Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Os anjinhos todos…

[Portugal desiste de referendo sobre a legalização do aborto. Morte do desenhista português Eduardo Teixeira Coelho. Coreia do Norte testa míssil (atinge o Mar do Japão). Casamento da atriz Renée Zellweger com o cantor Kenny Chesney. Acordo sobre Cooperação Econômica e Comercial entre Angola e Argentina. Tony Blair anuncia formação de seu novo governo.

[Data da primeira publicação: 27 de Maio de 2005]

Os anjinhos todos…

Querida mana,

O dia estava quente.
No céu havia aquele espraiar de nuvens que se vão alongando em tons de encarnado aqui mais ao pé a fugir para uma multidão de laranjas à medida que a distância se alonga.
Para mim, fora um dia normal de escola mais almoço mais escola mais brincadeira mais voltar a casa com os sonhos todos na alma, com os projectos todos na algibeira.
Nada previra que haveria Natal nesse dia. Nada previra neste meu mundo de criança a viver cada dia como se nele estivesse a vida toda que os anjos e os santos e a santíssima trindade e os olhares felizes, e os preocupados, e os suores na testa, e os “vai correr tudo bem”, estivessem todos à minha porta por volta das 19:30 quando regressei das minhas aventuras, das batalhas, das futeboladas e da escola, a outra, a dos cadernos!
Olharam-me todos como se tivessem algo de extraordinário a revelar. E tinham! E nesse momento o quadro deve ter sido o normal. Uns quantos adultos a baixarem-se à minha altura, curvando-se, de mão nos joelhos, com palavras doces e miraculosas a anunciar o milagre. Na minha memória nunca foi um quadro normal. Não sei porquê, vejo sempre os adultos dirigindo-se a mim envoltos numa aura branca e diáfana como se não fossem deste mundo, como se o que estivessem para dizer não fosse deste mundo também. E tento lembrar-me deles sem esta névoa cintilante mas não consigo. Tento rasgar no pensamento uma porta para a normalidade mas o milagre não sai de lá.
Vem até mim o senhor Sá, santo da bonomia e da compreensão. Vem até mim a D. Emília, santa da diversão e do riso. Vem até mim o pai, santo do amparo e da força. Vem até mim o avô, santo da partilha e da conquista. Vem até mim a avó, santa de todos os santos, de todas as coisas boas. E vêm até mim mais uns quantos santos periféricos que se despegam, já, da imagem recordada. E em coro cantam na voz que os santos têm quando anunciam milagres: ó Paulinho, anda cá, vem ver, tens uma maninha nova!
A expressão é discutível. Primeiro porque eu não tinha nenhuma mana velha, de facto não tinha nenhuma mana, depois porque quando se tem uma mana que se não tinha antes ela há-de ser nova forçosamente. Mas as palavras continham em si a intenção anunciadora de um novo estado de coisas. De um novo mundo. De uma nova configuração dos espaços, de uma nova gestão dos tempos, de uma nova presença na minha vida, de um surgir novo e miraculoso de emoções e sentimentos nunca antes experimentados. O que mais me impressionou, ao longo dos anos, no dia em tu nasceste, mana, é que eu nasci também. É que o depois de ti apagou o antes de ti. É que a minha vida recomeçou depois de ti e assim viria a ficar até ao dia em que fui pai…
Lá subi as escadas e, dentro de casa, a aura era agora dourada. Tudo brilhava. Havia sussurros femininos, mulheres que passavam apressadas e pressurosas no ofício de dar vida à vida. E vi-te. Vi-te juntinho à mãe. Gordinha, cor-de-rosa, linda de viver. Eras frágil e não sabias fazer nada senão respirar e mamar e, contudo, já tinhas tido a força de juntar à tua volta meia cidade.
Completou-se-me na alma o quadro dos santos. Maria e o menino Jesus afinal também tinham vindo à festa do Natal… é engraçado, e agora to confesso, como me não interessou para nada, na altura, se eras menino ou menina… eras o teu espaço no meu peito e isso bastava-me. Que chã ficou a filosofia nesse dia. Resumia-se a olhar o céu da janela do meu quarto e ver o mundo como o nunca tinha visto antes: pelos olhos da fraternidade e da partilha! São José foi desalojado do seu quarto e da sua cama não fosse ele magoar a menina durante a noite. E por isso se deitou comigo. Cama pequena para dois peitos inchados de vida e orgulho. E quando adormecemos, eu agarrado a ele e ele com os pés de fora, tínhamos um mundo novo na mão. Um amor novo no coração. E ele disse de mansinho:

– Tens uma mana nova, tens de a tratar com cuidadinho!
– Está bem papá!

E o mundo renasceu. E a vida recomeçou… no dia em que tu nasceste!

Beijo
Mano


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Sondagem: Demasiado tempo na escola?

[Esta é a primeira publicação deste texto: 14 de Outubro de 2009.]

As crianças passam demasiado tempo na escola
Olá mana,

li uma pequena notcícia que mora em http://www.ionline.pt/conteudo/26981-as-criancas-passam-demasiado-tempo-na-escola acerca de um estudo que defende a ideia interessante de que as crianças passam demasiado tempo na escola. Como a questão não é simples, coloquei uma sondagem aqui ao lado com uma pergunta directa e duas respostas fechadas só para ver, no universo dos leitores deste cantinho, para que lado pende a balança. Até domingo, pelas 23 horas podemos todos responder.

