Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Impunidade

[Apesar de muito divulgado na comunicação social, o caso “CAsa Pia” não sofre evoluções significativas.Sinal dos tempos: As marcas TMN e Vodafone posicionaram-se no topo do ranking do investimento em publicidade. Nos EUA, diversos jornais influentes – alguns dos quais apoiantes da guerra no Iraque – têm vindo a questionar a Casa Branca e os serviços secretos norte-americanos, perante a conclusão, que se vai generalizando, de que não existiam armas de destruição maciça no Iraque. Portugal assina o acordo internacional anti-tabagismo (Framework Convention on Tobacco Control). Início da missão do 3º Batalhão de Infantaria Páraquedista na Bósnia-Herzegovina.
[Data da primeira publicação: 23 de Janeiro de 2004]

Impunidade

Olá mana,

A impunidade arrepia-me.
Do que me lembro da nossa infância, nas conversas que os adultos trocavam com as vozes enervadas ou em frases sentenciosas de quem conclui e dá ou tira razão, o responsável encontrava-se sempre. Punia-se. O raciocínio lógico e primitivo de causalidade boçal com laivos e conotações de conotação rural funcionava bem. Havia um crime. Procurava-se um culpado. Encontrava-se. Punia-se. O processo era claro, lógico e não podia ser menos eficaz. Entretanto, o ser humano evoluiu, tornou-se mais democrático, menos bárbaro e passou a poder contar com a justiça… e que aconteceu? As palavras culpa e castigo riscaram-se do nosso quotidiano. Para não traumatizar ninguém, muito menos, quem assassina, desfaz lares felizes, ou viola impunemente crianças passou a articular-se um conjunto de termos obscuros, que ninguém percebe e que permitem o exercício público e descarado da impunidade. Hoje diz-se irresponsabilidade, diz-se culpa, diz-se arguido, diz-se suspeito, diz-se muito coisas como talvez, hipoteticamente, eventual e nunca mas nunca ninguém assume de cara lavada a coragem de chamar as coisas pelos nomes. O fenómeno é tal que, mesmo os comentadores desportivos, aderiram à praga da incerteza e, com as imagens claras e lentas das repetições ficam-se por um “poderá ter sido, eventualmente, no caso de haver contacto, um “penalty”. Quando toda a gente viu a falta, sem incertezas.

Com o malfadado e demasiadamente alongado caso de pedofilia em Portugal está acontecendo o mesmo. Não me interessam os nomes das pessoas. Interessa-me só que se não pode arrastar a gravidade de um caso assim por tantos meses de impunidade. Aquelas crianças maltratadas, sem direito a uma infância de inocência estarão loucas? Estaremos loucos todos nós? Tudo isto foi fumo? Só um sector do mundo político é que está envolvido? Não! Mil vezes não! As crianças estão lá, em sofrimento a serem ajudadas por que sabe e pode. O tempo arrasta-se porque há que possa contra os relógios de todos nós. Porque há quem pague. Não me interessa mais ver as notícias, não me interessa mais o nojo das patranhas argumentativas e contra-argumentativas. Interessa-me só a certeza de duas conclusões: uma: os crimes ocorreram. Duas: alguém os praticou. Tudo o mais é demagogia pura de fazer perder tempo num país adiado de decisões tomadas por pressão dos meios de comunicação. Tudo o mais são jogos inúteis de tentar disfarçar o indisfarçável: a nossa sociedade está podre e corrupta. E quanto mais depressa o assumirmos e começarmos a limpeza tanto melhor.

Muito se tem criticado a América (U.S.A.) e os americanos ultimamente mas uma coisa é verdade. Desde que um cantor, feito figura pública, se tornou suspeito, até ao seu julgamento dois meses bastaram. Só em Portugal podemos brincar com a Constituição, com as leis, com a desacreditação dos tribunais por tempos infindos. É triste e é pena porque vivemos num país cheio de pessoas e coisas bonitas. Falta-nos somente a força e a coragem dos nossos defeitos. A força e a coragem dos nossos erros. Pois que venha tal força e tal coragem, venha como lixívia e limpe as impurezas, arrase o pus que por aí anda! Que seja rápido. Sem misericórdia. Uma vez! Para sempre! já chega de fingir. Já chega de sessões e de homens que tentam, com argumentos retorcidos, estar acima da lei. Já chega de mau cheiro a processos inacabados. Queremos um ponto final. Queremos esperança de novo em Portugal. Queremos, como no tempo do pai, as certezas do que está certo, as certezas dói que está errado, os crimes, os castigos e, acima de tudo, queremos os culpados. Não culpados velados ou semi-culpados. Queremos tão só os culpados para os podermos enterrar e sermos Portugal outra vez!

Do sempre amigo
Mano.


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As Chamas da Impunidade

[Continua, em Portugal, uma das mais violentas vagas de incêndios. Para além da suspeita de fogo criminoso, vêm a lume, na imprensa, notícias que envolvem interesses paralelos como seja o comércio de aluguer de helicópteros para o combate às chamas.

