica a tentativa.
Algures num dia invernio em plena quadra natalícia, aproximavam-se as férias do Natal. Já lá vão mais de vinte anos e Coimbra era menos cidade e mais aldeia dos arredores de si mesma. Em quase todo o lado havia grelos à venda e o comércio tradicional, vital como nunca, oferecia uma variedade inusitada de cores para a vista, melodias para o ouvido e sonhos para a alma. Numa sala de aula de uma das últimas aulas em que o professor Madeira percorreu o calvário de te aturar a ti e aos teus colegas com a paciência e o carinho que acompanharam a memória dele, estavam os teus olhitos pretos. Muito ávidos de coisas novas, bastante curiosos, alegres e sempre, sempre, irrequietos. Se bem nos lembramos, por aqueles dias tu querias viver cada dia como se fosse único, enfrentar todos os problemas e, acima de tudo, estavas disposta a aceitar todos os desafios. Ora, foi num esforço, voluntário e são, de te superares a ti mesma e, claro, deixar bem visto o professor, mais do que a ti própria, que aceitaste o desafio antes que qualquer outro o pudesse fazer.
– Quem quer cantar uma cantiga de Natal?
– Eu senhor professor, eu… eu!

Minutos depois ele não teria feito a pergunta. Anos depois tu não terias aceitado o desafio. Por mim, no ofício egoísta das memórias, congratulo-me com a ideia de ele não ter sabido antes o que soube depois e de tu não teres visto antes as barreiras e as distâncias que verias mais tarde. E cantaste envolvida e sonora, com a voz mais cristalina, mais genuína que o teu coração soube soltar:
– ginglobel, ginglobel, já não há papel
Não faz mal, não faz mal, limpa-se ao jornal!

pois… já tens o pobre professor Madeira de todas as cores do universo, muito indeciso, na sua benevolência e bondade cristãs, próprias de um verdadeiro pedagogo, entre a aceitação do gesto franco e voluntarioso e os ditames morais e educativos por que também se regia e que queria mostrar-te mas não sabia como. O senhor lá entaramelou qualquer coisa sem te ofender a dedicação de aluna mas apelando para o que quer que houvesse em ti que pudesse evitar outros momentos de tão embaraçosa, para ele, claro, dedicação!
Convém aqui lembrar em abono dos teus predicados vocais que, muito melhor do que a cantiga de Natal, era aquela que entoavas lá em casa à porta do quarto dos pais para onde fugias, acabada a sessão, a esconder a cara, vá-se lá saber por imperativo de que pudores. Virada para a sala muito empertigadita e com o peito cheio de ar e orgulho no feito que se aproximava:
– sandokan, sandokan
Não tem cuecas nem sutiã!

Voltavas, espreitando, a meia face, para a sala, para ouvires o aplauso ruidoso da mãe e da mimi e a festa silenciosa do pai em olhares que só tu e ele percebiam.

Que eu me lembre, de todo o teu percurso escolar, pelo menos até acabares o secundário, o ginglobel foi a tua grande insolência!

Quis o destino, mais ironia, menos ironia, que abraçássemos os dois essa profissão que ainda há pouco deixou o professor Madeira embaraçado. Se ele te visse numa sala defronte de uma turma haveria de achar piada! Talvez pedisse para cantar uma cantiga!

Há dias lembrei-me do teu ginglobel quando ouvi na televisão esta expressão que agora usei: grande insolência. Alguém, a propósito de um miúdo com a tua idade de há vinte e tal anos berrava assustado a sua indignação e proclamava estas duas palavras como se fossem as últimas pedras que tinha para acabar de enterrar um cachopo sem modelo masculino em casa e com menos de metade do dia para partilhar com a mãe, todos os dias, quase todas as semanas há já tantos anos que ele não se lembra, por certo, da última vez em que o seu nome foi pronunciado sem ser cuspido. Nem sequer vou cair no dolo de entrar em considerações que nos levem para o sistema educativo, para as falhas e razões dos professores, para as falhas e razões dos pais, para os ministérios, para as reformas, para os dinheiros, nesta floresta, então, nem vale a pena pensar em entrar.

Fico-me, na humildade do meu pensamento, por uma interrogação. Que raio aconteceu de lá para cá? Que aconteceu de tão grave que o mesmo filme tenha de implicar agora cadeiras e vidros partidos, agressões para todos os gostos com e sem armas, que aconteceu para que a tua insolência fosse destronada por palavrões e pontapés, que aconteceu para que o embaraço do professor Madeira fosse substituído por conselhos disciplinares e expulsões, que aconteceu para que o palco de aprender fosse pasto das televisões?

Não julgo. Penso.
Penso que estamos todos, na generalidade, menos humanos.

Não culpo. Constato.
Constato que os miúdos crescem nas filas de trânsito, nas filas das caixas registadoras dessas grandes superfícies tão exíguas para a alma humana. Constato que já lhes não pedimos para fazerem nada com as suas próprias mãos. Compram. Constato que já não há desencontros porque os telemóveis mantêm toda a gente em contacto. E depois? Onde ficam as aventuras e as histórias dos desencontros? Constato que lhes colocamos na mesa defronte para a televisão quatro ou cinco comandos a distância para comandar aparelhos que estão pouco mais do que ao alcance da mão. Constato que tudo parece fácil mas, mesmo acreditando que não está mais difícil, tudo continua a ter dificuldades. Constato um paradoxo: como é possível ensinar a superar dificuldades a crianças que educamos na ilusão de que elas não existem? Como é que estas crianças aprendem a sofrer? Constato, depois, triste, a ausência de resistência à frustração, a indignação, o choro, a revolta, a insolência, a violência.

Não calo. Digo
Digo que envolvemos as nossas crianças e os nossos jovens em processos desumanizados de crescimento e lhes exigimos de volta a normalidade, o que quer que isso seja. Digo que os abandonamos, que não os acariciamos o suficiente, digo que não sentem, quanto deviam, o nosso calor e a nossa presença, digo que somos, na generalidade pais e mães de um percurso irregular; parimos à pressa, trabalhamos à pressa, amamos à pressa, ensinamos à pressa e queremos que os nossos filhos sejam calmos e tenham condutas de comportamento adequadas à nossa educação! Não à deles, claro!
Esta é, mana, sem dúvida, uma grande insolência!!

E recordo, com carinho:
ginglobel, ginglobel….
Beijo, mano


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Deixa-te estar, Mariana!