Ainda assim, eu penso que a questão mais importante não é se elas lá passam muito ou pouco tempo mas se estamos a fazer tudo o que é possível para que esse seja um tempo de qualidade. O estudo é interessante e surge a sua divulgação num momento crucial uma vez que se discute se a escola deve estar, ou não, aberta a tempo inteiro.

Como sabes, sou um saudosista e acredito que os nossos miúdos são demasiado vigiados, têm demasiadas resopnsabilidades, vivem demasiados problemas, são forçados a um perfil adulto desde muito cedo. Têm telemóveis precocemente, motos e carros precocemente e precocemente partilham das ventura e desventuras financeiras das famílias com que vivem. Hoje, deixa-se de ser criança muito cedo. Tinha-se a ideia de que isso acontecia no tempo de Salazar mas sendo verdade que havia uma inequívoca exploração do trabalho infantil, não é menos verdade que se brincava e corria e saltava e andava pelos campos e não se era interrompido pelo timbre metálico do telemóvel.
Crescemos muito de lá para cá. E, efectivamente, tratamos melhor as nossas crianças e protegemo-las mais. Eu só pergunto se as não estamos a tratar bem demais, a proteger demasiado? Desnecessariamente. E pergunto se a escola deve ser um repositório de crianças durante o horário de trabalho dos pais, ou se deve constituir um local onde vamos com gosto e alegria aprender as maravilhas do mundo… Ora, acontece que, dificilmente, alguém faz com gosto e alegria algo que é forçado a fazer das 8h às 17h, dia atrás de dia.

Ficam as achas. Espero que os leitores de “Mails para a minha Irmã” alimentem a fogueira! Espero que votem e comentem aqui neste post. E espero que estejam em desacordo!!! A ver se aprendemos com todos, bem entendido.

Beijo,
mano.


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Camisa branca, gravata preta

[Portugal desiste de referendo sobre a legalização do aborto. Morte do desenhista português Eduardo Teixeira Coelho. Coreia do Norte testa míssil (atinge o Mar do Japão). Casamento da atriz Renée Zellweger com o cantor Kenny Chesney. Acordo sobre Cooperação Econômica e Comercial entre Angola e Argentina. Tony Blair anuncia formação de seu novo governo.

[Data da primeira publicação: 6 de Maio de 2005]

Camisa branca, gravata preta

Querida mana,

Um destes dias, via correr na televisão a vida dos outros, em torno dos problemas dos outros, à volta das circunstâncias dos outros e ocorreu-me, a propósito do dito filme, que as famílias fazem movimentos elípticos em torno dos sóis que possuem. Seja porque há elementos mais aglutinadores de atenções, seja porque os há com mais capacidade de investimento ou, simplesmente, porque têm mais disponibilidade, o certo é que parecem ter, certos tios, certos pais, certos avós, certos primos, a capacidade de juntar os outros todos à sua volta. Tirando isto, tais movimentos vão-se regendo pelas situações inevitáveis: aquelas em que se brinda a vida com vida e aquelas em que nos curvamos perante a finalidade momentânea da morte, com respeito.

Emergiam do ecrã os tons brancos e alegres dos casamentos, dos baptizados, dos natais, das festas de anos e emergiam, pesados e graves, os tons cinzentos das marchas fúnebres que carregam o corpo de uns e as lágrimas dos outros. Mostrava a fita, como me lembro de ver na nossa família, camisas brancas e gravatas pretas a dominar o que se via e o que se sentia. Ainda me lembro, nestas ocasiões mais tristes, da mãe a ajeitar o nó da gravata ao pai como se fosse ela o seu primeiro, último, e mais fiel espelho. A gravata nascera para aquilo. Só fazia funerais e o pai, assim preta, só tinha aquela como que anunciando à vida que não há que dar muito espaço de manobra à morte. Os momentos ficavam-se por isto. Marcados pelo branco das camisas em pano de fundo ao negro das gravatas e o mais que se sentia devia estar daquelas cores, devia ser sentido na triste harmonia entre o que vai lá dentro e o que se passa cá fora.

Um dia destes, por infortúnio, fui a um funeral. Daqueles a que vamos por obrigação e respeito mas em que o cinzento nos não tolda muito. É uma perda. É uma tristeza. Mas não é uma mágoa profunda. Essa fica para os entes queridos assim nomeados nas coroas de flores. E vi, com outra tristeza, uma tristeza mais moral que funérea, a passerelle de cores alegres e primaveris que desfilou diante dos meus olhos. E eu, ali quieto, de camisa branca e gravata preta, senti-me demodé, desenquadrado e senti que o que se sentia não estava cinzento. Penso, mana, que quando se vai a um funeral não se pode ir como se vai ao cinema ou a um casamento. Não me preocupou tanto o aparato alegre das cores. Preocupou-me mais o que estava a nascer por debaixo delas. Será mana, que quem não respeita a morte consegue ainda respeitar a vida? Será que, como as estações do ano, andamos a inverter o sol do sorriso com as lágrimas do choro?

Eu fiquei demodé, como o nosso pai, de camisa branca e gravata preta. Nestas coisas que se sentem por dentro e se vêem por fora vou ficar sempre demodé.

