Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Harry Potter – O Fim da Ilusão

O Fim da Ilusão

Nunca esquecerei. Ocupei o lugar nº1 da fila B. As luzes da sala de cinema escureceram, as pessoas silenciaram-se, em letras brilhantes surgiu um aviso que nos dizia para colocarmos os óculos 3D, as pipocas da Vodafone saltaram e logo a seguir as bolhinhas de gás da Água das Pedras invadiram a sala. Algumas pessoas levantaram as mãos numa tentativa vã de as agarrar. O símbolo monocromático e sombrio da Warner Brothers avançou para nós, seguiu-se-lhe o título do filme, “Harry Potter e os Talismãs da Morte – Parte 2”, e só depois chegou o princípio do fim. Os Devoradores da Morte suspensos rodeando Hogwarts. E, suspensa com eles, ficou uma geração inteira de jovens que viram na metáfora do feiticeiro Gryffindor a sua única ilusão. O momento era perfeito e muitos desejaram que a película não avançasse, queriam ficar ali suspensos olhando Hogwarts imaginando que algo lá dentro continuaria a fervilhar. Avançar agora seria o princípio do fim. Qual fim? O da Ilusão!

Mas a vida é um contínuo temporal que nem Rowlings conseguiu evitar e sob a batuta experiente e genial de David Yates a acção avança e, perante os olhos de uma geração inteira, desenrola-se a fase final daquela que foi, ao longo de uma década, uma profunda e perturbante viagem introspectiva. Harry Potter não foi mais uma saga de feiticeiros, nem sequer foi somente uma extraordinária saga de feiticeiros. Para isso, teria de ter-se resumido a um conjunto de aventuras e, no entanto, o mundo criado por Rowlings é muito mais do que isso. É a criação quase perfeita do imaginário que faltou aos nossos jovens, a resposta para as suas frustrações e desilusões, lamentavelmente, a única forma que tiveram de conhecer e enfrentar o Mal. E, deixemo-nos de rodeios, a culpa é nossa. Nós, os pais e educadores desta geração, com certeza invocando as mais plausíveis razões, entre elas a absurda “Não quero que passem pelo que eu passei”, demos-lhes tudo, fornecemos-lhes todas as condições, criámos-lhes todos os caminhos, abrimos-lhes todas as portas, inventámos-lhes todos os sonhos e as possibilidades todas e, em muitos casos, vivemos e sonhámos com eles e por eles. Não foi por mal, mas demos-lhes tanto que acabámos deixando-os sem nada, sem uma dificuldade para superar, sem um Mal para enfrentar, sem uma dor para sofrer. E restou um pungente e dilacerante vazio. Harry Potter, com os seus amigos e inimigos, veio desenhar um universo paralelo onde a vida se repetia e onde tudo era permitido, até sonhar por si, até sofrer. Tal como a de Voldemort, a alma dos nossos filhos andou dividida e escondida em Horcruxes inimagináveis e escondidos sabe-se lá onde. Por felicidade, Rowlings encontrou um imenso e colectivo Horcrux e deu-o a conhecer a estes jovens e mostrou-lhes um pedaço da sua alma perdida. Foram precisos dez anos para o destruir, mas agora que o feito está consumado, é tempo de se reencontrarem e reunirem forças. Para quê? É simples. Eles sabem, como Rowlings sabia, que nenhuma alma é tão pequena que se esconda num só Horcrux, seria demasiado perigoso, de resto. E por isso, sabem também que é tempo de procurar os outros e destruí-los um a um na reconstrução das suas forças, dos seus sonhos, das suas almas, das suas vidas. E é nesse processo que conquistam a felicidade de sofrer os sofrimentos, de sonhar os sonhos, de amar os amores, de destruir, de reinventar, de viver e reviver. Chegou o fim da ilusão, mas houve um processo de aprendizagem. Aprendeu-se o valor do sofrimento, da amizade, do companheirismo, aprendeu-se a força de sonhar e acreditar e aprendeu-se que o mais fechado de todos os becos, o da incompreensão e da solidão, também tem uma saída. Tudo o que é preciso é acreditar o suficiente para encontrar a plataforma 9 e ¾ e partir para a aventura da vida. Essa mesma vida que é sempre uma escola encantada.

Boa viagem, miúdos!
[Ao Iago, à Ana e à geração que cresceu com Harry Potter]


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O Mundo Depois de Harry Potter

[Continua, em Portugal, uma das mais violentas vagas de incêndios. Para além da suspeita de fogo criminoso, vêm a lume, na imprensa, notícias que envolvem interesses paralelos como seja o comércio de aluguer de helicópteros para o combate às chamas. A saga de Harry Potter conquista o estatuto de livro mais vendido do mundo. A sua divulgação não é pacífica.