[Uma sondagem da Marktest para o DN e TSF, relativo a Março de 2003, apresenta as preocupações e prioridades dos portugueses, que se posicionavam do seguinte modo: – Desemprego (28%) – Listas de espera na saúde (25%) – Equilíbrio das contas públicas (14%) – Paz social (9%) – Violência (8%) – Qualidade da educação (7%). A Federação Internacional de Jornalistas exige um inquérito imediato e completo à agressão e detenção de um jornalista e um câmara da RTP e dois outros profissionais israelitas pelas tropas da coligação anglo-americana no Iraque.

Data da primeira publicação: 14 de Março de 2003]

Deixa-te estar, Mariana!

Olá manita,
Dos cristais da minha memória há um mais cintilante. Os teus olhos de azeitona pequeninos e escuros com a malandrice toda a espreitar. O teu sorriso a acompanhar aquele meio milagre para fazer um milagre inteiro. E recordo, como que a querer ressuscitá-lo, um espírito tenaz e audacioso que espreitava por essas janelas da alma, de vontades decididas e orgulhos silenciados. O que tinhas de fazer fazia-lo mais tarde ou mais cedo. Arriscavas todos os dias e todos os dias ganhavas, quanto mais não fosse, vida! Sempre fui mais normativo. A minha coragem manifestava-se em grandes cometimentos que sobressaíam por serem excepção, a tua era quotidiana, estava em ti como uma segunda pele. De vez em quando, como todos os miúdos nas vidas todas, fazias das tuas e eras chamada à presença forte, segura e autoritária do pai. Não que ele alguma tivesse tido vontade de repreender-te, não. O pai tinha uns olhos-mágicos-de-ver-mais-o-que-é-bom e a sua postura de pater famílias educador e rígido quase não resistia aos teus olhitos e torna-se interessante relembrar, hoje, como David nem precisava de funda para derreter Golias. Mas o dever da educação impunha uma repreensão e ela surgia mais ou menos convincente. E tu, de pescocito inclinado, pregavas a vista no chão, coravas, formava-se-te um caroço na garganta, entaramelava-se-te a língua e só eras capaz do silêncio. O silêncio do respeito-temor. É aqui que quero deixar-te por agora, braços estendidos ao longo do corpo, o peso da culpa, do respeito e do medo a tombarem-te os olhos para o chão.

Os anos passaram e surgiram outras psicologias, outras psicopedagogias, outras pedopsicologias e outras tantas orgias intelectuais marcharam contra o medo de se ser menino, arrasaram o temor e levaram na enxurrada o respeito! E as crianças deixaram de o ser demasiado cedo, demasiado cedo tiraram os olhos do chão, demasiado cedo desafiaram autoridades que não eram para desafiar, demasiado cedo conquistaram direitos, atitudes, vontades para demasiado cedo se perderem as crianças. E os pais ficaram de braço no ar, a meio caminho de uma palmada, repartidos entre a ancestral força de uma punição e a moderna culpa de um trauma psicológico! E assim andamos pelas ruas e assim vivemos em casa: os pais de braço indeciso no ar e os filhos desprovidos da inocência de se ser criança, a saberem muito de amores e paixões, a saberem demasiado de contas ao fim do mês, a saberem bué de como responder, de como levantar os olhos em desafio, de ingenuidades perdidas antes do tempo. E a saberem pouco de jogar ao arco, de saltar ao eixo, de deixar o mundo dos crescidos para os crescidos, de pôr os olhos no chão na ingenuidade pura do respeito-temor.

Escrevo-te estas coisas porque me alegrei há dias com a Mariana. Da amálgama de miúdos que me vêm ter à sala de aulas todos os anos, que me tratam por “setôr”, que se empertigam vontades de ser homem aos doze/treze anos, que se insinuam desejos de ser mulher à saída da infância, emergiu um par olhos negros como os teus, um sorriso como o teu e quando chamei, autoritário, “Mariana!”, ela pôs os olhos no chão como tu fazias, corou! Estive quase para emendar a mão e adoçar o tratamento mas lembrei-me da raridade que é esta ingenuidade de ser menino, este filão de viver o tempo certo no tempo certo e calei-me. “Deixa-te estar, Mariana! – troquei com os meus botões – deixa-te estar que tens aí um tesouro de viver”.

E voltei a ti, de frente para o pai, à espera da sentença. E que te disse ele? “Porta-te com juízo!” Portaste e foste brincar, foste crescer para um dia seres mulher e receberes um mail de recordar, por um momento, as deliciosas dores do crescimento!

Beijito,
Mano


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Levanta-te e anda!

[Neste mês, tem início efectivo a guerra do Iraque. A Internet atinge os 500 milhões de utilizadores. As Nações Unidas criam um site para apoiar a Década da Alfabetização, que se desenrola de 2003 a 2012. Explicitando o conceito de literacia utilizado, afirma-se: “Literacy is about more than reading and writing – it is about how we communicate in society.”

Data da primeira publicação: 28 de Fevereiro de 2003]

Levanta-te e anda!
Olá mana,
Há uns tempos prometi-te um mail mais animado do que os últimos. Algo menos soturno e com uma nota de esperança… Acolheste a ideia de bom grado mas não conseguiste deixar de franzir o sobrolho como que duvidando da possibilidade de tal cometimento. Sabes, de certa forma tens razão. O Inverno vai frio e agressivo, as catástrofes naturais abatem-se sobre a Humanidade, os aviões caem como moscas, o espectro de uma guerra inútil tolda-nos os dias, a nossa lusitana sociedade afunda-se em escândalos e desesperos de onde emerge, inexoravelmente, a podridão inerente a décadas de desinvestimento na educação e nos valores morais e já nem temos a força e a pureza que nos levaram, em tempos, a traçar no espaço um corado manguito… não pode ser, podia estar uma televisão a ver! Tudo isto é consequência directa, a mim me parece, da “visibilidade”. O nosso mundo, a nossa sociedade e as nossas interacções estão cada vez mais expostas e desgastadas. O interessante é que fomos nós mesmos quem promoveu a visibilidade como um valor. Demos demasiada importância ao verbo “aparecer” e esquecemos, aos poucos, os saudosos “pensar”, “agir”, “partilhar”. Hoje, somos intervenientes sociais no sofá da sala com um comando a distância e um telemóvel. Cidadãos de sms, cidadãos de sondagens de opinião… e cada vez há mais sondagens e menos opinião!