Beijo
Mano


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Um homem mais perto de Deus

[Luís Marques Mendes é eleito presidente do PSD no XXVII Congresso Nacional do partido. O Vaticano nega os rumores sobre a morte do Papa João Paulo II. Autoridades espanholas prendem 13 suspeitos de participação dos atentados de 11/03/2004. Morte do Papa João Paulo II (Karol Wojtyla). O tenista suíço Roger Federer vence o espanhol Rafael Nadal e conquista o Masters Series de Miami.

[Data da primeira publicação: 15 de Abril de 2005]

Um homem mais perto de Deus

Querida mana,

Não te dizia eu, ainda há pouco, que as palavras nos fogem? Não te dizia eu que ando para escrever-te acerca do dia em que nasceste? Ainda não é desta que a vida me abre uma brecha para além das intenções. Foi para mim um dia extraordinário que muitas vezes recordo devagarinho como que a querer demorar-me nos pormenores. Desta vez, contudo, preciso falar-te desse homem que nos deixa e, se conseguir, falar-te um pouquinho do que nos deixa. Como sabes, todas as pessoas e, por conseguinte, todas as famílias, têm, por entre a narrativa do quotidiano, emprego, viagens, férias, trabalhos que se aceitam, trabalhos que se deixam, opções, riscos, dissabores, conquistas, têm, dizia eu, uma história religiosa. Uma história de opções espirituais. Há as famílias mais crentes, as menos crentes, as mais participativas, as menos participativas, as mais normativas e as mais rebeldes. Independentemente das opções individuais e familiares, independentemente, mesmo, do credo de cada um, João Paulo II marcou uma geração de pessoas que se habituou a olhar a Igreja Católica e até o Cristianismo pelos olhos do Santo Padre. Não há pessoas indiferentes a este Papa. Pode ser uma velhinha aqui da Zibreira, católica como lhe ensinaram e depois ensinou também, pode ser um chefe de estado muçulmano, pode ser um jovem indu professo, mas, se for humano, há-de reconhecer com a naturalidade com que se reconhece que a água é água, que o pão é pão, que o ar é ar, que as montanhas são as montanhas, e os pássaros, e as flores, e o amor, e o verde, e a vida, há-de reconhecer com a naturalidade de aceitar sem discutir que este homem foi tão homem que ficou mais perto de Deus. João Paulo II conseguiu o mais difícil. Não se refugiou no silêncio. Não se escondeu nos extremismos injustificados. Assumiu todos os assuntos do Homem como assuntos da sua Igreja, enfrentou todos os problemas e conseguiu fazê-lo sem ofender, sem magoar, sem impor. Foi um homem francamente arrojado, arrojadamente moderno. E percebo-lhe, agora que os anos passaram, a estratégia. Uma estratégia de humildade e serenidade. Uma estratégia que consistiu em ouvir os que sofriam, em escutar os que se lhe dirigiam, em dirigir-se aos que pediam a sua presença, uma estratégia de clara aproximação ao Homem. Uma negação, quase até ao incompreensível, da indiferença que corrói e corrompe as relações entre os homens. Este foi o Papa que reconheceu a verdade de Galileu, este foi o Papa que se deslocou ao berço de Cristo e pediu perdão pelas perseguições. Este foi o Papa que fechou os ouvidos às palavras dos conselheiros e se deslocou aos locais mais adversos para ouvir, para amparar e, claro, para levar a Palavra. João Paulo II, mana, esteve tão perto do seu semelhante que conseguiu ver-lhe a face sulcada pelo sofrimento, as mãos cansadas do trabalho, os olhos iluminados pela alegria. Esteve tão perto do seu semelhante que fez disso a sua própria ascese sem que reparasse nisso. Este Papa, este nosso Papa, fazia parte de nós, das nossas famílias. Agiu sempre como todos os homens deveriam: com serenidade, compreensão e capacidade de estar no lugar dos outros. Julgo, mana, que te escrevo hoje sobre o Papa por que há nele algo que me deixa profundamente esperançado em relação a nós, mortais comuns e humanos: é que residiu a sua ascese, residiu a sua reconhecida e unanimemente aclamada santidade numa inequívoca e profunda aposta na humanidade. Foi por assumir-se homem e próximo, sempre muito próximo do Homem, que este Papa se distinguiu dos outros homens. Sem querer cair em raciocínios de carácter teológico arriscado, eu diria que este Papa nos elevou a todos como humanos. Eu diria que, com a sua vida e as suas opções, João Paulo II fez de nós todos pessoas um pouco melhores. Esteve acima dos critérios, das discussões, das indignidades, esteve acima de tudo isto porque se baixou para olhar o seu semelhante nos olhos e dizer-lhe “Não tenhas medo!”

Beijo,
Mano.


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Não há não tenho tempo

[Luís Marques Mendes é eleito presidente do PSD no XXVII Congresso Nacional do partido. O Vaticano nega os rumores sobre a morte do Papa João Paulo II. Autoridades espanholas prendem 13 suspeitos de participação dos atentados de 11/03/2004. Morte do Papa João Paulo II (Karol Wojtyla). O tenista suíço Roger Federer vence o espanhol Rafael Nadal e conquista o Masters Series de Miami.

