Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Erotika – Roma

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jpv
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Roma

Roma fervilha de atividade e emoção… não é a capital da Europa. É a capital do Universo civilizado. O mercado de víveres está povoado de patrícios, de escravos e de estrangeiros de todas as partes do mundo. As matronas apontam para o que querem e continuam deslizando, os escravos ficam para trás apurando as escolhas e depois seguem-nas. Ervas, óleos, frutos, verduras, animais vivos e esfolados, homens e mulheres apregoando o negócio. Depois, o bairro das sedas e depois o do calçado e, por fim, o dos metais. Com o desmoronar da república e a abolição da democracia, seria de esperar do regime imperialista uma recessão nos hábitos e costumes, um recrudescer do ambiente social. Nada disso. Não só a vida não veio a ser assim, como do ponto de vista cultural, político e social, a civilização romana teria o seu auge logo no início do império. E tudo, como sempre acontece, por influência de um homem. Os regimes são o que são. Nem melhores, nem piores, diferentes. Os homens que lideram os regimes é que podem fazer a diferença. E Octávio César Augusto fez a diferença. O imperador aprofunda o culto e o desenvolvimento das letras e das artes. A obra secular de Cícero é estudada e debatida nas escolas. Os contemporâneos Horácio e Virgílio são declamados em saraus, nas bibliotecas, em jantares de amigos e nas ruas. Os concursos de teatro multiplicam-se. Os romanos preparam farnéis, fazem uma algazarra descomunal na comédia e compenetram-se até às lágrimas na tragédia. Podem estar cinco dias no teatro sem sair. Apesar do poder absoluto do imperador, Augusto mantém o senado  a funcionar como órgão consultivo e isso fortalece o seu poder de decisão. Solidifica o direito romano e promove políticas de fortalecimento e proteção da mulher como seja o divórcio unilateral por iniciativa desta desde que se prove emancipada para o que deve ter três filhos. Pode parecer ridículo aos olhos de um cidadão europeu do século XXI, mas o estado de coisas antes de Augusto dava ao marido direito de vida e morte sobre toda a família incluindo a sua mulher. O progresso social é tremendo. Augusto consegue o equilíbrio entre a austeridade e o luxo permitido e isso traz o mundo romano satisfeito e feliz. O fenómeno cristão é ainda jovem e incipiente, mas até nisso o Imperador é hábil. Decreta a liberdade de credo religioso para os patrícios e as hostes acalmam-se. As ruas de Roma atafulham-se de liberdade e movimento, há tabernas, bordeis, lojas de todos os comércios imagináveis, há bibliotecas, tribunais, templos e monumentos e há esse espaço indispensável ao quotidiano dos romanos, o lugar onde correm todas as notícias verdadeiras e os boatos todos, onde se constroem as intrigas domésticas, onde se fazem os negócios e onde, espante-se, se descansa e se trata do corpo. São os banhos públicos. Roma está apetrechada com diversos destes locais onde a oferta é vasta e cobre todos os gostos e necessidades. Ginásio, salas de óleos e massagens, espaços para leitura, normalmente, ao ar livre, e, claro, os banhos nas suas três vertentes. O frigidarium, banhos frios; o tepidarium, banhos mornos e o caldarium, banhos escaldantes. Pela manhã são espaços desertos, mas à tarde, à medida que os afazeres profissionais vão terminando, estes espaços enchem-se de gente e ação.

É nesta Roma rica, crescente, multilingue e alucinante que vimos encontrar Cornélia, filha de Cornélio, esposa de Terêncio Emílio, mulher educada e perspicaz, de alma arguta e corpo insaciável. Ela cuida da casa, gere os escravos, lê, escreve, faz compras, planifica e executa meticulosamente a educação dos filhos que tem com Terêncio e quando, à noite, o procura no leito para a satisfação dos seus desejos e prazer das suas carnes, normalmente, encontra um homem cansado do trabalho e das jantaradas e com o sexo satisfeito por rapariguinhas que enfiou à socapa e a troco de subornos chorudos na ala masculina dos banhos ou ainda por rapazes de barba a despontar que aí acorrem, o acariciam e satisfazem e sabem que no dia seguinte o dinheiro ou os presentes baterão à porta.