Mas aí reside o milagre. Arranquei à memória do passado e aos factos do presente um motivo de esperança. Lembro para nós a madrugada pérfida em que o pai teve o primeiro enfarte, lembro a mãe a ampará-lo escada abaixo e lembro depois onze anos de calvário entre a nossa casa, seu castelo-forte-de-ter-a-donzela, e o Hospital Universtário de Coimbra, seu castelo-forte-de-se-manter-vivo. Lembro que naquela tão criticada e malogradamente jornalada e televisionada instituição o pai não era o pai, era o senhor Videira e os funcionários não eram aquele nem este. Todos tinham nome próprio e usavam-no. Lembro o carinho, a dedicação. Lembro o desvelo e o profissionalismo. Lembro que, para o pai, ir para o hospital não era ir para o hospital, era passar uns tempos na sua segunda casa. Lembro a cumplicidade de deixar ficar as visitas um minutinho mais… E pergunto: porque não apareceu tudo isto nos jornais e nas televisões? Porquê a relutância de gritar bem alto a solidariedade e a capacidade de fazer e ser bem que este humano Ser ainda cultiva?

E da névoa do passado vim aos trambolhões, memória abaixo, até desembocar à porta da unidade de fisioterapia do Hospital Rainha Santa Isabel em Torres Novas, coxo, de gesso recentemente tirado e apoiado em duas simpáticas muletas. E que vi eu? Vi uma unidade bem equipada de máquinas, aparelhos e recursos de pôr a boca aberta. Mas mantive-a fechada para a abrir depois, quando vi o trabalho, quando vi a dedicação. O carinho no massajar dos pulsos da senhora Maria, septuagenária de braço ao peito. O tom de voz de animar almas desconfiadas dos corpos que as guardam. O partilhar da dor, o incentivo, a cumplicidade entre terapeutas, auxiliares e pacientes. Por momentos julguei que éramos toda uma família e estaríamos juntos à mesa do jantar! Um dia ouvi um terapeuta dizer, inconsciente do poder bíblico e passado das suas palavras, “Ó senhor Manuel, levante-se e ande!” E o Homem, admirado consigo mesmo, levantou-se e andou. Passaram-me as dores e os emperros mas ainda lá voltei dois dias só para saborear a humanidade, só para ver a esperança, só para voltar a acreditar no meu semelhante. Ali, o profissionalismo e a dádiva são um só e o mesmo. Para quando, mana, estas coisas nos jornais? Para quando, mana, estas coisas a abrir o jornal das oito e a agitar o espírito confuso e conturbado dos nossos irmãos portugueses? Para quando esta humanidade para sempre?

Beijo,
Mano.


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Only You

[Esta é a primeira publicação deste texto: 19 de Maio de 2009]

Querida mana,

anos depois da escrita guardada, publicada e republicada, venho trazer-te novas carreirinhas de letras, fileirinhas de palavras a enformar as ideias que quero partilhar contigo. Será este o primeiro de uma nova série de mails que te vou escrevendo à medida que a vida escorre pelas paredes do tempo.

Há uns tempos li numa revista de curiosidades mais ou menos científicas que o cérebro nunca deixava de pensar. Nunca parava. Mesmo quando dormimos e até quando estamos em coma, há uma série de funções que a massa cinzenta que nos ocupa o crânio continua a comandar. A propósito disto, desenvolvi uma outra ideia, menos científica, ainda, mas em que gosto de acreditar: eu sei de fonte segura, a minha, que nunca deixamos de ouvir música! Por vezes pode não ser a música como a entendemos, com autor, gravada na bolacha de plástico… pode ser mais informalmente produzida o que não quer dizer que não seja música! Por vezes agradável, outras nem tanto. Acho até que os músicos, o que fazem, é limpar esta música do quotidiano, filtrá-la e dar-no-la a conhecer de forma mais agradável para os sentidos…

O que fazemos, depois, é seleccionar aquelas que nos despertam as emoções que mais gostamos de sentir e catalogá-las como preferidas.

Vem isto a propósito de, um dia destes, ter andado a vasculhar nos meus discos de vinil, passatempo mais recente do teu sobrinho que descobriu a maravilha da imperfeição por oposição à assepsia digital dos discos compactos, e ter encontrado um álbum dos Platters onde figura, entre outras preciosidades o velhinho “Only You”.

Era a canção preferida do nosso pai. A única e a primeira que lhe ocorria quando instado a responder à velha e pouco original questão: “Qual é a tua música preferida?” O texto teria pouco interesse se ficasse por aqui. O que me interessou mais foi indagar, à laia de explorador dos recantos da mente, o mundo de referências que a música contém…

Não se trata só de uma canção de amor. Trata-se de uma canção de amor e exclusividade. A mesma exclusividade que os nossos pais reservaram um para o outro. A dedicação única de uma vida. Mais, trata-se de uma canção de amor na década de cinquenta que invadiu a de sessenta! Trata-se de um tema que marcou uma forma de estar. Noites no clube de baile, orquestras ao vivo, cigarros despreocupados, saias de roda ao som do twist, e, claro, um “slow” partilhado, uma mão na cintura, a outra mão numa mão à espera de fechar-se nela e as emoções todas de uma noite de estórias a contar pela vida fora. Vivacidade e energia nas associações recreativas… o ARA! lembras-te do ARA? Associação Recreativa do Amboim. O ARA era um desses lugares mágicos onde se entrava inocente e saía dançante. Um lugar onde a magia das noites mágicas acontecia na vida das pessoas. A primeira mão dada, o primeiro pedido de namoro, a primeira autorização da figura paterna, aquele fundamental, inesquecível primeiro beijo…

Os Platters condensaram tudo isto, todo este mundo de vivências, em dois minutos e quarenta segundos. Sabes mana, eu acho que o pai não ouvia a canção. Ele vivia-a. E revivia a sua própria e extraordinária vida. E eu, agora, venho revivê-la contigo. A dele e a nossa com ele! Assim, como que a querer fintar a inexorabilidade do tempo, a fugacidade dos dias. Sentindo e ouvindo os Platters de novo!

Beijo,
Mano.


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Onde está Ifigénia?

[Neste mês, tem início efectivo a guerra do Iraque. A Internet atinge os 500 milhões de utilizadores. As Nações Unidas criam um site para apoiar a Década da Alfabetização, que se desenrola de 2003 a 2012. Explicitando o conceito de literacia utilizado, afirma-se: “Literacy is about more than reading and writing – it is about how we communicate in society.”

Data da primeira publicação: 14 de Fevereiro de 2003]
Onde está Ifigénia?

Olá mana.