[Data da primeira publicação: 1 de Abril de 2005]

Não há não tenho tempo
Querida mana,

Muitas vezes te tenho escrito e muitas vezes as palavras me fogem ao controlo de autor e acabam expressando o que pensam sobre o Tempo. Autoritário, apago os parágrafos, silencio as palavras e as ideias delas em impulsos de autoridade autoral e lhes digo que não é aquele o caminho, que não são minhas aquelas ideias mas sim delas, palavras libertinas e insubmissas. Retomo a escrita e o carreiro das ideias nasce na minha poltrona de autor para depressa se rebelar, tomar vida própria e seguir um caudal que há-de levar qualquer coisa de mim mas que não sou eu em exclusivo. É por isso que muitas vezes te quero escrever sobre o pai, sobre a mãe, sobre coisas inúmeras da nossa infância e acabo, perdido, de volta do Tempo. Não sei já, mana, quantas foram as vezes que comecei escrevendo sobre o dia em que nasceste, sei só que foram as mesmas que terminei por não fazê-lo. São incómodas e incomodativas, as palavras, quando se rebelam e insurgem contra a vontade tão pouco soberana de quem julga comandá-las. Hoje fiz este exercício de raciocínio: conversei com as minhas palavras que começaram por dizer-me que não eram minhas. Não chegámos a acordo. Somente a breves cedências mútuas. E perguntei-lhes de que queriam falar-te. Que coisas queriam dizer-te. Que mas dissessem já e evitaríamos tempos perdidos em batalhas inúteis que as ditas sempre levam de vencida.

E sussurraram-me coisas do Tempo. O tempo de fazer. O tempo de ir. O tempo de voltar. O tempo de recordar. Ter tempo. Não ter tempo. Arranjar tempo para. Inventar tempo. Precisar de tempo num tempo único e breve que se não tem e se não gasta porque se não tem. Um tempo frágil para quem quer fazer o mundo e tê-lo na mão. E disseram-me, estas palavras insubmissas, que não há tempo senão o de estar. Que se não rouba nem cria nem desperdiça nem dá nem tira o que não está na nossa mão senão para estar.

Fiquei-me a dar razão às palavras e a pensar quantas vezes, vezes demais, já disse de mim para comigo “não tenho tempo”. Um dia destes visitaste-me e estivemos por aqui entretidos vendo cassetes de quando o meu filho mal se tinha nos pés, de quando estendia os braços ainda para amparar-se, de quando os meus compromissos se resumiam a pouco mais do que olhar por ele, de quando lhe nunca dizia “não tenho tempo”. A simplicidade dos dias de então emergiu grandiosa nas pequenas coisas que me contentavam e reparei que me contentava com olhá-lo como se estivesse sorvendo e cristalizando o Tempo, me contentava com atirar-lhe a bola ao ar para ficarmos os dois, lado a lado, vendo-a cair. E pensei: “houve um dia em que tive tempo para ver cair uma bola dos céus com a mesma ânsia e expectativa que o meu pequeno companheiro de entretém.”
Não há “não tenho tempo”, mana. Há só estarmos. Há só o que fazemos com Ele. E criei uma brecha nos compromissos. Criei uma falha nos assuntos inadiáveis. Criei um buraco negro na ausência e fiz tempo e fiz vida e fiz partilha e tive na mão o que pensava me havia escapado: o Tempo. Um destes dias, mana, cortei os cordões com o inadiável e adiei-o. Um destes dias, dei importância ao importante e corri por um pinhal adentro com uma bola na mão que chutei para os céus com quanta força tinha. Depois, sentei-me junto do meu filho e fiquei vendo-a cair…

Beijo,
Mano


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Amor em mangas de camisa

[José Sócrates assume o cargo de primeiro-ministro de Portugal. Pedro Miguel Santana Lopes assume a Presidência da Câmara Municipal de Lisboa. O primeiro-ministro José Sócrates (Portugal) apresenta programa de governo. Portugal ratifica a European Landscape Convention.

[Data da primeira publicação: 18 de Março de 2005]

Amor em mangas de camisa

Querida mana,

Acordem os dias com sol radioso a inventar aventuras de vida na alma dos mortais, nasçam eles com a neblina que nunca mais traz o rei de volta, nasçam frios a exigir roupas de tolher os movimentos, nasçam quentes a prometer ao corpo liberdades de exprimir-se, a verdade é que têm de nascer sempre e com eles nascemos nós, repetidamente, para mais uma corrida de viver. Gosto de pensar que o gesto simples de acordar, pouco alvo de reflexões muito aturadas, é como que um renascer constante da nossa alma, um reavivar das nossas esperanças, um pensar que temos mais esta oportunidade. Daí que tenhamos, ao longo dos séculos, instaurado pequenos, despercebidos, mas importantíssimos rituais. Ele é o fazer da barba, para quem a faz, bem entendido, ele é o lavar de mãos e caras, ele é o acertar dos cabelos onde pensamos ficam melhor, o puxar das calças para cima, primeiro uma perna, depois a outra, meias, sapatos, o enfiar das mangas da camisa, depois os botões, um a um, pulseiras, batons e mais uns quantos produtos que não sei nomear, relógio, mais recentemente as modernidades exigem, também, o verificar de baterias de telemóvel, um toque de perfume, um creme para as mãos, uma última olhadela no espelho apurando a aspecto geral, um pelo que se tira do casaco, um toque de graxa neste sapato e saímos de peito feito para as alegrias e para os aborrecimentos a enfrentar enquanto a nossa terra dá mais uma voltinha do seu perpétuo movimento rotativo. Lá diziam os antigos que a vida é uma roda, e vê tu como acertavam, mesmo sem grandes ciências nem telescópios gigantescos a atestar uma verdade sentida que não racionalizada. Estes rituais variam de acordo com cada ser que cada ser é um universo. Contudo, gosto de pensar nestes pequenos gestos com a admiração de quem presencia um milagre. O milagre da renovação. São gestos que se unem em torno de si mesmos e gritam pelas janelas e pelas portas das casas:

– Este está pronto!
– Este está lavado e arranjado!
– Esta está penteada e maquilhada!
– Este vai sair agora para o trabalho!
– Esta vai para uma reunião importante!
– Este vai fazer uma corrida de manutenção!
– Este vai levar as crianças ao jardim-de-infância!
– Esta está pronta para ganhar!
– Este preparou-se para perder!
– Este vai odiar!
– Este Vai amar!