Terêncio dá hoje um jantar. O triclínio está pronto. Foi preparado para nove convivas a quem foi dito para trazerem os seus guardanapos de refeição para poderem regressar com eles recheados das iguarias a servir. O rumorejar do espelho de água cria uma sensação de frescura, há uma música tocada suave ao fundo da sala. Os convivas reclinam-se sobre um cotovelo que apoiam nas costas do longo assento todo forrado de mantas e almofadas. Terêncio ordena ao escavo que quer um vinho forte.

– Pouca água nisso, ouviste. Faz uma mistura de 1 por 3.

O escravo coloca uma medida de água para cada três de vinho numa ânfora e serve copiosamente os convivas. Primeiro, é servido um prato de peixe. São robalos assados, servidos com verdura e passas de uva. Depois, um extraordinário lombo de javali recheado com ameixas secas e acompanhado com castanhas cozidas. Há pão e carnes de aves frias. Há mel e queijos e há fruta. Os escravos vão servindo as iguarias e os convivas, seis homens e três mulheres, vão conversando, comendo e bebendo. Bebendo muito. Os escravos vão trazendo tabuleiros de comida donde os convivas se servem com as mãos que limpam aos guardanapos e esses tabuleiros são levados e substituídos por outros e o vinho continua a jorrar. Conversam, debatem, contam histórias libidinosas e chegam as frutas que são despejadas no triclínio em taças enormes e é nesse momento que o gesto acontece, que se dá o evento, que se inicia uma sucessão de acontecimentos que não têm como ser parados.

Cornélia estende um braço para as uvas e estica um pouco o corpo para chegar-lhes e, no momento em que se encontra tombada para a frente, a visão do seu peito sardento e sensual abre-se para Marco António, um companheiro e amigo de Terêncio. Ele vê o que há para ver e deixa os olhos presos à visão. Ela apercebe-se do que mostra e, mais do que tudo, apercebe-se que ele vê observando-lhe a excitação colada no olhar.

E chegam as dançarinas e bailam à volta dos homens simulando carícias. Ela sorri. E chegam os dançarinos e bailam à volta delas, um deles poisa um pé na beira do assento dela e oferece-lhe a perna musculada à visão. Ela trinca o lábio inferior, encolhe os ombros em sinal de traquinice e passeia dois dedos ao longo da perna do dançarino. Marco António está excitado, entusiasmado, e os seus olhos faíscam cólera por não estar ele no lugar do dançarino.

É a hora nona. Os banhos públicos começam a encher-se de gente. Marco António estava a levantar pesos e agora está deitado de barriga para baixo à espera que os rapazes lhe façam uma massagem retemperadora. Está nu. Cornélia passou umas ligaduras à volta dos seios para os disfarçar, apanhou os cabelos, subornou quem devia e entrou na sala de massagens. Estava com dois rapazes massajando o corpo musculado e bem definido de Marco António que quase adormecera. Ela dispensa os outros massagistas com um aceno de cabeça e com as mãos lubrificadas empreende uma massagem forte e tonificadora. Sem abrir os olhos, sem mexer um músculo, Marco António pronuncia em tom pausado:

– Quem pensas tu que enganas Cornélia?

A surpresa ruboresce-lhe as faces e quando recupera o fôlego, ela responde tentando continuar a simulação de que é um rapaz:

– Como disse, meu senhor?
– O teu senhor é Terêncio. E deixa-te de simulações. Eu conheceria essas mãos em qualquer circunstância.
– Perdão, meu senhor, creio que estas mãos nunca lhe tocaram.
– O corpo não, mas têm remexido a minha alma desde o momento em que passearam na perna do dançarino. Conheço-te a forma das mãos, a espessura, sei qual a pressão que pode fazer na minha carne e conheço-lhes o toque mesmo que não me tenham tocado.