Lembro, ainda com medo, aquela madrugada sangrenta de corações pequeninos e toda a vida depositada na coragem do nosso pai, da nossa mãe. Caminhámos céleres por entre silvos de balas enquanto a aurora nos traía a vida. Ficou-me na alma um cheiro de desespero, um pressentir de desgraça. A memória vai fechando janelas neste meu caminhar quotidiano para o fim, mas dessa madrugada não esqueço! Não esqueço o pânico. Não esqueço ter prometido nunca mais viver nada assim. Não esqueço a ausência absoluta de dignidade. Não esqueço que os homens matam sempre, não esqueço que os homens escolhem matar. Não esqueço que todos os dias nos atraiçoamos uns aos outros e ao milagre da vida que Deus nos concedeu. Essa guerra africana terminou. Outra se anuncia agora, lá longe, em terras secas de amor, áridas de vida e desafortunadamente prenhes de ouro negro! Sabes, quando andava na faculdade estudei, por razões várias, várias vezes, em vários textos, a história de Agamemnon. A este guerreiro, mais tarde herói, os deuses deram duas hipóteses: ou sacrificar sua filha Ifigénia e ganhar a guerra ou não fazê-lo para a não perder. E, num gesto de crueldade ímpar que viria a trazer uma história de sangue e perdição para todos os seus descendentes, Agamemnon mata a própria filha e ganha a guerra! Ganha! Ganha? Ganha…
Diz-me, mana, onde está Ifigénia?
Que sacrificamos nós em nome dos milhões que morrem todos os dias às mãos da guerra? Que sacrificamos nós? Onde está a nossa Ifigénia? Que razões avançam os nossos ilustres políticos para que se imole a pobre? Esta Ifigénia não é mais do que a nossa dignidade. Esta Ifigénia é a capacidade que temos de viver em paz. Esta Ifigénia é escolhermos amar. É a sanidade do nosso planeta, é o respeito ancestral que devíamos ter pela vida, pelo ser humano, por nós próprios! Sabes, mana, quando começarem os primeiros bombardeamentos morreremos todos um pouco, sacrficaremos o nosso mundo e, pior que isso, o mundo dos nossos filhos, porque, hoje, Ifigénia somos todos nós, os nossos vizinhos, os nossos filhos, a vida periclitante deste planeta… Ifigénia está em nós e em nós se sacrifica a sua pureza cada vez que um homem grita com outro, cada vez que um homem empunha uma arma, cada vez que um míssil é disparado, cada vez que, como agamemnones prepotentes e cegos, atentamos inutilmente contra a vida.
Lembro-me ainda do teu sorriso inocente naquela madrugada em que foste a minha Ifigénia sacrificada à estupidez humana. Lembro-me de ti quando ainda acreditavas que o mundo podia ser, como diz o Pedro Barroso, “um jardim de poetas superiores e verticais”.

Beijo.
Mano.


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Mais luzes, menos Natal

[Dos 50 principais jornais norte-americanos, apenas cinco alinham claramente pelas posições da Administração Bush de avançar para o ataque ao Iraque, segundo uma análise conduzida pela revista Editor & Publisher (entre eles: The Wall Street Journal e The New York Post). Há ainda 11 publicações que, embora alinhando no mesmo sentido, se mostram mais cautelosas, sublinhando a importância de conseguir primeiro evidências acerca das armas de destruição maciça e uma adesão da maioria da população (ex.: Los Angeles Times, The Washington Post). O Projecto “Público na Escola” lança uma nova edição do Concurso Nacional de Jornais escolares, este ano em torno do tema “O jornal. Que futuro?”. A República Popular da China decidiu bloquear o acesso ao Blogspot.com. Este site permite a criação de weblogs e, por conseguinte, a expressão individual e de grupo.

Data da primeira publicação: 31 de Janeiro de 2003]

Mais luzes, menos Natal

Olá mana,

Passámos juntos, há poucos dias, mais uma noite de Natal. Natal de trintões com cartão de contribuinte e número de identificação bancária. Longe, muito longe já, de uma noite irmã-mais-velha que hoje recordo para nós. Tu, menina de colo, poucos meses na idade e eu criança de calções curtos e joelhos esfolados à força de tanta brincadeira, de tanta aventura… Por essas alturas o Natal eram mais as pessoas e menos as coisas, onde vivíamos não chegara ainda a televisão e o menino Jesus reflectia poucas luzes mas muitas pessoas. Cantava-se, não se punha um cd! O Natal era o Avô a encher a sala com a sua voz, comandando os festejos. Era a avó a fazer bolo rei e torta de chocolate, eram os pais, as tias, os primos mais velhos e os filhos deles, uma comunhão, uma amizade, uma conversa, uma alegria sem T.V., sem hipermercados, sem papel de embrulho igual para todos. Havia sempre um familiar, em geral o primo Armando, que avistava o Pai Natal na janela da frente e a pequenada corria aos atropelos: “Onde está? Onde está?”. Entretanto, alguém completava a teia da ingenuidade e gritava dos fundos: “Estão aqui! As prendas estão aqui!” E o Pai Natal voltara a enganar-nos a todos e as prendas, poucas e maravilhosas, completavam o ciclo da dança que começara numa carta encomendada pelas tias para entregar ao senhor das barbas brancas sem ninguém saber… A concorrência, à época, ficava-se pela arte de fazer o embrulho mais perfeito, o laço mais bonito. Era um ritual que começava na escolha do papel, sempre de acordo com o presenteado, viajava pelo embrulhar distinto e dedicado de cada um dos presentes e terminava num todo: o presente ideal, matéria envolta em espírito. Lembro-me até que os mais velhos guardavam as duas coisas, o presente e o embrulho. Era como que um acto de respeito pelo desvelo com que tinham sido urdidos. Hoje, quando vejo as crianças deixarem o papel dos embrulhos caído, abandonado no chão à espera do caixote do lixo, percebo que assim seja, afinal, quem é que conhece a menina contratada por trinta dias numa superfície comercial para substituir o desvelo de quem não tem tempo para ele e que traz ao peito um cartãozinho que diz “Vanessa Martins – operadora – um sorriso para si”? Pois, o sorriso é só um e si somos tantos!