E o curso dos dias confirma ou desmente a intenção do primeiro passo que damos ao sair da porta mas há algo de comum a toda a Humanidade, todos os dias: acordar para a vida, renascer para o mundo, prepararmo-nos para mais uma voltinha no carrossel da terra!

Tanto quanto me lembro, a nossa casa, chamando casa à casa e às coisas e às pessoas e aos actos e aos gestos e aos sentimentos que a habitavam, não era muito diferente das outras. Despertadores, olhos ensonados, a mãe a despertar toda a gente, o pai e o seu ritual de barba feita, sempre, “são só dois minutos”, leite a ferver púcaro a fora que ainda não tinham acordado os micro-ondas, pão, qualquer coisa nele, mas, acima de tudo, a marcar-me a memória a fogo-amor, a vontade de dar, a capacidade de receber, a pintar-me o passado em tons de harmonia e felicidade, fica-me uma imagem: o pai de pé, com um braço esticado, a face de lado olhando por cima do braço e a mãe junto a ele fazendo-lhe a dobra da manga da camisa. Estava ela como se o estivesse marcando para o diferenciar do resto dos mortais, estava como se estivesse escrevendo um poema que dizia este é o meu marido, é diferente de todos os outros, vê-se bem, tem uma dobra na manga da camisa, fui eu que lha fiz, fui que a amei, leva-o, mundo, e devolve-mo à noitinha. Ela dava como só uma mulher profunda e enternecidamente apaixonada, mesmo aos 30 anos de casamento, pode dar. E ele recebia como quem recebe um conselho, uma mais-valia, um prémio, e vivia aquele dia, como todos os outros, com o orgulho de ter sido o homem que se tinha preparado para enfrentar a vida com uma dobra nas mangas da camisa. Uma dobra de dedicação. Uma dobra de nobreza no dar e no receber. Uma dobra de amor amado nos gestos simples dos dias simples das pessoas que se tinham como as mais importantes, as mais amadas. Tantas vezes vimos aquele quadro, tantas vezes se repetiu e nunca se banalizou. Havia ali um momento em que a azáfama parava, em que o universo esperava uma insignificância de tempo para que a vida pudesse continuar. Era o momento em que os nossos pais acordavam para mais um dia fazendo amor em mangas de camisa!

Beijo grande


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O prémio da Gigi

[José Sócrates assume o cargo de primeiro-ministro de Portugal. Pedro Miguel Santana Lopes assume a Presidência da Câmara Municipal de Lisboa. O primeiro-ministro José Sócrates (Portugal) apresenta programa de governo. Portugal ratifica a European Landscape Convention.

[Data da primeira publicação: 4 de Março de 2005]

O prémio da Gigi

Querida mana,

A capacidade de viajar no tempo, assunto há muito debatido por cientistas e explorado por romancistas e cineastas, está ao alcance da memória de qualquer um. Viajava pelos dias primeiros da minha existência em busca de uma memória libertadora, algo que instigasse a reflexão, o sorriso e, porque não, a lágrima.

E aconteceu-me um fenómeno interessante. Fui para trás no tempo mais do que minha memória permitiria, consegui uma viajem catapultada pela convivência com esse ser extraordinário de generosidade e amor que é a nossa tia Geralda, à altura, infantil e carinhosamente tratada por Gigi que Geralda eram sílabas a mais para quem articulava as primeiras palavras. Como é que se deu tão peculiar viagem, com o me lembro de coisas que estão para lá do que consigo lembrar? Lembrar, não lembro. A minha mente vai só até à história que a Gigi contava. A história, essa sim, remonta a tempos que me estão difusos na neblina que tomba sobre o olhar do passado. Confiaremos, por isso, na tia Geralda que relatava, vezes sem conta, os dias que me tratara das fraldas, os passeios que dera comigo pelas ruas da cidade, exibindo o menino mais recente da família até chegar ao momento em que mostrava a recompensa que por tudo isso recebera. Levantava o dedo indicador e mostrava, bem visível, certa cicatriz que os meus dentes jovens lá deixaram… e terminava sempre comentando a firmeza com que eu fincara os dentes parecendo não querer largar a presa do momento. O que sempre me impressionou naquela cicatriz que o tempo foi tratando com dificuldade foi o facto de nunca ter sido realmente uma cicatriz mas mais um prémio de quem ama e dá só por dar e amar… Impressionou-me sempre o orgulho com que a nossa tia exibia todos os momentos que tínhamos vivido juntos mesmo que deles emergissem as coisas menos boas que a vida pode trazer.