[Data da primeira publicação: 19 de Setembro de 2003]

O Mundo Depois de Harry Potter

Querida mana,

Fiz hoje um exercício que costumamos fazer na adolescência quando nos assaltam as grandes dúvidas existenciais, quando queremos saber quem somos, donde viemos e qual a nossa missão neste mundo que nos reveste. Tentei fixar a memória no seu ponto mais remoto: a minha primeira lembrança. Quase sempre fazemos isto levados pelo humano e natural impulso de querer saber onde começámos. A experiência não é de fácil resolução uma vez que o nublado do tempo adensa-se à medida que recuamos e esfumam-se as certezas para ficarem as impressões. Ainda assim, tentei mexer na memória como faziam algumas pessoas antigamente com a água quando esta se bebia dos lagos e nos não chegava a casa pela comodidade e higiene dos canos públicos. Juntei as mãos abertas e depois em movimentos lentos e cuidadosos ia-as separando para as juntar outra vez. A ideia era separar a lembrança pura e potável dos lixos que o tempo lhe havia juntado. Sosseguei, pouco depois, quando isolei a minha primeira memória, como se de algo precioso se tratasse, embrulhei-a em veludo e guardei-a numa caixinha de prata e prometo falar-te dela um dia destes. Por agora venho falar-te de aventuras que nós dois protagonizávamos a expensas da minha malandrice e do teu tácito e cúmplice acordo. A verdade é que não podias fazer nada senão estar de acordo porque eras um bebezinho pequenino que dormia a maior parte do tempo um sono inocente e só despertavas dele para o mais urgente. Na altura davam-me a missão de tomar conta de ti. Colocavam-te num carrinho de bebé enorme, com umas enormes rodas com molas e um travão e eu tinha-te a ti e à rua inteira para desbravar. Sem que nenhum livro ainda me tivesse educado o pensamento, sem que nenhum jogo didáctico me tivesse ensinado a ser melhor, a ser gente, sem que nenhum plano de apoio pedagógico me tivesse sido aplicado, a minha imaginação funcionava e cavalgava à solta até onde lhe apetecia. Empurrava lento e a muito custo a minha carroça de cow-boy rua acima, escondia-me de índios ferozes e ululantes, protegia deles e dos animais ferozes do velho Oeste o tesouro precioso que transportava comigo e uma vez chegado ao cimo da rua, perdão, ao cume da ravina, havia que descê-la ágil e veloz por entre as gentes que ali passavam onde via hordas de inimigos em perseguição. Preparava a carroça o melhor que podia, verificava os travões, olhava em desafio a descida e a correria iniciava-se, excitante e divertida, e só acabava quando a rua que lhe servia de palco não permitia continuá-la. Voltava a subir a rua e, enquanto o fazia, mudava o cenário, inventava uma aventura nova que justificasse a nossa correria por ali abaixo e depois era mais uma volta na montanha russa da minha imaginação. Nunca precisei que me dessem uma receita, nunca senti necessidade de comprar um imaginário!

Por esses dias dava os primeiros passos na escola. Gostava da bola nos recreios e de jogar às escondidas, gostava da caminhada de casa até à escola pelo fresco da manhã e, pensando bem, até gostava daquela pontinha de medo de poder vir o comboio cuja linha eu segui a pé durante parte do percurso. Ao terminar a primeira classe, quando ainda se chamava assim, ofereceram-me um livro da Anita. Fiquei maravilhado com os desenhos, com as cores, com as expressões do cão, com olhos muito abertos da Anita e li-o com avidez mas, depois dessa experiência maravilhosa de descoberta o meu mundo continuou intacto e à minha espera. O livro era mais limpo e mais perfeitinho do que as coisas que me rodeavam mas era, fundamentalmente, sobre as coisas que me rodeavam e que eu dominava. Fora uma magia, mas uma magia que ocupara só o seu espaço, só o espaço que uma magia deve ocupar.

A semana passada, por entre os afazeres de um ano lectivo que se anuncia a esta minha condição de professor, fui consultar o meu correio electrónico e vi que alguém me propunha que reservasse já o quinto volume de “Harry Potter” em Português pois, apesar de só sair em vinte cinco de Outubro, prevê-se que esgote, aliás, a verdade é que a mais de um mês da sua publicação na versão lusa, milhares estão antecipadamente guardados, reservados, enfim, vendidos. Enquanto fenómeno de vendas e no que concerne à sua aceitação junto dos jovens e não só, “Harry Potter” não é discutível. E é precisamente isso que me assusta: a forma absoluta e avassaladora como se impôs. A forma como tão rapidamente se constituiu num receituário para o imaginário infanto-juvenil. Será que os jovens dos quatro cantos que habitamos não viviam aventuras inimagináveis antes? Será que as vão viver depois? Até que ponto é que “Harry Potter” é uma busca interessante e bem arquitectada da essência do que é ser jovem, nobre e corajoso e até que ponto é que é um livrinho de aventuras como tantos outros mas com uma estupenda máquina de marketing que vende filmes, pastas da escola, estojos, lápis, cromos, copos, canecas almoçadeiras, camisolas, sapatilhas, caramelos e mais um sem número de coisas que já existiam mas que agora “são do Harry Potter”?

O que me assusta na realidade é o espaço que este fenómeno está a ocupar no mundo dos jovens. Será o espaço próprio de um livro, de uma aventura, o espaço próprio da magia de ler, ou estará a impor-se, no quotidiano, para além dos limites do razoável? Uma coisa é imaginar imaginações, outra, bem diferente, é consumir imaginações… É por isto que, pensando que vai sair agora o quinto volume, e que só restam mais dois volumes de magia, me apetece perguntar: que será do mundo depois de “Harry Potter”? Para o teu sobrinho eu já encomendei o quinto mas, se fosse no meu tempo, voltava a subir a rua!

Beijo
Mano