Lembro-me, mana, da individualidade que um presente representava, lembro-me de como uma prenda era especial, lembro-me, até, de o Natal ser tão mais curto no tempo e tão mais intenso no sentir. O problema é que o Natal já não começa quando devia… já não é quando um homem quiser. Agora, começa logo ali a seguir ao Verão porque os fluxos comerciais assim o exigem. Já viste a miséria de vida que não teríamos se, regressados da praia, das campanhas de Verão em que se vendem automóveis e computadores às postas, o mundo estagnasse para pensarmos uns nos outros?! Já viste a desgraça que não seriam os nossos serões se, entre Setembro e Dezembro, não se vendessem os mesmos automóveis e os mesmos computadores pelo mesmo preço mas muito mais em conta numa campanha televisiva de Natal?! Já viste que infelizes seríamos se não comprássemos todos os mesmos presentes, nos mesmos sítios, com os mesmos embrulhos, para baralharmos, partirmos e darmos de novo?!
Recordo também que no tempo em que o tempo corria mais devagar, o Natal tinha menos luzes mas quando chegava trazia uma aura de magia e mistério que nos fazia exultar e respeitar ao mesmo tempo. Na altura, havia palavras que eu percebia pouco mas ouvia muito e, quando as ouvia, sentia-as fortes nas pessoas, ecoavam pesadas: Amizade… Fraternidade… Piedade… Espírito Natalício. Hoje percebo-as bem mas ouço-as tão pouco! Aqui há dias até reparei que agora já nem é preciso praticar a Fraternidade, nem sequer é preciso sair do hipermercado para se ser fraterno! Compra-se, mana, garanto-te que se compra! Eu vi! Estava escrito com umas letras pequenininhas no fundo de uma caixa que continha um perfume de essência de espinho de ouriço-do-mar, um relógio, um corta-unhas e uma maleta de plástico para pôr tudo lá dentro: “Ao adquirir este produto contribui fraternamente para a causa dos…”
Será, mana, que, ao contrário do avô, do pai e do primo Armando, andamos a ensinar aos nossos jovens que tudo se compra? Duzentos gramas de fraternidade, trinta por cento de honestidade, meio litro de espírito natalício, “Operadora à caixa central! Ó colega troque este meio litro de espírito natalício por um que traga código de barras.” Espero, mana, saber parar. Que se consuma, que se faça comércio, que se anuncie, mas que não se esqueça que comprar não é praticar, que não se esqueça que há coisas que se não vendem, que essas, sim, são as autênticas e que o Natal deve ser o reavivar delas todas. Como ensinou o avô, o pai, o primo Armando naquele Natal em que havia menos luzes.

Beijo,
Mano


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O boné

[Este texto foi publicado em duas partes, em dois números consecutivos de “O Entroncamento”. Republica-se, aqui, na íntegra. A nave espacial Columbia é lançada ao espaço para uma missão científica de 16 dias com uma tripulação de sete astronautas, entre eles o primeiro israelense a ir ao espaço. Portugal é o país da União Europeia com o maior número de regiões a figurar entre as 10 mais pobres do espaço comunitário, de acordo com dados divulgados, em Bruxelas, pelo Eurostat.

Data da primeira publicação: 3 e 17 de Janeiro de 2003]
O boné
Olá mana.
Ontem precisei de uma roupa mais velhota para fazer uns trabalhos cá em casa. Teria de ser algo próprio para o pó, pingos de tintas, manchas de óleo… essas coisas que, de quando em vez, atacam a população masculina e a impelem em romaria domingueira para as mangueiras e os champôs para carro, com cera-extra, claro! Mas, adiante com o andor porque nem ontem foi domingo nem eu estive a lavar o carro, aliás, tal facto salta aos olhos. Nem tão pouco já me lembro do que fui fazer, talvez entreter a alma e distraí-la de si mesma e da sua existência contemplativa de um mundo em corrosão. Na busca dos tais trapos, por gavetas de parcas visitas e cheiro a livros antigos e cânforas ressequidas, impregnadas daquele odor que, só por si, nos faz lembrar alguma coisa que nunca sabemos o que é e que somos nós próprios ou, mais precisamente, estilhaços de nós que deixámos algures no passado e nos esquecemos de trazer connosco. Numa dessas gavetas encontrei um boné de pele, castanho-escuro, usado. Tão usado que a pele estava fina, como se fosse romper-se, o toque era suave e aveludado. Era o boné do nosso pai. É claro que as primeiras memórias, as que estão ali, à porta da alma, esperando o mais insignificante pretexto para nos abrirem o passado, os risos, as expressões do pai, o sorriso malandro quando enterrava o boné e o punha ligeiramente de lado como quem invoca tropas tropicais em motos vaidosas e áfricas perdidas, foram as primeiras a mostrar-se. Recordei o gesto do dedo que passava por cima da sua cicatriz, prémio de outras tantas áfricas e tantas outras aventuras em tempos em que a boina era outra. Mas, curiosamente, não me retive muito no pai, por si. Fiquei a pensar no boné ali e em tudo o que representaria para mim e para ti e porque o representraria. Fiquei a pensar no passe de mágica que o teria feito emergir de uma existência anónima de um bocado de pele castanha entre tantos outros para o estatuto singular de “boné do nosso pai”. Sem querer minimizar o pai, convém, no entanto, a justiça de referir que, no mesmo instante, pensei que, também em relação a outras pessoas que nos tinham deixado, ou não, havia objectos que emergiam do anonimato e mereciam artigos definidos a precedê-los: a caneta do pai, a bata da avó Ana, os óculos da mimi, o anel da mãe, o apito do avô e, porque não, o pé do candeeiro do bisavô Marques! Procurei com ansiedade e alguma desorientação nos restolhos da minha mente os porquês de tão significativo feito em objectos bem pouco significativos e, concerteza, facilmente substituíveis! Uma coisa tinham em comum: o passado. Eram todos objectos do passado. Um argumento fácil seria admitir que são do passado porque esta coisa de adquirir uma existência própria leva tempo, leva vidas, ainda para mais tratando-se de meros objectos do quotidiano. Mas a explicação era demasiado fácil e desconfiei. Depois assaltou-me uma outra explicação, menos fácil, é certo: pensei que esses objectos não valiam por si mas pelas pessoas que os tinham possuído, que, enquanto objectos, não passavam de isso mesmo, mas saíam de si para representarem as vidas dos seus proprietários. Se assim fosse, porque me comoveu o boné do pai se já não há pai? Porque me agarro à bata da avó se já não tenho avó? A explicação não me satisfez! E o boné ali, à minha frente, à espera que eu o percebesse e eu, impotente para o trazer de novo ao mundo dos vivos, para o arrancar ao fundo da gaveta canforada!

