Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Creta 2010 – Diário de Bordo – 4

29/7/2010 – 14:09 – No avião (Zurique-Atenas)
Muito bem, é oficial. A tradição já não é o que era. Nem a precisão suíça. O avião partiu às 13:55h., ou seja, com uma hora de atraso. Ironia. partiu de Zurique e é um Air Bus da SwissAir.
Há outra coisa oficial. Estou receoso. Pronto, confesso, completamente acagaçado. O tipo do altifalante e comandante da lata, que há-de ser tão humano e falível quanto eu, disse no melhor inglês que conseguiu que íamos encontrar alguma turbulência. Ora, alguma turbulência, no meu limitado vocabulário de acagaçado, não inclui solavancos de fazer saltar na cadeira nem latas a bater por todo o lado. Espero, sinceramente, ter oportunidade de um dia mostrar estas linhas a alguém. Era bom sinal. Como é que consigo escrever durante o episódio? Simples, isto sai tudo torto mas ajuda a esquecer um tudo-nada a lata aos saltos no vácuo.
À medida que avançamos no tempo e na altitude, a coisa vai acalmando. Mas ainda não está sossegada. Outro distractor bem agradável: a mãe francesa de olho azul e cuequinha rendada aqui ao lado. Ainda bem que inventaram o cós baixo! O puto é que podia estar quieto. Já agora, Deus, se me ouves melhor porque estou mais perto, cala o cachopo grego que vai aqui à frente aos berros parece que o matam.
Cá em cima, o sol tomou conta das nuvens que ficam por baixo. E lembro-me da minha poderosa Serra D’Aire e do meu Bronco. Tão fiável. Mas agora não é hora disso. É hora SwissAir. Atrasada e tudo.
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Dados da desgraça:
Altitude: 9600m.
Velocidade: 800km/hora.
Temperatura no exterior: -46ºC.
Mal por mal, cá dentro!
Nota 1: assim que acabou a turbulência o puto francês adormeceu e passaram doze, DOZE pessoas para a casa-de-banho.
Nota 2: Continuaram a passar pessoas para a casa-de-banho. Às tantas deixei de contar. Foi para aí um terço dos passageiros!
Nota 3: vantagens de ter um filho a estudar medicina: perguntei porque é que passava tanta gente para a casa-de-banho. Ele disse que o stress liberta uma hormona chamada cortizol que, entre outros efeitos, estimula a diurese. É por isso que as pessoas na fila para andar na montanha russa têm vontade de fazer xi-xi. Já valeu as propinas do ano passado!

Dados da desgraça: texto original manuscrito
Sim filho, havia de valer de muito!
Mãe francesa (com autorização da própria!)


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Creta 2010 – Diário de Bordo – 3

29/7/2010 – 12:44h. – Aeroporto de Zurique

Em Zurique estão 15ºC. Menos de metade do que em Lisboa. Não há sol e chove.

O vôo para Atenas está atrasado 20m. Nada de mais. Uma coca-cola e um café custaram 12€. Os avisos para os passageiros nem sempre são traduzidos, ao menos, para inglês. A esplanada está de frente para as portas do WC. As mulheres são altas e desajeitadas. Tudo isto me leva a perguntar “Afinal, quem é que quer viver nesta terra?” Eu sei, não se avalia uma nação pelo seu aeroporto. Acontece que até pode fazer-se esse exercício. É um bocadinho como conhecer a cozinha de uma casa.

Os sons no ar deste aeroporto são diferentes dos de Lisboa. Menos doces. Mais ásperos. As pessoas aqui não falam, cospem as palavras.

Estão a chamar-nos. É para já!

Aeroporto de Zurique


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Creta 2010 – Diário de Bordo – 2

29/7/2010 – 08:31h. – No avião (Lisboa-Zurique).