E fiquei, assim, lembrando as minhas memórias e as memórias da Gigi que via nas feridas do tempo os prémios da vida. E fiquei, assim, pensando, como os educadores de hoje e os psicólogos e os pedagogos e os pais e os tios vão vendo estigmas de violência e agressividade onde a Gigi via amor e carinho. E lembrei-me de que queria dizer-te como seria bom que o nosso mundo estivesse mais polvilhado de tias assim, de mulheres que conseguem ver o amor mesmo onde parece que não está. A nossa tia tem crescido e envelhecido dando e amando como deveriam ter sido sempre os gestos de dar e amar: sem nunca esperar nada em troca, sem nunca conhecer os limites de dar e amar porque não têm limites, assumindo sempre o seu dar e o seu amar como prémios de vida de si para consigo…

E veio-me à memória um outro momento. Um momento em que cantámos toda a tarde uma cantiga que ela me estava ensinando. Um momento, mais, de dar desmesurado, de paciência infinita e dedicação total tão próprios da nossa tia: ela entoava a letra num ritmo suave e jocoso. Esperava que eu a aprendesse para a vida. E aprendi! Tal foi a lição de música, tal foi a convicção no ensinar que ainda hoje sou capaz de entoá-la de novo, e faço-o quase todos os dias…
2 x 1… 2
2 x 2 …4
2 x 3 …6

– Vá lá, filho, agora salteado… 2 x 4 … 8
2 x 3 … 6

E agora que o tempo passou e as máquinas de calcular querem fazer as contas todas eu ainda vou exibindo com orgulho esta canção de tabuada que numa tarde só a minha tia me ensinou enquanto brilhava ao sol certa cicatriz que o tempo ainda não apagou…

Beijo grande
Mano


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O convite

[A TAP Air Portugal apresenta sua nova imagem corporativa. Morte de Lúcia de Jesus dos Santos (última pastora que viu a Virgem Maria em Fátima). Eleições legislativas em Portugal (vitória do Partido Socialista).Fundação da Sociedade Portuguesa para o Desenvolvimento da Educação e do Turismo Ambientais.

[Data da primeira publicação: 4 de Fevereiro de 2005]

O convite

Querida mana,

Não me surpreende, já o correr do tempo, a sucessão dos dias, a humana indiferença no atropelo quotidiano dos valores que deveríamos preservar. Não me surpreendem as grandes imoralidades, nem as grandes ofensas, não me surpreendem, também, os grandes gestos e as mais nobres atitudes. Nos dias que vão correndo, aqui sentado de frente para estas árvores que me cercam, a humanidade tem-me banalizado a grandiosidade e, por isso mesmo, as mentes mais despertas acordam para as pequenas coisas, os gestos mais insignificantes, as palavras mais simples. E tanto querer o grandioso, o Homem acaba idolatrando aquilo que primeiro ignorara: a autenticidade das coisas simples.
É precisamente de um gesto simples que venho falar-te.

É precisamente de um gesto simples que venho falar-te. Um gesto revestido de uma singela autenticidade, a marcar-me a alma, a deixar-me pensando nas horas que se seguiram e a multiplicar consequências e entrelaçados pensamentos que tentarei explicar-te em palavras poucas para o que senti. Um gesto que me chegou marcado por uma enternecedora singeleza mas que viria, em poucas horas, a assumir contornos de grandiosidade imensa no mundo de coisas a que este teu mano vai chamando seu.
Há pouco dias, o nosso primo Carlos passou cá por casa e convidou-me para seu padrinho de casamento. Senti a responsabilidade e senti, também a alegria de quem é eleito, considerado, amado. Como calculas, o facto só por si bastaria para me deixar radiante. A possibilidade de apadrinhar a felicidade daqueles que amamos é uma dádiva, é uma alegria pouco comum. Estarmos vivos e testemunharmos o crescimento daqueles que queríamos ver crescer, a felicidade daqueles que queríamos ver felizes é razão grande de despertar as emoções boas desta vida.

Houve, no entanto, na formulação daquele convite, algo que o viria a tornar ainda mais singular, uma realização do curso da vida que eu não esperava tão cedo. A certa altura ele terá articulado qualquer coisa como “o teu pai e a tua mãe são os meus padrinhos de baptismo, como o teu pai já cá não está, gostava que fosses tu o meu padrinho de casamento”

Foi aqui que vi o filme todo da existência humana. As sementinhas a germinarem em plantas que dão flor donde nasce o fruto feito vida que se come e se rejeita o caroço, quem sabe, se joga porta fora para ficar apodrecendo no chão onde estarão, também as sementinhas que reiniciarão o ciclo interminável da existência de todas as coisas. Alguém tinha pensado que eu podia estar no lugar do meu pai, do nosso pai. No lugar do homem que amámos e continuamos a amar, do homem que tinha o mundo nas mãos para no-lo dar, aquele de quem as nossas vidas dependeram durante tanto tempo, do homem por nós, em primeiro lugar, considerado insubstituível.

É bem verdade que estas coisas geram sentimentos contrários. Por um lado senti que, de alguma forma, a idade me estava chegando, as gerações se estavam passando e estes cabelos brancos e também a falta deles tinham agora a confirmá-los um convite para padrinho de casamento. Por outro lado, alegrou-me, mais do que isso, honrou-me a naturalidade e a simplicidade com que o Carlitos pensou que eu poderia assumir o que o nosso pai já não pode.