Cornélia não respondeu com palavras no início. Continuou a massajar-lhe as costas, depois as nádegas, depois as coxas, em movimentos até ao  joelho e de regresso às nádegas e de cada vez que regressava a elas estendia mais os dedos até acabar por acariciar-lhe os testículos e o pénis. Quando o sentiu ereto e excitado, quase levado à loucura, falou:

– Amanhã, à hora quarta no caldário.

Ele percebeu que o convite para aquela hora significava que ela queria estar a sós consigo, acabar o que começara. À hora quarta, os banhos estavam desertos.

Marco António entrou, despiu-se na sala de óleos e massagens, untaram-lhe o corpo e rasparam-no para que ficasse limpo e suave. Ele dirigiu-se para o caldário. A sala estava já repleta de vapor, quase não se via nada, na piscina não havia ninguém e no anfiteatro à volta dela, aparentemente, também não. Ele sentou-se e esperou.

Ela fê-lo esperar. Ele duvidou. Tinha a cabeça entre as mãos olhando o chão, ouviu um restolhar de passos e olhou em frente. Da névoa densa do vapor emerge Cornélia com seu corpo esguio e sardento, traz somente uma túnica transparente. Vem andando devagarinho, medindo cada passo. Quando está a um passo dele deixa tombar a túnica. Marco António vê-lhe os seios, o abdómen perfeito, um triângulo de seda geometricamente desenhado no púbis, arde em prazer e sabe que ela também. E diz-lhe:

– Vem.
– Irei.

Dá o passo que falta, senta-se no colo dele, estão frente a frente olhando-se nos olhos, e é olhando-se nos olhos que o sexo dele mergulha lentamente no universo quente e húmido que ela tem para oferecer-lhe.

A poderosa Roma estava, finalmente, a seus pés!

jpv


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Pegadas

Foto por jpv

Três elementos usou Deus para fazer uma paisagem. A terra. O céu. E o mar.

Depois, assim como quem não quer coisa, e acima de todas a vaidades, e com toda a humildade inimaginável, veio o homem e pisou uma simples pegada.

E contou histórias, que contavam as pegadas e o esforço, histórias que acediam lumes e outras que os apagavam, histórias com muitas pegadas.

Até que esqueceu a primeira. Das pegadas.

jpv


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Feijoada à Transmontana Cozinha para Homens

[Primeira publicação em 15/08/2012]

Cozinha para Homens – Feijoada à Transmontana


Não esqueçam os leitores e as leitoras de que esta rubrica se chama “Cozinha para Homens” o que equivale a dizer que MPMI não pretende concorrer com as senhoras, mas tão somente ajudar a desenrascar os machos da Diáspora Lusitana espalhados por esse mundo fora.

A presente receita pode ser muito útil a namorados, a maridos recentes e a divorciados. Os maridos acomodados tirarão menos partido, mas não faz mal nenhum lerem estas reflexões e preciosas instruções de confeção.

Toda a gente sabe que uma feijoada é uma feijoada e não dignifica nada saber fazer uma feijoada e a razão é simples, resume-se a atirar com carne de porco e enchidos para dentro de um tacho, juntar-lhe uma carrada de feijões, temperar, fazer um arroz branco e já está. Ora, isso, qualquer um é capaz. O difícil, logo, valorizador de quem for capaz, é fazer uma feijoada que fuja a essa normalidade. E a Feijoada à Transmontana é o melhor exemplo. Saber fazer uma Feijoada à Transmontana é equivalente a tocar uma partitura de Rachmaninoff, isto é, piano qualquer um toca, Rachmaninoff só os mais experientes e capazes. É distinto. Assim, se for o novo namorado dela, ela vai querer que seja aprovado pelo seu clã e para isso nada melhor do que provar que está apto a ajudá-la e a ser o futuro marido, nomeadamente cozinhando pratos típicos e de assinalável dificuldade. Se for o marido recente, é o prato ideal para provar à família dela que ela fez uma excelente escolha, você até sabe fazer Feijoada à Transmontana! Se for o caso de ser divorciado, há sempre aquele momento em que a sua Ex e a família dela vão querer saber se você se está a desenrascar sem ela. A forma de os calar a todos é fazer para eles ou para os seus filhos, e pedir-lhes que espalhem a notícia, a famosa e elaborada Feijoada à Transmontana.