Sabes, julgo que tem tudo a ver com dar e receber. As pessoas davam aos seus pertences um carácter único, insubstituível, tratavam-nos com carinho e estima como se os não pudessem perder sob pena de perderem um sinal de si, um pouco do seu ser. E os objectos devolviam a generosidade tornando-se símbolos da existência dos seus proprietários, enquanto vivos, respondendo-lhes que sim à matinal e quotidiana pergunta: “ainda estou vivo?”. Depois de mortos aqueles, estes oficiam as memórias e mantêm aceso um espírito. É aí que está a diferença: há objectos que transportam consigo o espírito de quem os possuiu, há objectos que alongam um pouco mais a vida daqueles que partiram, chamando vida, claro, não à sua recordação, mas a um sentir absurdo e inexplicável da sua presença. Que bem que sabe. Que bom que é. Os objectos de que te falo hoje não foram pagos com cartões de plástico nem percorreram oceanos de suor e distâncias de continentes para custarem um preço qualquer terminado em nove numa loja onde se oferece tanto que já nem se sabe o que oferecer mais. Estes objectos não foram adquiridos num domingo porque então ainda havia domingo! Lembro-me bem, as mães abrindo as janelas tardias, os pais e a pequenada de volta da mesa, o colorido de um jogo de futebol visto na perfeição pela rádio, a tardinha a chegar, uma conversa, um doce, um café e a eternidade! Estes objectos eram expostos em montras de lojas como um trunfo único, jamais foram alinhados em filas de cinquenta iguais pelo mesmo preço, e havia prazer em mostrar, em vender, em comprar. Por insignificantes que fossem, estes objectos traziam consigo histórias de viagens, regateios, confecções mirabolantes, vinham ricos de aventuras e prenhes de vida. Estes objectos não eram descartáveis! Eis a diferença. Hoje trocamos as nossas coisas antes de atingirem o seu fim, cumprirem a sua missão. Hoje temos as coisas antes de precisarmos delas! Hoje as coisas são todas iguais e assépticas e se trouxerem uma história o mais certo é serem reclamadas: “preencha o impresso, por favor. Trouxe o talão de compra?”. Hoje qualquer um tem qualquer coisa mesmo que seja coisa nenhuma! Hoje damo-nos ao luxo de não gostar das coisas e permitimo-nos o desvario de as deitar fora. Hoje substituimos tudo! O que me preocupa, mana, não são os pedaços de plástico inútil, nem tão pouco a banalidade dos objectos. O que me preocupa é estarmos a fazer o mesmo com os sentimentos. O que me preocupa é estarmos a parir espíritos descartáveis. Se eu não deixar um boné especial ao meu filho porque lhe deixo vinte ou trinta anónimos, talvez com publicidade na pala, onde deixo eu o meu espírito? Onde pára o espírito desta sociedade descartável?

Sabes o que me apetece? Um dia destes, quando tiver uma reunião descartável muito importante, com gente descartável muito importante, com roupa descartável muito importante vou levar o boné do pai na cabeça! Um dia destes, quando for à praia contemplar o imenso do mar até me perder nele, levo o boné do pai na cabeça! Quero acrescentar-lhe histórias, arrancá-lo à cânfora e dar-lhe vida para que ele cá fique… com histórias! Pode ser que um dia qualquer o meu filho se pergunte:”que faz nesta gaveta o boné do meu pai?”

Beijo
Mano


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Futebol sem bola

[O ano de 2002 termina e fica marcado pelo Mundial de futebol, pela luta contra o terrorismo, pelos escândalos de abuso de menores e por alegados casos de corrupção no mundo do futebol

Data da primeira publicação: 13 de Dezembro de 2002]

Futebol sem bola

Querida mana,

Cá estou de novo a aborrecer-te com as minhas memórias do presente. Receio que os pensamentos que me acordaram hoje sejam demasiado masculinos para a tua paciência. Espero poder compensar-te nas entrelinhas.
Esta manhã acordei, como de costume, ao som de uma rádio qualquer, contudo, ao invés do costume ainda agora invocado, não passava música mas o noticiário desportivo. E nós já vamos dizendo desportivo sempre que só se fala de futebol numa metonímia traiçoeira. E as notícias foram-se sucedendo e eu notava-lhes algo de estranho, anormal. Na verdade, não notei logo essa anormalidade talvez por se tratar de uma anormalidade vestida, aos poucos, paulatinamente, com as cores da normalidade quotidiana. Mas o espírito é persistente e o meu lá acabou por encontrar a causa daquela comichão que me incomodava o pensamento. É que da fiada de notícias, muito encarreiradinhas como os pinhões nas feiras a fazer fio de trazer ao pescoço, sobressaía muita gravata, muito fato cinzento, muito senhor de voz grave e ascendência séria, muita secretaria mas pouca magia! Não ouvi um único desportista e da bola nem notícia! Provavelmente estava abandonada num qualquer canto do balneário impregnado de suor e herudóide. Sabes, o futebol cada vez tem menos bola! Acredito mesmo q, sentado em posição estratégica, numa bancada de um extremoso estádio português, um adepto, por fervoroso e dedicado que seja depara-se com duas dificuldades. Uma é reconhecer a sua equipa a outra é vislumbrar no campo, por detrás da névoa imensa deixada pelas acusações, pelas movimentações, pelas lesões, pelas opiniões e pela luz das televisões, a pobre da bola! “Onde está a bola que não a vejo?” Pergunta este nosso amigo incrédulo. Onde está não sei, mas digo-lhe, se a quiser procurar, onde ela esteve verdadeiramente brilhante e redonda, cheia de pujança e magia: esteve na varanda da minha avó! Sabes mana, estamos a envelhecer muito depressa. Vê lá que ia todo lançado para a varanda das memórias quando reparei que me referi, atrás, a dois conceitos desactualizados, quase sem sentido que não sei se entenderás. Por isso tos esclareço.
Adepto. Já não há ou há muito poucos. Deves ter ouvido falar deste senhor mas provavelmente chamaram-lhe investidor, accionista ou coisa do género. O adepto era desinteressado e o desinteresse, hoje, já não interessa. O adepto via ganhar com golos, hoje pode-se ganhar de muitas outras maneiras, é o que faz a diversidade!

Sua equipa. Este conceito também já não existe. Nem mesmo clube faz muito sentido. Hoje, estes fenómenos são designados de SAD (olha a ironia do significado disto em inglês), companhia, empresa, sociedade de investimento, tudo coisas que ficam bem sobre o tapete verde de relva! Enquanto for verde!

