Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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O Clã do Comboio – O Fim de um Ciclo

O Fim de um Ciclo

Está a chegar ao fim, na minha vida, a fase do Clã do Comboio. Penso que até ao final deste mês farei mais uma dúzia de viagens e depois termino um ciclo.

E trazia isto na cabeça pensando como fecharia, por agora, uma vez que nunca sabemos o que o futuro nos reserva, a secção deste maravilhoso Clã. E o Destino, ajudado por amigos inesquecíveis, trouxe-me o motivo perfeito para a 120ª história do Clã do Comboio.

Entrei, com a Rapariga do Brinco de Pérola, no regional das 18:48 para regressar a casa. Percorremos os seis minutos que separam Santa Apolónia do Oriente e aí entraram de forma inusitada e inesperada diversos amigos do Clã do Comboio, daqueles que animaram muitas destas crónicas no interregional das 7:18, daqueles que me proporcionaram verdadeiros momentos de companheirismo e cumplicidade.

Juntaram-se ao Escritor e à Rapariga com Brinco de Pérola, a Senhora da Revista de Culinária, a Senhora das Caralhotas e sua sensual e generosa amiga, o Rapaz do Fato Cinzento e ainda um Tipo Careca a que a Gente Chama Álvaro.

Revisitámos momentos em conjunto, dissemos as maluqueiras todas que havia para dizer, tirámos fotos uns aos outros e a algumas passageiras de invejável porte, incomodámos a senhora que ia a estudar o Código da Estrada e se riu connosco e rimos, rimos em conjunto, rimos uns com os outros e uns dos outros como sempre, saudavelmente, conseguimos fazer.

Há dois anos não nos conhecíamos e hoje já sinto uma saudade imensa por saber que não vou reencontrá-los aqui e ali no meu quotidiano. Reinventámos o prazer de nos deslocarmos para o trabalho e do trabalho. Festejámos a bordo, fizemos saídas rápidas às ginginhas e aos coiratos, almoços, jantares, lanches, fomos a feiras de gastronomia, a feiras, ao cinema, etc. etc. etc. Tem sido uma vivência partilhada nos melhores e nos piores momentos de cada um e de todos nós. Gostei de conhecer estas pessoas maravilhosas. Faria tudo de novo. E gosto de pensar em mim como o rastilho que provocou esta explosão de amizade. Mais nada. Depois, a responsabilidade foi de todos nós. Uma responsabilidade especial: a de mostrar o Ser Humano no seu melhor.

Para além das personagens de ocasião, recordo com emoção, como se escrevesse os créditos de um filme, um daqueles que ganha o Óscar:
A Mulher Vampiro
O Aluno do Escritor
A Rapariga do Riso Fácil
O Mano da Rapariga do Riso Fácil
A Prima da Rapariga do Riso Fácil
A Senhora da Provecta Idade
A Mamã das Duas Crianças
O Rapaz do Fato Cinzento
A Rapariga Com Brinco de Pérola
A Senhora da Revista de Culinária
O VM
O RB
A Esposa do RB
O JJ
O JA
A PL
O Senhor da Mala Térmica
A Senhora das Caralhotas e sua Sensual e Generosa Amiga
A Setôra
O Cunhado da Setôra
O Ceguinho
O Músico
O Américo
Um Tipo Careca a que a Gente Chama Álvaro
A Vê
A Rapariga das Palavras Fáceis
O Iago mais Velho
O Pequeno Iago
A Mana do Escritor
A Titi e Sua Excelsa Companhia

E tantos outros que nos fizeram companhia de forma breve, mas que, mesmo assim, ficaram nas nossas memórias. Sim, todos sabemos que houve pessoas que nos marcaram mesmo só com uma viagem… ainda me lembro de quando o VM se encolheu todo enquanto uma passageira lhe explicava como tinha esfaqueado uma batata a pensar no marido… livra!
De resto, as histórias do Clã do Comboio vão continuar a ser contadas pela Dulce Morais no Crazy 40 Blog na secção “O Clã do Comboio Segundo Dulce Morais”. Sim, isto não acaba aqui…

A todos, uma palavra de sincera amizade, uma nota da minha gratidão e um emocionado “Até já!”. A gente vê-se, não tarda nada, numa esquina da vida. Quanto mais não seja no lançamento… sim, estamos a pensar nisso!