E ficaram para trás as grandes questões da actualidade, as grandes campanhas políticas, as grandes coisas da humanidade ficaram pequeninas à medida que a minha alma crescia e se aproximava do nosso pai pelos caminhos mais estranhos. Senti-me como a sementinha que vai gerar planta mas, curiosamente, esta sementinha sabia que houvera antes uma árvore frondosa e forte naquele local. Quase fui o poeta que queria ser a ceifeira e ter a consciência disso… e eu tinha a consciência que faltara ao poeta. Resta-me, agora, cumprir para com a família tal como faria o nosso pai. Tanto esforço gasto para perceber os males da nossa sociedade e encontrar-lhes o remédio e a resposta, a milagreira solução que se busca está mesmo à nossa frente: apostar inequivocamente nessa teia de relações, de sentimentos, de amores e ódios, de aproximações e afastamentos a que, consensualmente, chamamos família. Vê, mana, as voltas que um homem dá por causa de convite tão singelo, tão singelamente feito, tão sublimemente formulado.

Beijo
Mano.


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Doze Passas

[Desmultiplicam-se os apoios, vindos de todo o mundo, para com as vítimas do Tsunami que atingiu em finais de Dezembro a Ásia. O número de vítimas calculadas sobe para uns incríveis 200000 (duzentos mil!!!). Portugal anuncia a retirada de seus soldados do Iraque. Assina-se o acordo de Cooperação Económica entre Portugal e China. Assinatura do Tratado de Amizade e Cooperação entre Portugal e Argélia. Terremoto de 4,1 graus na escala Richter na região sul de Portugal.

[Data da primeira publicação: 14 de Janeiro de 2005]

Doze Passas
Querida mana,

Ultimamente, por uma qualquer razão ainda não consciencializada, tenho cedido ao impulso de indicar-te o dia em que me sento para escrever-te. Deve tratar-se de uma insondável necessidade de marcar a ferros, a fogo e a vontade de persistir a minha passagem pelo tempo dos nossos dias. Penso que todos os homens, ao menos uma vez na vida, sofrem de tal necessidade. Acomete-nos a dita quando nos apercebemos, com clarividência, da efemeridade de passarmos por este mundo. Hoje é dia 1 de Janeiro de 2005. O dia, só por si, pelo mundo de simbologias que carrega consigo dava assunto para uns quantos mails, teses de mestrado, doutoramento, dissertações diversas. A mim, serve-me, apenas, para usufruir da bruma de paz que envolve as árvores lá fora, para deixar passar o tempo sorvendo a tranquilidade do momento que, infelizmente, não é para todos os humanos, longe disso.
Sentado na cama, com o portátil no colo, contemplando a mulher de todos os momentos, de todas as alegrias e das dificuldades todas, descansando a meu lado, lembrei-me das doze passas que ontem comi no momento em que, no tempo do tempo dos homens, acordámos que fenecia um ano e nascia outro. Como sabes,não sou supersticioso. As minhas crenças na superstição não vão além do bater três vezes na madeira antes do Simão Sabrosa cobrar um livre directo para o Benfica o que, em abono da verdade, não tem servido de muito. Voltemos às passas. O primeiro problema que se me pôs foi se deveria comê-las uma a uma, como manda a tradição, ou engoli-las todas. Traí a tradição. Acho que este nosso Portugal e esta nossa Humanidade andam a fazer tudo com medos e prudências exageradas. Andamos todos com medo que algo corra mal e a vida acabe quando o mais certo que temos, consultados todos os tratados de filosofia e lidas todas as bíblias, é que a vida encontra sempre um caminho, uma saída, um trilho de luz. É chegada a altura, mana, de vivermos o bem e o mal, de caminharmos em frente, de sorvermos a vida como se cada momento fosse o último que o pode ser de facto! É essa a grande vantagem da condição humana, é esse o grande milagre da nossa existência: cada momento do devir é uma surpresa de vida! Nem mesmo os Deuses, pagãos, cristão e de outros credos têm essa benesse de uma vida continuamente suspensa no milagre do seu curso.
Assim, comi as passas todas à uma, como se tivesse a escolher viver nesta vida as vidas todas de que for capaz. E que desejei eu por elas? As coisas mais simples e fáceis de conquistar… se o Homem quiser!

Uma passa: que cada homem, no próximo ano, ao dirigir-se a um semelhante, o faça com amor nas intenções e verdade no coração.

Duas passas: que cada homem dê um passo pequeno ou faça um pequeno gesto para diminuir o sofrimento de um semelhente seu desde os sem-abrigo em Lisboa, às crianças doentes e famélicas no mundo inteiro passando, claro, por aqueles que sofrem na Ásia as consequências da devastação desse fenómeno natural que julgávamos só habitar os filmes de ficção americanos mas que, infelizmente, deixou de ser um efeito especial para ter efeitos reais.

Três passas: que a tecnologia que dominamos seja por nós dominada noutras direcções para além do armamento, das bombas, da destruição de nós mesmos. Que a continuemos a dominar, sim e sempre, mas, por exemplo, para fazer andar os que não andam, ver os que não vêem, tratar os que sofrem das maleitas da moda…

Quatro passas: que o poder político, humano que é, se oriente no sentido do entendimento das “pólis”. Dito de outro modo, que os homens de fato cinzento falem menos e façam mais e melhor.

Cinco passas: que saibamos orientar os excedentes de produção onde os há, porque os há, para onde possam suprir necessidades.

Seis passas: que todas as religiões se unifiquem num só propósito com um só sentido: trazer a tranquilidade espiritual e a vontade de bem fazer e de fazer por bem a toda a Humanidade.