Voltemos à varanda da memória que agora já vai sendo, espero, da curiosidade. Diria, hoje, que era pequena mas na altura, se bem me lembro, era do tamanho do mundo. Cabia lá, inteirinho, um Domingo de aventuras, de conversas animadas, de petiscos preparados pela avó, de futebol com bola. Naqueles três metros quadrados sentava-se o pai à direita, num sofá de napa azul escura. À esquerda o avô num sofá gémeo do primeiro. Em torno deles amontoavam-se cadeiras com genros, filhos, primos, irmãos… a maioria ia e vinha. As mulheres actualizando as suas conversas chegavam de quando em vez com mais um pirezinho de qualquer coisa irrecusável que as mãos milagrosas da avó prepararam. A garotada, brincando lá para dentro, vinha perguntar o resultado – “quantos há?” – mais para ver a expressão rabugenta do infeliz contemplado com os números menos favoráveis do que para saber realmente quantos havia. No centro deste concentrar de emoções havia uma mesinha frágil onde ficava a telefonia e onde, inevitavelmente, os impressos do totobola eram premiados com rodelas de humidade escorrida dos copos da melhor cerveja do mundo: a que o nosso pai bebia e partilhava com a mãe num prazer e numa cumplicidade singulares e que era a mesma que deixava pedacinhos de espuma branca no bigode do avô que sempre se ia queixando do fígado como quem não quer a coisa mas sempre o compensava com mais uma cervejinha e um ovo estrelado: “ó Ana traz-me outro!”. Nesse tempo, no tempo em que o futebol se jogava com bola numa varanda de terceiro andar em Odivelas pós-75, sabia-se que era Domingo só de vir à rua! Nesse tempo se dissesses o nome de um jogador dizias o nome da tua equipa e podias erguer esse nome como uma bandeira com a segurança de quem sabe que há coisas que estão primeiro, que há coisas que se não traem! Chalana era Benfica, Manuel Fernandes era Sporting, Frasco era Porto… isso era seguro, não mudaria. E não mudou! Nesse tempo quando um jogador marcava e beijava a camisola encontrava lá o emblema do clube, hoje beija os logotipos das multinacionais, dos casinos, das cerâmicas, dos supermercados! Meu Deus, nem tínhamos a palavra logotipo e que felizes éramos. No tempo em que o futebol se jogava com bola, a telefonia, rodeada pelos cravos, pelo chá príncipe e pelo gindungo que a avó plantava na floreira da varanda oferecia o bailado do relato do Jorge Perestrelo e ele ainda dizia mais vezes “goooolo” do que “mas o qué qué isso ó meu!”. Nesse tempo, em que havia menos dirigentes, menos árbitros e muito mais bola, nós regressávamos à escola na segunda de manhã e discutíamos os lances que víramos na rádio, e jurávamos que a bola tinha entrado, que o penalti tinha sido, que a minha equipa era melhor que a tua. Tudo dentro das quatro linhas, no tempo em que o futebol se jogava com bola na varanda da nossa avó!


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O pecado do António Banderas

[Este texto foi escrito após a saída em dvd do filme “Original Sin”. Muito desse filme acordou-me memórias de um passado marcante e de retorno impossível. Já a revisitação não é tão difícil. Ainda bem!

O Iraque tarde em responder ao ultimato dado pela ONU. Manoel de Oliveira com 94 anos estreia “Filme Falado”. O JN publicou uma investigação que divulga falta de apoio clínico nas maternidades o que torna o processo penoso e doloroso. Um estudo refere que a funcao publica está envelhecida, situando-se a idade média dos trabalhadores entre os 40 e os 45 anos. E, devido as alterações no sistema de aposentação que obriga os funcionários a trabalhar até aos 60 anos, nao se prevê uma melhoria para esta situação
Data da primeira publicação: 29 de Novembro de 2002]
O pecado do António Banderas
Querida mana,
Ontem vi um filme. Depois de horas consecutivas com os olhos pregados em leituras teóricas para a minha tese quis ver cor. Quis ouvir som. Quis uma história. Fui requisitar um filme e trouxe um com o António Banderas. De um argumento intrincado e um tanto decadente emerge a figura do actor latino com o cabelo ondulado, puxado para trás, o cigarro no canto da boca, o olhar envolvente, o sorriso malandro a despertar todas as libidos femininas. Emerge, ainda, a tenacidade e a certeza de quem quer agarrar a vida, de quem quer ser feliz, “no mather what”! Essa ânsia da felicidade absoluta, do entendimento perfeito entre dois seres de sexos diferentes mas em simbiose psicossomática é alcançada depois de muitas provações. Ora aí está a grande diferença entre os filmes e a realidade. É que atrás da tela é sempre possível o pecado da felicidade absoluta, do entendimento perfeito, o pecado do prazer que se estende para além da carne e toma as almas dos pecadores! A personagem do António, ontem, fez-me lembrar outras personagens, em tudo idênticas, que percorreram as vidas dos nossos pais trazidos à luz dos projectores pelo Bogart. Foi algures nesse nó do pensamento, entre o Bogart, o António e os nossos pais que parei numa interrogação: “que faltou na realidade à mãe e ao pai de tudo o que os outros tiveram atrás da tela?” nada! Conheceram-se durante aventuras africanas de contornos complexos mas os seus caminhos cruzaram-se uma vez para nunca mais se perderem de vista. O seu amor, espontâneo e avassalador, passou as provações e os testes que a honra e os costumes exigiam. Uniram-se em beijos infindáveis e noites de prazer tropical e o seu castigo fomos nós! Dois filhos a quem se dedicaram como se fossem a sua obra de arte. Ainda me lembro do pai, poucos meses antes de morrer, com lágrimas de alegria nos olhos dizer como quem fecha um capítulo, como quem encerra um livro: “o que é que os outros têm? terrenos, casas e carros. Mas eu tenho dois doutores!” acredita mana, não era vaidade no grau académico, era a singela contemplação da obra da sua vida! uma vida de harmonia, de entendimentos, de dar, de receber, de cedências carinhosas, de protecção mútua. A mãe costumava dizer, ainda em África, que desconfiava de tanta felicidade. Por vezes, já depois do regresso atribulado, dizia que a forma como tinham sido despojados da sua vida, do seu paraíso na terra, fora um castigo por terem sido tão felizes. Mas como explicar, então, que de tamanha adversidade tenham de novo tido forças para reconstruir o seu paraíso na terra, como explicar a ausência de uma discussão nos momentos mais difíceis, nos dias mais pobres?