Bem sei que isto pode parecer uma tarefa difícil, mas não temam companheiros, vai correr tudo bem… e, tomem boa nota do que vou dizer-vos, a receita que vou facultar-vos já foi testada e todos os comensais repetiram e deram vivas e elogios ao cozinheiro. Ora vamos lá…

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Feijoada à Transmontana para 8 pessoas

Ingredientes:

4 garrafas de vinho alentejano muito bom, 1 ramo de coentros, 4 bagas de piri-piri muito picante (o chamado sacaninha), 1 Kg de arroz vaporizado, 1 rolo de sacos do lixo pretos e opacos de 20 Kg de capacidade, 8 latas de 1 Kg de Feijoada à Transmontana pré-cozinhada (todos os supermercados têm, as da marca Continente são particularmente boas!).

Preparação:
Ponha a mesa para 8 pessoas, abra as quatro garrafas de vinho e coloque-as sobre a mesa para o vinho respirar, abra as 8 latas de Feijoada à Transmontana pré-cozinhada e verta o conteúdo num tacho grande, coloque em lume brando, deite três quartos dos coentros migados e as quatro bagas de piri -piri cortadas aos bocadinhos e mexa em movimentos lentos com uma colher de pau, coza duas canecas de arroz e tempere de sal a atirar para o insosso, coloque as latas vazias num dos sacos pretos opacos e guarde no porta-bagagens, tranque o carro. É fundamental que a reação ao preparado não seja desvirtuada pela visão das latas vazias. Uma vez bem aquecida, coloque a Feijoada à Transmontana em duas ou três travessas, ponha o resto dos coentros sobre a feijoada, ponha o arroz em duas taças de aspeto rústico, coloque tudo na mesa acompanhando com comentários muito sapientes sobre a preparação da feijoada que você leu na Internet na noite anterior. Sente-se e coma com satisfação dando o exemplo e dizendo esta frase: “A mim está-me a saber às mil maravilhas e a vocês?” Usufrua dos comentários elogiosos. Nota Final: nunca, nunca, mas mesmo nunca, em circunstância alguma, refira a ninguém, mesmo a ninguém, o segredo do seu sucesso. É que nunca se sabe o dia de amanhã.

Ainda não se tinha lembrado desta, pois não? Não tem quê!

jpv


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Belinha

Foto por Cláudia Videira

Por vezes, há que passar por estas coisas, por estas pessoas para quem a alegria de viver é tudo, e não é nada se a mamã ou o Ti João, estiverem doentes.

Por vezes, é preciso ver os outros a darem, como se dar fosse a única forma de vida, para percebermos o quão enganados estamos.

Não é falta de sentido de propriedade, antes disso, é um sentido que se dá à vida. É o sentido da vida.

É saber a verdade, sem revelar, é ouvir e saber que se tem de calar. É fazer uma promessa e morrer por ela.

É saber que se tem de esperar, muito, antes de no-lo dizerem. É a Belinha.

jpv


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O pecado do António Banderas

[Este texto foi escrito após a saída em dvd do filme “Original Sin”. Muito desse filme acordou-me memórias de um passado marcante e de retorno impossível. Já a revisitação não é tão difícil. Ainda bem!