Obrigado, amigos, muito obrigado!

jpv, o Escritor (também conhecido como o Explicador da Classe Operária!)
Excecionalmente e sem identificar ninguém, aqui ficam algumas imagens do Clã do Comboio


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Conversas Vadias – O Departamento das Suspeições

Conversas Vadias – O Departamento das Suspeições

– Gosto de falar contigo.
– Eu também, pode-se dizer tudo.
– Sim, é libertador.
– O sexo é uma consequência, não é o início da nossa relação.
– Tens razão. Já tenho pensado nisso e acho que é aí que reside o milagre do que há entre nós.
– Sim, mas isto é tudo muito confuso…
– Estás com dúvidas?
– Não, pelo menos em relação a nós, mas…
– Mas…
– Preocupa-me que se descubra. Achas que a tua mulher suspeita?
– Tenho a certeza de que não e, para ser franco… já que pegas no assunto…
– Diz…
– Acho sinceramente que, no departamento das suspeições, o perigo vem da tua mulher.

jpv


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Histórias do Autocarro 28 – Quiiiiinze

Quiiiiinze

Paragem do Autocarro 28. Estamos à espera e somos muitos. Uma fila de proporções intermináveis. Ao meu lado uma senhora baixinha, loirita, cabelo liso e pelo ombro, calças de ganga e blusa de algodão rosa.

E eis que eles chegam. Dois idosos. Daqueles alemães com o cabelo já branco, com pernas que começam no chão e terminam sabe-se lá onde, sandálias com meias, calções e a inevitável mochila às costas.

Não diziam uma palavra de português e falavam um inglês muito fraquinho. Qualquer aluno meu do ensino básico é mais fluente. A loirita, por sua vez, não dizia uma palavra de inglês e de alemão, então, é que nem deve saber que existe.

Conversa.
Começam eles, dirigindo-se para a senhora. Dobram-se como se fosse preciso encurtar distâncias para ela os conseguir ouvir:

– Please, to… Algés…

Claro que, para perceber que tinham dito “Algés”, foi precisa muita imaginação. Ainda assim, a senhora respondeu em português para alemães. E o que é isso? É português como todos nós falamos mas dito muito alto, muito lentamente e com a boca muito aberta. Ou seja, neste momento, temos dois gigantes alemães curvados sobre uma anã portuguesa que abre muito a boca, fala muito alto e diz:

– Quiiiiinzeeee… tem de aaapanhaaar o quiiiiinzeeee…
– What? Algés?
– Ai, valha-me Deus, o quiiiiinze… para Algés tem de aaapanhaaar o quiiiiinze…

E virou-se para a estrada à espera do autocarro. Os alemães voltaram a endireitar-se e a colocar a cabeça nas alturas e, claro, começaram a falar alemão. Consegui perceber que diziam que não tinham percebido nada e o melhor era verem o mapa.

Eu acho que é de uma incompetência atroz não conseguir decifrar uma palavra dita com tanta precisão, tanto cuidado e tanta hospitalidade. Afinal de contas quem é que não percebe quinze quando é tão bem traduzido para quiiiiinze?!

jpv


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Histórias do Autocarro 28 – Com Licença da Palavra

Com Licença da Palavra

Caros leitores e amigos,
Pensei bastante se haveria, ou não, de escrever esta história. E a razão é simples. Tem um palavrão. Mas não é um palavrão uma vez. É um palavrão, sempre o mesmo, várias vezes em cada frase.