Quando escrevo estas linhas há uma pequena turbulência que me não preocupa mas relembra a impotência, a total impotência que é viajar de avião. Quando entrei, reparei que era um Air Bus A319 da TAP com o sugestivo nome de “Humberto Delgado”. Não viajo muitas vezes de avião mas o suficiente para dizer que, não sei bem porquê, viajar na TAP é diferente para melhor. Quase como se, no meio de tanta eficácia e tecnologia, houvesse um toque artesanal. Correndo tudo bem, esta coisa deve poisar daqui a duas horas e meia em Zurique.

Andar de avião gera-me um sentimento contraditório. Primeiro, uma confiança e um orgulho enormes na Humanidade que voa como os pássaros, muito acima dos pássaros, encurta distâncias e atravessa fronteiras a velocidades incríveis. Duas horas e meia para fazer 1726km! Por outro lado, uma quase epidérmica e inevitável desconfiança. Nesta lata que voa, onde me mostram um filme com umas cenas de desporto e me servem uma refeição, há milhares de cabos, quilómetros deles, o mesmo com tubos, há turbinas, geradores, combustíveis, tudo pressurizado dentro de uma cápsula metálica a que chamam avião. Não consigo deixar de imaginar um desses cabos a falhar, um furinho minúsculo num tubo, uma turbina que diz “Não me apetece mais”. E é por isso que vou confiante e desconfiante. Acima dos pássaros, mais perto de Deus, a caminho de Zurique.

Entre Lisboa e Zurique
O original do texto aqui transcrito


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Creta 2010 – Diário de Bordo – 1

29/7/2010 – 06:06h. – Aeroporto de Lisboa

Estar num aeroporto é sempre estranho. Desta vez, ainda mais estranha se tornou a sensação porque fizemos o ceck-in às 5:30h. e quando chegámos à zona comercial de acesso às portas de embarque, estava tudo fechado. Bem, não estava exactamente tudo fechado. O Harrods estava aberto. Juntámos sumo de laranja e café a uma sandes de queijo fresco em pão de cereais. Foi nesse momento que escrevi estas linhas. Estou confortavelmente sentado numa cadeira branca. À minha frente está um sinal dos tempos. Um homem que claramente não é português, a avaliar pelos traços e pela roupa, tem, junto aos despojos do pequeno-almoço, três computadores portáteis! Eu, que fujo agora de tudo isso, percebo a nossa escravidão. Nem come descansado. O trabalho vai consigo para todo o lado. É um escravo do conforto e das condições.

Aos poucos foi aumentando o ruído. Um restolhar de chávenas e pires. Um copo que se parte, as máquinas que acordam e exalam vapores, as luzes que se acendem, as pessoas que lutam contra a ruína da Babel expressando-se em português com e sem sotaque sul-americano, em inglês, em alemão, em francês, em espanhol. Acorda o monstro do seu sono breve e isto agora já parece um aeroporto. Ainda bem, o embarque é daqui a uma hora.

Aeroporto de Lisboa – Harrods


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Creta 2010 – Diário de Bordo – Introdução

Depois de alguns anos a pensar no assunto e a fazer umas poupanças, decidimos fazer umas férias em Creta. A ideia era, como sempre tentamos, conjugar o descanso, a paisagem natural e o aspecto cultural.

Nunca pensei escrever nada sobre as férias porque, para mim, seriam uma boas férias mas só mais umas.

Não foram. Tive o pressentimento de que poderiam não ser e, ainda no aeroporto de Lisboa, comecei a escrever um “Diário de Bordo”. Assim ao jeito de quem fotografa com as palavras. Esses textos ficariam para mim e mais nada. Acontece que as férias-visita revelaram-se de tal forma interessantes numa perspectiva cultural, gastronómica, paisagística, e outros que agora não me ocorrem que resolvi publicar aqui os textos antes de começar a postagem dos muitos capítulos que escrevi de “De Negro Vestida”.

Não há nesta publicação nenhuma espécie de vaidade. Há só a intenção de partilhar as coisas que vi e senti, as experiências por que passei. Sempre que as tiver juntarei imagens feitas por nós a acompanhar o texto.

“Gramvousa – Creta”


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Este Blogue vai de Férias

Caros amigos, este blogue vai de férias!