[Data da primeira publicação: 5 de Setembro de 2003]

As Chamas da Impunidade
Olá Mana,
As linhas que te escrevo hoje são de tristeza e apreensão.

Invertendo um pouco o que é habitual, não fui ao baú poeirento e nublado da memória arrancar uma qualquer lembrança preciosa e adormecida para depois a rememorar contigo até ao presente e reflectir sobre ele. Desta vez, a força e a pujança dos acontecimentos que marcaram o Verão português fez-me começar por este mesmo presente e as memórias vieram depois a tropel e, também elas, violentas.
Já não posso dizer como tanto se disse e escreveu que “Portugal está a arder”. Neste momento, o destino limita-me as palavras a um odor a cinza e a morte, a uma cor negra e desgraçada e a expressão que me atormenta a alma é tão só “já ardeu!” Como quase todos, sinto uma impotência e uma revolta viscerais que me saem das entranhas pela lágrima, pelo grito surdo, pela contemplação absurda de uma imagem inverosímil há um mês atrás e real de arrepiar, hoje. No regresso de férias vi o inferno, os meus olhos não queriam ver o que o cérebro me estava dizendo que viam. Entre Portalegre e Abrantes numa extensão só mensurável pela expressão “até onde a vista alcança” tudo está queimado, seco, negro, morto. E contudo, este horror era só uma parcela do verdadeiro desastre, da tragédia inteira que ceifou flora, fauna, habitações e vidas humanas. Ainda que muito nos custe admitir a verdade é que o Portugal verdejante de pinhais de beira da estrada a festejar piqueniques está a agonizar em cinzas.

Como é costume, como é natural e como é humanamente desejável multiplicaram-se os esforços e as ajudas e as tentativas de atenuar a miséria que o fogo semeou. Nisto, portugueses, somos bons. No remediar humanitário, no estender de mão. Sem dúvida. Não é isto que me preocupa. O que realmente me preocupa é a impunidade. Pelo que leio nos jornais e vejo na televisão, toda a gente sabe que há “esquemas” que envolvem uns e outros, proprietários de aviões, madeireiros, investidores em terra, construtores de grandes complexos turísticos. Só nunca vejo nem os uns nem os outros. A Culpa, em Portugal, raramente tem rosto embora se saiba que tem mão criminosa! Os suspeitos entram e saem das cadeias mais depressa do que os doentes das filas de espera nos hospitais. Começam por ser grandes criminosos e afinal nunca o eram. Se reparares bem, mana, o fogo que devorou o nosso país este Verão em proporções inimagináveis foi todo acidental, obra do acaso, e, mais abstracto ainda, função do azar.
Faço este parágrafo propositadamente para te escrever a minha tese que, de resto, é curta e linear: o que consumiu Portugal foram as Chamas da Impunidade. O saber antecipado do funcionamento entorpecido do sistema de prevenção, do sistema de vigilância, do sistema policial, judicial e punitivo. Já disse. E chega-me. Claro que podia alongar-me com teses do género: o dinheiro que se gastou em estádios de futebol… mas não vamos por aí que essa conversa é fácil, facilmente polémica, não leva a lado nenhum e distrai-nos do assunto central.
Vamos às memórias.
Se bem te lembras, durante muitos anos, quando chegava sábado depois da hora do almoço, acomodávamo-nos na 4L do pai e fazíamos uma pequena grande viagem entre Coimbra e São Pedro de Alva. Na altura aquilo era coisa para quarenta quilómetros e cerca de uma hora e quinze minutos de espectáculo. Percorríamos o Mondego “ao contrário” sem percebermos bem se era ele que acompanhava a estrada ou a estrada que o acompanhava a ele. Quase invariavelmente parávamos na fonte mais para saborear a paisagem do que a água. A montanha estendia-se esplendorosa do rio até ao céu e o fim-de-semana começava da melhor forma possível. Em tons de verde e azul, odores formidáveis, e uma banda sonora de marulhar de águas e conversas vadias da passarada. Torres do Mondego, Rebordosa, Penacova, Miro, Friúmes, Porto da Raiva, Silveirinho e por fim São Pedro. Era um caminho de comunhão com a natureza, de cortar a respiração. Nunca cheguei a perceber se demorávamos tanto a percorrer tão pouco por causa da estrada ser mazinha ou se era o pai que, em vez de conduzir o carro, saboreava a paisagem… foi observando esta paisagem que o pai contou uma história que se passara numa terra ali da região. Um homem havia pegado fogo à mata. Apanharam-no. Foi preso. Saiu rapidamente. Apanhou o autocarro para casa. O povo esperou-o. Tal como o fogo que consumiu a nossa floresta este ano, a sua vida fora consumida. Tal como a Culpa dos culpados que estão a assassinar o nosso país, a Culpa da sua morte nunca teve rosto. Todos lá estavam mas ninguém viu nada. O pai contou a história uma única vez e fê-lo com tom sério e grave. O suficiente para eu perceber que os seus contornos morais não eram de perfil fácil. Aquilo não estava certo, na altura, como o não estaria hoje. Mas também não estava errado!

Beijo, mano.