Decidi escrever. E a razão também é simples. Esta é uma típica história do autocarro 28 com uma típica figura dessas que vagueiam pelos transportes públicos. Substituir a palavra por outra, ou por uma letra, ou por uns símbolos, retiraria toda a piada e ênfase que a palavra coloca nas frases. Assim sendo, cá vai,  com licença da palavra…

Por razões de trabalho tive de fazer uma viagem diferente no 28. Basicamente, atravessar toda a cidade. Coisinha para quarenta minutos. Estava com dois colegas, o C e a MP. Ela entrou umas duas paragens depois de nós. Era uma senhora nos quarenta, baixinha, cerca de um metro e meio, cabelo liso, loirito e comprido, apanhado num rabo de cavalo. Faces redondas, muito alvas, com sardas e ruborizadas pela emoção. Tinha uns sapatos rasos e umas calças verdes, tipo fato-de-treino, mas coladas às pernas. Trazia os braços abertos e sacos de compras pendurados deles e balançava para os lados à medida que avançava no espaço com um enorme chapéu-de-chuva numa das mãos. Junto a nós, que íamos de pé, estava um banco livre. A senhora aproximou-se e disse, muito educada:

– Com licença? Os senhores dão-me licença? Obrigada.

E não se sentou. Atirou-se para cima do banco e alapou-se. Acertou com um saco na perna da MP. Ajeitou-se no banco e começou um longo solilóquio em jeito de desabafo pessoal e coletivo em que tocou a maioria dos assuntos da atualidade. Falava alto como se fossemos responder-lhe. Não íamos. Mas todo o 28 a podia ouvir na perfeição.

– Ah… isto é uma merda! O 28 está uma merda. É só a merda das greves. Antigamente era um bom serviço, agora é uma merda. Este país está uma merda. E os políticos? Os políticos só fazem é merda e depois vêm para a televisão e desculpam-se com a merda da Troika. E a televisão? A televisão antigamente dava programas bons, agora é tudo uma merda! Uma pessoa antigamente ia às compras e trazia alguma coisa que se visse. Agora? Agora é tudo uma merda!

Às tantas, alguém saiu do autocarro 28 e, ao sair, tocou no chapéu-de-chuva da senhora. A reação não se fez esperar:

– Oh, oh, querem lá ver que me abalam com a merda do chapéu?!

O C olhou para mim, sorriu e fechou esta história:

– Ó João, já temos aqui mais um motivo de narrativa!

E tínhamos.

jpv


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Histórias do Autocarro 28 – Primavera, mas não tanto!

Primavera, mas não tanto!

Ainda há pouco tempo escrevi e publiquei neste blogue dois apontamentos sobre a chegada da Primavera. E, lembro-me bem, publiquei com eles algumas fotos da flor de amendoeira.

Esta sexta-feira, à porta do autocarro 28, presenciei uma cena que pode ser invocadora da Primavera, mas noutro plano, digamos, num plano mais humano. Estava uma radiosa manhã de sol primaveril, daquelas em que uma pessoa até acredita que vai tudo correr bem. Contudo, e por isso estas linhas fazem sentido, estava um frio cortante, que entrava na pele, sob as roupas. Não estranhei, pois, que as pessoas vestissem camisolas de lã e casacos e blusões e sobretudos. Já não é tempo de garruços na cabeça, mas ainda não é tempo de deixar o casaco em casa. E foi então que a vi. Eu e toda a gente que por ali passava.

Uma senhora junto aos cinquenta, cabelo claro, muito curto, a pele alva como lençóis depois da lixívia, óculos de massa retangulares e encarnados, sapatos encarnados de salto alto e… vestia pouco mais do que isto. Eu sei, parece um exagero. Mas, bem vistas as coisas, não é. Além do já referido, a senhora só tinha no corpo um vestidinho encarnado de algodão. De cavas, com um decote generoso, sem costas e a dar por cima do joelho, muiiiito por cima do joelho! A roupa interior era de uma marca pouco comum, mas que já se tem visto: “Ausente”.