O Iraque tarde em responder ao ultimato dado pela ONU. Manoel de Oliveira com 94 anos estreia “Filme Falado”. O JN publicou uma investigação que divulga falta de apoio clínico nas maternidades o que torna o processo penoso e doloroso. Um estudo refere que a funcao publica está envelhecida, situando-se a idade média dos trabalhadores entre os 40 e os 45 anos. E, devido as alterações no sistema de aposentação que obriga os funcionários a trabalhar até aos 60 anos, nao se prevê uma melhoria para esta situação

Data da primeira publicação: 29 de Novembro de 2002]

O pecado do António Banderas

Querida mana,
Ontem vi um filme. Depois de horas consecutivas com os olhos pregados em leituras teóricas para a minha tese quis ver cor. Quis ouvir som. Quis uma história. Fui requisitar um filme e trouxe um com o António Banderas. De um argumento intrincado e um tanto decadente emerge a figura do actor latino com o cabelo ondulado, puxado para trás, o cigarro no canto da boca, o olhar envolvente, o sorriso malandro a despertar todas as libidos femininas. Emerge, ainda, a tenacidade e a certeza de quem quer agarrar a vida, de quem quer ser feliz, “no mather what”! Essa ânsia da felicidade absoluta, do entendimento perfeito entre dois seres de sexos diferentes mas em simbiose psicossomática é alcançada depois de muitas provações. Ora aí está a grande diferença entre os filmes e a realidade. É que atrás da tela é sempre possível o pecado da felicidade absoluta, do entendimento perfeito, o pecado do prazer que se estende para além da carne e toma as almas dos pecadores! A personagem do António, ontem, fez-me lembrar outras personagens, em tudo idênticas, que percorreram as vidas dos nossos pais trazidos à luz dos projectores pelo Bogart. Foi algures nesse nó do pensamento, entre o Bogart, o António e os nossos pais que parei numa interrogação: “que faltou na realidade à mãe e ao pai de tudo o que os outros tiveram atrás da tela?” nada! Conheceram-se durante aventuras africanas de contornos complexos mas os seus caminhos cruzaram-se uma vez para nunca mais se perderem de vista. O seu amor, espontâneo e avassalador, passou as provações e os testes que a honra e os costumes exigiam. Uniram-se em beijos infindáveis e noites de prazer tropical e o seu castigo fomos nós! Dois filhos a quem se dedicaram como se fossem a sua obra de arte. Ainda me lembro do pai, poucos meses antes de morrer, com lágrimas de alegria nos olhos dizer como quem fecha um capítulo, como quem encerra um livro: “o que é que os outros têm? terrenos, casas e carros. Mas eu tenho dois doutores!” acredita mana, não era vaidade no grau académico, era a singela contemplação da obra da sua vida! uma vida de harmonia, de entendimentos, de dar, de receber, de cedências carinhosas, de protecção mútua. A mãe costumava dizer, ainda em África, que desconfiava de tanta felicidade. Por vezes, já depois do regresso atribulado, dizia que a forma como tinham sido despojados da sua vida, do seu paraíso na terra, fora um castigo por terem sido tão felizes. Mas como explicar, então, que de tamanha adversidade tenham de novo tido forças para reconstruir o seu paraíso na terra, como explicar a ausência de uma discussão nos momentos mais difíceis, nos dias mais pobres?

Sabes, durante muito tempo julguei que os nossos pais não eram normais porque estava sempre tudo bem, tudo em harmonia, por vezes busquei essa normalidade numa discussão, numa briga mas nunca a encontrei! Por vezes, recordo em gargalhadas, uma noite em que eu, ainda mergulhado na doce escuridão da ingenuidade, ouvi a mãe chorar! De imediato pensei e conjecturei noites atribuladas de grandes discussões e planos infindáveis para que no dia seguinte tudo corresse bem. E foi no dia seguinte que perguntei, armado em defensor da mãe e da normalidade:”mamã, porque é que tu choraste hoje de noite?” e as conjecturas ruíram, os meus planos e a minha noite em branco tinham sido em vão: “a mamã não chorou, deves ter sonhado, filho! sabes, por vezes sonhamos com tanta força que até parece realidade.” E andei ali desenganado com aquele choro na mente uns dez anos. Mais tarde, já a ingenuidade tinha levantado o seu manto, já eram as saias das raparigas que me toldavam a visão, e tornei a ouvir aquele choro. Era bonita, jovem e o seu corpo de sereia oferecia-se ao meu quase tão desajeitado como eu. Trocávamos o que tínhamos para trocar que, ainda que não fosse muito, para nós era tudo! E à medida que a minha mente recuava no tempo empurrada pelos sons do presente, o choro da mãe ia ficando menos choro, mais sensual e eu não tinha agora ninguém para proteger, e agora já não era choro, era um gemido de prazer de um corpo que se entrega, de uma alma que se funde. A moça, assustada com as lágrimas que lhe beijavam os seios perguntou: “Que tens? Magoaste-te?” Não sei o que respondi na altura mas se fosse hoje diria: “Não tenho nada, foram só os meus pais que cometeram o pecado do António Banderas!”