Sete passas: que a saúde e a educação passem a orientar a política económica e não a serem orientadas por ela.

Oito passas: que a justiça social oriente o quotidiano dos homens e não viva ao sabor do que ele traz.

Nove passas: que os dias especiais como o Natal, o dia da Mãe, o dia do Pai, o dia do Professor, o dia da Água, o dia da Mulher, deixem de ser especiais porque passaram a ser todos os dias.

Dez passas: que as crianças sejam instituídas como o primeiro e mais importante património da Humanidade.

Onze passas: que se fundem muitas famílias e que todas as famílias cresçam e prosperem unidas na certeza de que a família é o primeiro de todos os valores da Humanidade.

Doze passas: que a nossa família assista com saúde, união e prosperidade a tudo isto no ano de 2005.

Como vês, mana, não sou um indivíduo de superstições nem de impossíveis. Não desejei nada que dependesse de entidades superiores, divinas. Nada desejei que dependesse de artes mágicas ou forças transcendentais. Fiquei-me pelas coisas simples que estão ao alcance da acção do Homem!!!

Feliz ano!

Beijo grande

Mano


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Falta de Originalidade Recomendável

[Presidente Jorge Sampaio (Portugal) aceita a demissão do primeiro-ministro Pedro Santana Lopes. Presidente Jorge Sampaio (Portugal) convoca eleições para 20/02/2005. Terremoto de 5,4 graus na escala Richter atinge o cabo de São Vicente. Eleições presidenciais e parlamentares em Moçambique.

[Data da primeira publicação: 31 de Dezembro de 2004]

Falta de Originalidade Recomendável

Querida mana,

Nem mesmo no dia de todos os descansos, nem mesmo no dia em que quase toda a humanidade pára para se olhar eu deixo de escrever-te. Hoje são 24. Hoje cairá a noite das noites no primeiro de todos os jantares. Sinto encher-me a alma uma vontade indomável de fazer bem, de ser melhor. Um impulso de procurar os que necessitam de água e dar-lha a beber, de encontrar os que clamam por alimento e dar-lho a comer. Sinto encher-se-me o peito de vontades inusitadas de cantar e fazê-lo só por isso. Apetece-me sair para a rua e cumprimentar os anónimos todos, distribuir apertos de mão, abraços e sorrisos pela medida do excesso de dar.
Hoje ouço as músicas que já todos conhecemos e pouco me importa quem as canta, como as canta, quem as publica ou quanto custaram os cd’s onde estão registadas. Interessa-me só que estejam no ar. Hoje todas as piadas têm graça e todas as pessoas são bem intencionadas. Hoje não vejo semblantes carregados porque não consigo.

Um dia destes assisti, com tristeza no olhar e escuridão na alma, a uma entrevista em que uma jornalista, no papel de interrogada, afirmava convicta das suas convicções, sólida nas suas posições, que não dava prendas para não alimentar a máquina consumista. E pensei nas suas razões. Pensei que a azáfama das compras pode ser só uma moda, pode ser só a consequência da monopolização de mercados e da manipulação de mentalidades. E pensei, também, que pode ser tudo o que quisermos, tudo o que sentirmos. Pensei que pode ter os significados todos que lhe imputarmos com a intenção do gesto de dar. A jornalista, mana, não tinha razão. Pior do que a moda de consumir para dar, é a moda da indiferença. A moda do comodismo racionalizado e solidamente assente e justificado nas razões que encontrámos para nos desculpar do acto de dar. Essa moda, eu não quero. Prefiro a recomendável falta de originalidade da elaboração da lista dos presenteados, do adivinhar do que gostariam, do tentar surpreender, da ginástica entre o que se quer dar e o que se pode dar no jogo do manuseio doméstico dos euros e dos dias do mês. Prefiro o sacrifício de enfrentar as multidões, prefiro oferecer um objecto que, como dizia a jornalista, não vai servir para nada, mas que oficiou o meu gesto de reconhecimento, de dádiva, de partilha, que fez de mim um homem melhor, mais em paz com a sua consciência e que, possivelmente e apesar da sua inutilidade futura, teve ali, por breves instantes, o poder miraculoso de arrancar um sorriso a uma pessoa que me é querida.
Não quero a originalidade crua e indiferente de virar as costas a um passado de tradições que representam o melhor que há na nossa envelhecida humanidade. Quero reviver e reavivar sempre esse inexplicável impulso que toca os homens e por breves dias, momentos especiais, nos faz ser melhor, traçar pontes e pontos de união, nos levanta os olhos à procura da estrela envoltos de pensamentos e sentimentos que, por instantes, se irmanam com aqueles que impeliram Baltasar e os companheiros na busca de um menino…
Quero, mana, o consumismo absoluto e sôfrego desse espírito a que chamámos natalício seja no abraço que vou dar-te daqui a minutos quando chegares para estarmos juntos, seja no brilho que me iluminou o olhar quando retirei da prateleira de uma superfície comercial a lembrança que escolhi para ti! O mundo continuará a rodar, os hipermercados passarão de moda, a jornalista não resistirá aos anos passados, eu também não. Contudo, desconfio que o espírito permanecerá sejam quais forem as circunstâncias que orientem as coordenadas da humana condição.

Feliz Natal, mana, agora e mais logo, também, quando abrires o teu presente.

Beijo
Mano.