E assim, nos primeiros dias de março, num amanhecer solarengo e frio, houve uma alma que enfiou um vestidinho diminuto e esqueceu-se do resto. Como que a antecipar a Primavera.

Eu, por acaso, até penso que podemos ir antecipando a Primavera, mas não tanto!

jpv


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Histórias do Autocarro 28 – É a Vida!

É a Vida!

Eram cerca de 18h da tarde. O 28 ia muito composto mas não estava completamente cheio. Ao aproximar-se de uma paragem, uns dois ou três metros para lá dela, estava um homem nos seus sessenta anos. Fez sinal para o autocarro parar. O motorista parou, mas advertiu:
– Oiça lá, a paragem não é aí. Era ali atrás…
O homem lá entrou com algum custo e o 28 seguiu caminho. Um pouco mais à frente, nem era uma paragem nem nada, era só um semáforo, a luz estava amarela, prestes a passar a encarnado, ainda assim, se o motorista passasse no amarelo, não seria o primeiro em Lisboa a fazê-lo. Acontece que, nesse preciso momento, uma mulher jovem de aspecto muito saudável e atraente, com um vestido de alças, em motivos florais e tons de rosa escuro, decote bem pronunciado, esticou o bracinho, fez um sorriso e foi assim que pediu ao motorista do 28 que parasse. E ele, todo simpático, parou a viatura e deixou a beldade entrar em pleno… semáforo! Nem paragem por perto.

Lá dentro ia um velhote ao meu lado, agarrado ao varão, com um bigode branco e farfalhudo e as rugas a sulcarem-lhe a pele. E falou num tom conformado e encolhendo os ombros naquele gesto de não há nada a fazer:

– O que é que você quer? É a vida!

jpv


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Histórias do Autocarro 28 – Civismo

Civismo

Há muito tempo que não presenciava uma história no autocarro 28. Sobretudo, uma suculenta, com muitos pormenores e que valesse a pena ser contada detalhadamente.

Hoje foi o dia. A coisa tem requintes de peripécia urbana do quotidiano agitado da grande urbe, com traços de discussão cívica, pinceladas de multiculturalidade e disputa de interesses democraticamente reclamados.

Apanhei o 28 na Infante Santo pouco depois das 18h. Duas paragens depois, na Conde Barão, o motorista abriu as portas da frente para as pessoas entrarem e as portas de trás para as pessoas saírem. Importa referir que as portas estão bem assinaladas e têm funções exclusivas. As da frente só servem para entrar. As de trás só servem para sair.
Quando o 28 parou na Conde Barão e enquanto a fila de pessoas que havia esperado entrava calmamente, seis homens entraram pela porta de trás. Dois brancos de fato, um branco de roupas práticas e três negros de roupas práticas. Quem viajava naquela zona da viatura reparou na infracção, mas é daquelas coisas que depende do civismo de cada um e já ninguém está para se incomodar com isso. As pessoas podem não concordar, podem achar condenável, mas deixam passar em branco, na impunidade dos dias cansados.