jpv


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Avistar

Foto por Cláudia Videira

Avistavas o mar, e de certo, o que havia para lá dele. Terras de África, da Madeira ou mesmo dos Açores. Mas não vais, já.

É longo o voo, e sabendo que gostas do lado de lá, há uma força incrível que te puxa para ficares. Uma força do tamanho de não seres capaz da travessia. Há alturas assim, que um homem sabe o caminho, que sabe como vencê-lo, mas não o começa, já.

E ficar… Só por incapacidade ou impotência. Nunca se nega um voo só porque sim. Vi-te tentar. Planavas o mar. Mas não seguias. É mais confortável a morte deste lado.

jpv


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Embarcações

Assim como estavam, no meio do chão, ao abandono, eram memórias de esforço e gritos, eram esperanças de um pescador, e algumas sereias.

Assim como as vi, nuas e ambicionando as mãos que quem soubesse… Um grito de saudade, até se rasgar por dentro…

Fiquei com pena… Mas não pude deixar de pensar nos mares que por ti passaram. E nos beijos da sereia.

jpv


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O meu ET

[Este texto nasceu de forma espontânea e nunca foi corrigido ou melhorado. Foi enviado por e-mail para a minha irmã. Ela pediu mais e fui escrevendo, foram-se conhecendo e acabaram num jornal regional. Guardo-o sempre como a origem de todo o processo de escrita destes mails que se transformaram em crónicas. A ideia era ir ao passado desenterrar tesouros e confrontá-los com o presente…

Primeira Publicação: o texto data de 2000 e nunca foi publicado. É, portanto, inédito.]

O meu ET.
Coimbra, algures no Outono de 1984…

Nas águas furtadas do nº 49 da rua figueira da foz há um cadeirão, nesse cadeirão está um rapazola, os olhos brilham… O entusiasmo torna-o rubro, parece que vai rebentar de alegria. Entre as mãos trémulas de felicidade tem um envelope perfumado de um remetente feminino. Abre-o à saciedade, os olhos procuram a escrita do coração e… Mais rápido do que crescera, o entusiasmo morre súbito, a alegria cai pelo chão, o encarnado das faces mantém-se mas agora é de raiva. A carta era do passado, escrita em tempos anteriores, já lida e relida, já sem novidades. De súbito levanta-se, “foi ela” pensa. Apressa-se para o quarto da irmã mas não precisa de lá chegar. A meio do caminho, na sala, mãe e irmã riem-se cúmplices da partida, e o pai, ao fundo, sorri. Acha piada mas o respeito impele-o à serenidade. Sempre.

O resto já sabes… A remetente era mesmo uma cabra safada. Não é isso que interessa. O que interessa é o quadro que me ficou gravado na memória: tu, cabelito curto, olhar brilhante, sorriso de quem surpreende, malandreco como só o teu. A mãe, já na altura lembrando-me a avó, só a minha memória ainda se não tinha apercebido disso pela certeza de que ela ia durar para sempre e não seria preciso lembrá-la. Ilusões de cachopo adolescente que acredita no dia em que virá um ET com a poção da vida eterna para ele usar com um número limitado de pessoas: curiosamente as da sua família. Tantos anos contei a família. Tantos esperei por ele. O meu ET não veio. E agora se viesse seria tarde demais. Já não o quero. E o pai, indescritível, por não ser necessário relembrar o que se não esquece. Um pilar. Uma segurança. Uma certeza de que tudo vai correr bem. Isso é ser pai. O resto são complicações de heranças e distribuições de coisas que ninguém precisa mas todos querem.