Sabes, durante muito tempo julguei que os nossos pais não eram normais porque estava sempre tudo bem, tudo em harmonia, por vezes busquei essa normalidade numa discussão, numa briga mas nunca a encontrei! Por vezes, recordo em gargalhadas, uma noite em que eu, ainda mergulhado na doce escuridão da ingenuidade, ouvi a mãe chorar! De imediato pensei e conjecturei noites atribuladas de grandes discussões e planos infindáveis para que no dia seguinte tudo corresse bem. E foi no dia seguinte que perguntei, armado em defensor da mãe e da normalidade:”mamã, porque é que tu choraste hoje de noite?” e as conjecturas ruíram, os meus planos e a minha noite em branco tinham sido em vão: “a mamã não chorou, deves ter sonhado, filho! sabes, por vezes sonhamos com tanta força que até parece realidade.” E andei ali desenganado com aquele choro na mente uns dez anos. Mais tarde, já a ingenuidade tinha levantado o seu manto, já eram as saias das raparigas que me toldavam a visão, e tornei a ouvir aquele choro. Era bonita, jovem e o seu corpo de sereia oferecia-se ao meu quase tão desajeitado como eu. Trocávamos o que tínhamos para trocar que, ainda que não fosse muito, para nós era tudo! E à medida que a minha mente recuava no tempo empurrada pelos sons do presente, o choro da mãe ia ficando menos choro, mais sensual e eu não tinha agora ninguém para proteger, e agora já não era choro, era um gemido de prazer de um corpo que se entrega, de uma alma que se funde. A moça, assustada com as lágrimas que lhe beijavam os seios perguntou: “Que tens? Magoaste-te?” Não sei o que respondi na altura mas se fosse hoje diria: “Não tenho nada, foram só os meus pais que cometeram o pecado do António Banderas!”


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As cores do galo negro

[Este texto foi escrito pouco depois da captura e morte de Jonas Savimbi, em Fevereiro de 2002, mas só viria a ser publicado em Novembro desse ano. Nesse Novembro, O presidente angolano, José Eduardo dos Santos, defende a entrega ao seu povo de um Prémio Nobel da Paz; em sessão extraordinária, o parlamento iraquiano reune para discutir a resolução da ONU para o desarmamento do Iraque; divulga-se que a rede Al-Qaeda, de Osama bin Laden, planeou, em 1999, assassinar o Papa Joao Paulo II, aquando da sua visita às Filipinas. O presumível atentado não foi consumado, dado que a viagem foi cancelada devido a problemas de saúde do Papa. Em Portugal, realizou-se um encontro de autarcas portugueses para discutir o Orçamento de Estado para 2003. A Associação Nacional de Munícipios criticou já o Orçamento, considerando que este penaliza o poder local.
Data da primeira publicação: 15 de Novembro de 2002]

As cores do galo negro

Olá mana.

O título deste mail é o que parece mas não é o que parece.

É evidente que este meu pensamento não está imune à recente morte de Jonas Savimbi mas as memórias que tudo isto me despertou são bem menos ditadas pela política e pela invasão mediática do que pela ternura das crianças que já não somos. Sabes, não gostei de ver, em tudo quanto é televisão, o corpo de um homem como se fosse o de um animal capturado, ao jeito de um prémio de caça. Sobretudo porque esse homem fez parte da construção de um colorido que povoou os nossos dias de meninos e que eu relembro egoistamente para nós. Sabes, o galo negro, naqueles dias, não era negro. Tinha a pujança do encarnado e a beleza natural do verde e em cada autocolante, em cada bandeira, eu juraria ter visto um galo de muitas cores; as cores da felicidade ingénua de uma criança que acredita que tudo está bem e vai continuar bem. Não estava e não continuou. Mas isso não importa, agora! Sei que as cores do galo negro não estavam sozinhas, havia outros partidos, com outras cores e outras letras de que eu ignorava o significado. Para ser sincero eu julgava que as pessoas escolhiam as letras mais bonitas para pôr nas bandeiras e gritar pelas ruas e ouvia emepélá! emepélá! fénélá! fénélá! unita! unita! Como se fossem canções de um novo arraial a invadir os meus dias. E lembro-me do nosso avô num carro, pelas ruas, gritando e cantando e ele era tão bom e amigo que, se estava fazendo aquilo, então é porque se tratava de uma festa! Temi, depois, as conversas muito sérias em torno da mesa do jantar. Conversas que falavam de perigos e mudanças, de partidas e chegadas, conversas com nomes impronunciáveis de homens que queriam o que outros não queriam, de homens que faziam o que outros deveriam ter feito e lembro-me de palavras que surgiam novas como pedradas assustadoras na calma água dos meus dias: boato! Colono! indepen… esta era impossível para mim. E lembro-me de um senhor que era careca! De dia voltávamos à festa das ruas e às montras das lojas pintadas com grandes palavras que os donos lavavam a pano. E passavam carros em cantorias e gritarias e o galo sempre presente com suas cores de arco-íris. Só mais tarde, já a ingenuidade de menino tinha partido há muito, já a gaivota que voava com muito mais graça na tua boca – sempre sussurrado não fosse alguém ouvir e levar a mal – tinha quebrado a asa na desilusão de um mundo desfeito, já as longas mesas redondas de senhores a preto e branco tinham deixado de nos ocupar o serão, eu encontrei um velho autocolante, de brilho perdido, e pensei: “este tem o galo preto?” e remexi a papelada toda em vão até que algures numa página perdida de um manual cossado pelo uso eu constatei atónito: “então não é que o galo é mesmo preto?!”

E os dias da minha vida andaram repentinamente para trás como quem rebobina uma cassete e cheguei às ruas da Gabela, e aos carros em cantoria e às pessoas bradando, na mão de um, uma bandeira amarela, na de outro, uma encarnada e, na estrada, junto ao passeio, vi um autocolante, e a minha alma disse-me o que durante tanto tempo me ocultara: o galo era mesmo preto! Fiquei sem saber se queria voltar a viver aqueles dias como tantas vezes desejara em sonhos acordados, de olhos no tecto, à espera do sono! Mas queria, nem que fosse pelos odores, nem que fosse pela voz do pai dizendo, calma, que acreditava, nem que fosse pelos olhos da mãe duvidosos de tanta felicidade, ela que não via que as pessoas dos filmes fossem mais felizes do que ela! Nem que fosse por ver-te baixar, menina-bébé de ano e picos, firmares-te nas pernas, acocorares-te, num equilíbrio periclitante e apontares segura para um autocolante que estava no chão: “dá! dá!”. Mas o galo era negro!

Não quero saber das políticas dos outros. Não me interessam os nomes que chamam à Paz. Interessa-me só que fui feliz, que te vi ser feliz, que tinha um pai forte e corajoso que me havia de proteger de tudo e uma mãe quente e fofinha que me tinha prometido que eu não precisava de ir à tropa. E não fui! Interessa-me só que a imagem de Jonas Savimbi baleado, desarranjado, indignamente estirado numa prancha de madeira, improvisada, fez morrer em mim o que restava do colorido desse arco-íris dos tempos da nossa meninice. Eu que até juraria que aquele galo tinha cantado!
Beijo.
Mano.