Ora, desta vez, quiseram o Destino e o motorista do autocarro 28 que a nossa tarde saísse do anonimato cinzento de todas as outras. Uma coisa qualquer aconteceu na cabeça dele e ele resolveu não deixar passar em branco:
– Os senhores que entraram pela porta de trás, é favor saírem.
Como ninguém se mexeu, ele esclareceu:
– Enquanto os senhores que entraram pela porta de trás não saírem, o autocarro não avança.
E aqui, eu pensei que, ou eles saíam, ou não estava bem a ver como é que o motorista ia cumprir a promessa. Os dois brancos de fato e um dos negros de roupa prática saíram. Só já faltavam três. Nesta fase, as pessoas começaram a reclamar em coro para eles saírem porque se estavam a atrasar para outros transportes, mas eles nada. Até este momento a coisa já estava suficientemente complicada e a ficar quentinha. Não precisava de mais ninguém a intervir. Acontece que a vida é como é e não como a queremos e, por isso mesmo, contra todas as expectativas, um rapaz negro que ia sentado levantou a sua voz em tom bem audível e sonoroso enchendo todo o autocarro com a sua opinião:
– Você não tem nada que se meter nisto. Você é motorista é para conduzir o autocarro, não é para vigiar as pessoas.
– Tenho sim senhor e a responsabilidade é minha e o senhor cale-se.
– Não calo nada. Isto é um país livre e democrático.
– Livre mas não libertino.
E pronto. O 28 explodiu em conversas, opiniões, contra opiniões, argumentos, a favor e contra. Havia quem defendesse que o rapaz tinha razão e havia quem o mandasse calar e havia quem pedisse aos três teimosos para saírem e havia quem pedisse ao motorista para avançar e outros não lhe pediam, gritavam-lhe essa vontade e havia pessoas que gritavam com o rapaz atacando-o por estar a defender os desordeiros ele dizia que só não queria estar parado porque se estava a atrasar e não podia ser prejudicado pela irresponsabilidade dos outros, mas também havia quem dissesse que o motorista, não sendo responsável pelos bilhetes, era responsável pela manipulação da viatura e que as pessoas que tinham esperado para entrar pela frente deviam ter o direito de ser respeitadas e poderem entrar. E houve quem citasse leis, eu próprio dei uma opinião em pleno 28. E, às tantas, alguém, fugindo a quem tinha razão ou não e fugindo às leis, invocou que era tudo uma questão de civismo. E foi aqui que o ruído, já ensurdecedor, aumentou ainda mais. Uns riram-se, outros comentaram, mas ninguém acreditava que a coisa se resolvesse só com recurso ao civismo. As reclamações eram tantas que o motorista arrancou. E houve quem reclamasse por tê-lo feito. Afinal de contas, três dos prevaricadores ainda lá iam. O rapaz continuou a defender bem alto o seu ponto de vista só com o apoio de uma ou duas pessoas. E aqui aconteceu mais um inesperado. O motorista parou o autocarro de novo e veio até meio do corredor para dizer ao outro:
– Isto é uma falta de respeito. Se diz mais uma palavra, chamo a polícia.
Então, o outro usou um trunfo, mas a jogada correu-lhe mal:
– Pronto, eu calo-me. Já percebi que não posso dizer nada porque sou negro.
O 28 voltou a explodir. Desta vez contra o rapaz e a sua argumentação. De facto, ele tinha estado a expressar livremente a sua opinião, em termos até um pouco exagerados, e ninguém o discriminou ou impediu ou cerceou na sua liberdade por razão nenhuma incluindo a rácica. Alguém disse ao motorista para se acalmar e prosseguir e ele lá foi resmungando entre dentes a palavra respeito enquanto o rapaz ia dizendo, Eu calo-me, eu calo-me.

Entretanto fui conversando com uma simpática passageira e concluímos aspectos diversos. Um, foi que nos atrasámos. Eu devo ter perdido dois comboios à custa do incidente. Outro, foi que o civismo é algo de muito escorregadio, difícil de medir e implementar. O último e o mais irónico dos aspectos que concluímos, foi que os três tipos que entraram à socapa pela porta de trás e não saíram se calaram muito caladinhos, deixaram o resto da malta em polvorosa e seguiram viagem sem nunca saírem, nem se envolverem, nem nada… é o tal civismo!

jpv


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Histórias do Autocarro 28 – ‘Tá Bué da Cheio

