Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Poema do Menino que Dormia

Poema do Menino que Dormia

Há momentos
Em que acordo
E noto que morri.

Nasci morto.
Cresci cego
E comandado.
E, hoje, não nego,
Morro acomodado
À fuga
Que empreendi.

A vida
Que havia a viver
Fugi.

Perdi-me os movimentos,
Algemei as mãos
E agrilhoei pensamentos.

E quando vim
A libertar-me os intentos,
O mundo não me acreditou…
E não me quis.

Era demasiado
O preço
Do que não fiz.

Estava extinta
A força,
Soçobrada a vontade
Do poeta
De tenra idade
Que acordou
Demasiado tarde.

Julgo ter cá dentro
Um fogo que arde,
Mas são só cinzas…

Um cadáver andante
De grande e vistoso porte
Deambulando pelas ruas,
Putrefacto,
Exibindo a vida da morte.

Há momentos
Em que acordo
E noto que morri.

Olho à volta
E vejo-me aqui,
No meu centro,
Na periferia de tudo o resto.

Ouço um sino
Longínquo e funesto
E vou a sepultar-me sozinho.

Foi tudo tão triste
E patético
Quanto errar
Uma curva do caminho.

O brilhante e profético
Sonho de ser
Desvaneceu-se.

Era uma vez
Um menino que dormia…
Hoje acordou
E veio ver
O homem que morria.

jpv


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Citação Sábia

“Se és homem para mim, atira a pedra fora!”
João Velhinho, meu saudoso avô.


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Um homem no mundo

[Presidente Jorge Sampaio (Portugal) aceita a demissão do primeiro-ministro Pedro Santana Lopes. Presidente Jorge Sampaio (Portugal) convoca eleições para 20/02/2005. Terremoto de 5,4 graus na escala Richter atinge o cabo de São Vicente. Eleições presidenciais e parlamentares em Moçambique.

[Data da primeira publicação: 3 de Dezembro de 2004]

Um homem no mundo

Querida mana,

Há homens que vivem a vida que os escolheu.
Há homens que nunca chegam a saber que estiveram vivos.
Há homens que passam ao lado da vida empunhando bandeiras de nada e ideais que nunca o foram de tão vazios.
Há homens que vivem perdidos porque já nasceram perdidos na imensidão humana de um universo que os assusta e os apouca como se a mesquinhez do universo fosse grande.
Há homens que tentam ávidos ou desesperados a dignidade e procuram-na, diligentes, por todo o lado menos por onde se pode encontrar a dignidade.
Há homens que se enganam a vida julgando enganá-la.

E há o nosso avô. Esse colosso de existir que sepultámos há poucos dias. Essa perda para o mundo mais do que para ele.

O nosso avô Velez caracteriza-se facilmente. Um corpo imenso como convém para abrigar uma alma também ela imensa. Um corpo de enfrentar as agruras, de segurar as investidas que os cornos da vida fizeram numa geração que sofreu tudo o que havia para sofrer. Um homem de encher uma sala de risos ou lágrimas que ele próprio derramava numa antítese figura-corpo para quem o não conhecesse mas, digam o que disserem, a fazer todo o sentido para quem cresceu à sua beira. Um homem cuja primeira palavra era honra e a última também. Um carinho a brotar de um corpo imenso no elogio dos netos, das filhas, do mundo que o rodeava. Um dinamismo de querer viver a vida toda de uma vez na avidez de segurar cada momento. Uma presença inigualável. Uma saudade que magoa mas adocica a memória de lembrar o que vivemos com ele.

O avô Velez tinha duas características e lembro-me do o ver viver sempre de peito erguido para a vida empunhando-as como a lemas, como espadas de defender-se, como a lemes de conduzir-se, de conduzir quem o acompanhava. Uma era a força das suas virtudes. Irrompia com ela pela vida de quem se cruzasse. Desempanava automóveis na beira da estrada, dava boleias a quem já se cansara de esperar, distribuía o que tinha como se tivesse muito e, por vezes, pouco era. Distribuía alegria como quem dá tudo o que tem: o dom de viver a vida sempre pelo lado do sol… uma só palavra, uma só honestidade, uma só cara, uma só seriedade e, com elas, a força de encarar o mundo e o que ele trouxesse. A outra característica era a coragem dos seus defeitos. Assumia-os como quem dá a cara a ver se dói. Assumia-os como que para garantir a sua humanidade e nunca se escondeu deles, nem os ocultou de quem tinha o privilégio da sua companhia. E era neste tactear de defeitos e virtudes que nos mostrava como vive um homem no mundo.

O que mais aprecio no homem que agora nos deixa saudade é um aspecto que me parece um tanto esquecido por quem quer ser homem nos nossos dias: a integridade e a verticalidade. Um homem que nunca fugiu do seu mundo mas o encarou, o trabalhou, o amou e por fim, o deixou com a serenidade de que só os heróis são capazes quando enfrentam a negra e derradeira inimiga.

Paz à sua alma.

Beijo,
Mano