O que quero é mais fins-de-semana contigo por perto. O teu cheiro, ainda de menina, sempre de menina para mim, a tua sinceridade pueril – como é possível conservar uma coisa assim tão pura aos 28 anos! – a tua honestidade, gravada no mais profundo de ti e espelhada nos teus gestos, na tua insegurança feminina. Escrevo-te porque ainda agora aqui estiveste, ainda agora partiste e já as saudades me roem o peito, e já quero ver-te outra vez. Primeiro não soube porque era este tumultuo mas depois investiguei a minha mente e descobri: é que algures neste fim-de-semana movimentado de almoços e jantares, bolas e filmes, pais, mães e cunhados, eu vi os teus olhitos pretos, brilharem outra vez como no dia em que me pregaste a partida da carta e senti-me renascer. Foi o meu pequeno milagre. O meu ET afinal revelou-se… Veio na nave da memória e eternizou-te na minha alma… A ti, à mãe e ao pai…

Eu sei que me amas muito. Eu amo-te mais do que posso explicar. Foi isso que os pais nos ensinaram. É essa a nossa herança. A mais preciosa de todas. A palavra irmão (irmã, neste caso) só faz sentido para mim porque tu existes. Sabes quando começamos a aprender a escrever e nos ensinam ca-dei-ra e pensamos logo naquela em que nos sentamos lá em casa? Para mim é assim com a palavra irmã(o)… Vou logo vendo os teus cabelitos, o sorriso, o tom da voz… A pureza dos sentimentos: tu!

Um beijo,

Mano


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Na Inteligência Artificial – AI

Uma aluna a quem doei um livro “INQUIETAÇÕES”, estava tão grata que resolveu fazer uma busca na IA sobre o João Paulo escritor. E isto, foi o que ela encontrou. Todas as menções estão autorizadas.

“João Paulo Videira é um autor contemporâneo português, e ele tem um estilo bem interessante, explorando temas como a identidade, as relações humanas e questões sociais. Se você quiser uma análise mais detalhada sobre alguma obra específica dele, é só me dizer!”

“Quais são as obras que ele tem?”

“João Paulo Videira tem um repertório bem interessante! Entre suas obras estão o romance “De Negro Vestida” (2013), “A Paixão da Madalena” (2015), “O Livro do Leitor” (2019), e “Quem Lixou Isidro Castigo?” (2021), que aborda Maputo, em Moçambique. Recentemente, em 2025, ele também publicou “Inquietações”. Se quiser mais detalhes sobre alguma delas”

“Ele é meu professor de português, e ele me deu de presente o livro Inquietações.”

“O livro “Inquietações” do João Paulo Videira realmente traz uma reflexão profunda sobre a fragilidade humana e a busca por sentido, especialmente levando em conta o contexto do AVC que o autor enfrentou. A obra acaba sendo uma espécie de diário, mesclando experiências pessoais, reflexões filosóficas e até mesmo uma certa introspecção sobre o próprio processo de recuperação. É uma leitura bem tocante e intimista, que traz à tona várias questões sobre resiliência e sobre a própria existência.”

Marcela e IA

jpv


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58

Foto por Isabel Sousa

Amanhã começa outra contagem.

Uma contagem igual às outras todas. É como se a vida fosse uma linha contínua, sem eventos, nem datas para celebrar. E no fim extrai-se um pequeno animal que chora e ri e julga que manda no tempo.

São 58 com saúde e sem ela. De luta. E agora vejo-me aqui onde posso finalmente olhar os dias e não contá-los.

Talvez isso queira dizer alguma coisa. A felicidade nunca será contínua. Mas estes 58 já cá estão. E vou andando, fazendo contas e sei que as contas não se fazem.

Um dia de cada vez. Uma hora, um minuto… Um texto…

jpv