‘Tá Bué da Cheio

8:50h. Espero o 28 no Cais do Sodré. Demora-se. Entretanto, chega o eléctrico 15. Duas moças com menos de 20 anos esperam que ele pare. Depois, quando está imóvel, pressionam o botão para abrir as portas que deslizam para os lados e vê-se que vem cheio. Lá dentro há pessoas até ao limiar da porta. Uma das moças, desistindo de entrar, diz para a outra:
– ‘Tá bué da cheio.
Ambas se afastam um pouco. Nesse preciso momento chegam duas pessoas a correr, sobem para o eléctrico e empurram quem lá está dentro. Há quem reclame, mas elas não querem saber. As raparigas hesitam. Não entram. Chegam mais duas pessoas, fazem exactamente o mesmo, saltam e empurram. Elas olham uma para a outra. Hesitam. Ficam onde estão. Chegam mais duas pessoas, saltam lá para dentro e empurram. Elas olham uma para a outra e sorriem. Depois de terem desistido, ainda entraram 6 pessoas ali mesmo à frente delas. As portas fecham-se com custo, o eléctrico 15 arranca. Elas voltam a olhar-se e a que tinha estado calada remata como quem se conforma:
– ‘Tava bué da cheio!

jpv


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Histórias do Autocarro 28 – Ajuda Externa

Ajuda Externa

Só a mim, meu Deus, só a mim. Lisboa tem centenas de milhares de habitantes e transeuntes, milhares de autocarros, mais milhares de outros veículos de transporte público, e as alemãs tinham de me calhar a mim!
Em época de FMI, de FEEF, de Ângela Merkl, de ajudas externas, de restrição e austeridade, entro no 28 e atrás de mim entram duas alemãs de meia idade, calças de ganga, t-shirt branca de cavas, suadas até dizer chega. Uma agarra-se e quase me cola o sovaco peludo ao nariz. A outra, vá-se lá saber porquê, não se agarrou. O 28 arranca. Não sei se o motorista sabia que tinham entrado alemãs, mas sei que o esticão foi… repenicado!
A que não se agarrou, desamparou-se e ia mesmo cair. Deitei-lhe a mão e segurei-a por um braço. A senhora reequilibrou-se, olhou-me um bocadinho envergonhada e disse:
– Dankeschön
– Bitte Schön

Ia ficar por ali, mas resolvi acrescentar em inglês de sotaque aprumado:
– It’s ok. This is probably the only way Portugal will help Germany in the next few years.

Fez um sorriso amarelinho, colou os olhinhos no chão e eu pensei em pensamento futebolês:
– Portugal 1, Alemanha 0.

jpv


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Histórias do Autocarro 28 – Pitty

Pitty

8:55h. O 28 está cheio. Não cabe mais ninguém. Aparece o eléctrico 15. As pessoas vão entrando umas atrás das outras e depressa o espaço fica preenchido. No meio da turba entra uma moça jovem, cabelo escuro encaracolado, uma trela pela mão e na ponta dela um cão rafeiro de pêlo longo branco e preto. Ela ficou de pé. Ele teve o cuidado de ir deitar-se praticamente debaixo de um banco. Assentou o queixo no chão entre as patas e olhava para cima como quem não percebe o que está a passar-se, mas tem paciência para esperar porque a sua dona está ali. E confia.

Na paragem seguinte entra mais gente, com o pé, ela empurra-o ligeiramente e ele enfia-se todo debaixo do banco e continua, paciente, à espera. Tudo aquilo deve parecer-lhe agressivo. Um carro de gente muito alta, sons e ruídos inúmeros e ele junto ao chão, o espaço a fugir-lhe e ele paciente à espera, confiando o seu destino no meio da selva de pernas àquela que o guia. E não quer nada de volta. Enfim, talvez uma festa.

E fiquei contemplando aquela paz e aquela paciência e aquela confiança de estar, de se entregar nas mãos de outrem. E perguntei:
– Como se chama?
– Maria.
– Não, ele…
– Pitty.
– Como se escreve?
– P-i-t-t-y.
– Obrigado.

jpv