Com a facilidade de meios que hoje existe, seria fácil fazer a manutenção durante as próximas três semanas, acontece que eu também preciso ir de férias, desligar computadores, telemóveis, conversar, dormir, passear, e ler. Ler pelo prazer puro e simples de ler.

Foi um ano intenso. Mails para a minha Irmã evoluiu e afirmou-se, para além dos mails, através da ficção. Como sabem, adoro escrever. Escrevo só porque sim, mas é muito melhor com a vossa companhia, com o vosso incentivo, conselho, crítica. Não somos muitos mas somos assíduos e estamos a crescer. Quando começámos éramos cerca de 20 por dia. Hoje, somos cerca de oitenta e muitas vezes superamos as cem leituras por dia. É motivante.

“De Negro Vestida” terá uma evolução interessante. Está prestes a mudar o rumo da narrativa e, quando tal acontecer, a recuperar uma escrita mais pessoalizada. Aquela que fez com que tantos de vós ficassem leitores do blogue.

E haverá, durante o próximo ano, para além da ficção, novos Mails para a minha Irmã! Está dito, está dito!

Desejo-vos umas boas férias e um bom descanso, sendo caso disso. Não sendo, desejo-vos um bom trabalho.

Até daqui a uns dias.

João Paulo


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Férias para Sempre, outra vez.

[Políticos franceses entram em reality show. As notícias relativas ao processo Casa Pia mostram que o mesmo está longe de resolvido. Apagão eléctrico em Nova York: inquietante a fragilidade de um empório tecnológico; admirável a tranquilidade e bonomia nas ruas novaiorquinas; recorrente o medo de uma nova tragédia accionada pelo terrorismo. Vaga de incêndios assola Portugal.

[Data da primeira publicação: 22 de Agosto de 2003]

Férias para Sempre, outra vez.
Olá manita,
Não sei que me deu, que avaria foi esta na cabeça ou no teclado do computador, mas o certo é que neste mês de Agosto só me apetece escrever-te sobre férias. Uma noite destas sentei-me à secretária e tentei obrigar-me a escrever sobre outra coisa qualquer. Mas os dedos fugiam-me, as palavras desobedeciam-me à formulação e tudo acabava em férias. Tanto mais esquisito isto se torna, quanto é verdade que não tivemos assim tantas nem tão prolongadas férias. Talvez, por isso, as que tivemos se imponham tanto à memória e forcem a saída para o papel.
Um dia destes, em reflexão vagabunda e desenfreada, concluí que há um verbo privilegiado quando se trata de falar de férias: IR. Ora, IR acorda-me as caravelas da memória, a lembrança de dias que não vivi mas quero contar, recontar, atirar para os mares de gerações não nascidas ainda. Há uma relação íntima entre este ser português que nasceu connosco e a ideia de IR, de viajar, de partir, de regressar. Por vezes, ainda não partimos e já sentimos saudades, já planeamos o regresso. Provavelmente porque nos agrada tanto regressar quanto partir. Por outro lado, partir tem a força de soltar amarras, de virar costas aos velhos do Restelo que nos assustam a alma. O que se me afigurou, de repente, e de forma muito portuguesa, foi que a viagem, propriamente dita, não é, afinal, o mais importante. O fundamental são a coragem de partir e o prazer de regressar. Há Ulisses e há Eneias e há Gamas à solta nisto que acabámos por vir a ser neste canto da península. Imagina uma viagem como uma corda. Quem quer saber do meio da corda? Quem lhe pega pelo meio? Ninguém! Queremos, sôfregos, uma das pontas para poder puxá-la, atá-la, talvez, para poder vivê-la! Talvez só queiramos as pontas porque sabemos o que fazer com elas; é como as viagens: sabemos sempre o que PARTIR e REGRESSAR querem de nós. O que não sabemos é o que fazer com a imensidão de opções que o meio da corda nos oferece. Vem isto a propósito de dizer que os portugueses são valentes “iniciáticos”, extraordinários “conclusores” mas atrapalham-se um pouco com o processo. O processo é que é o diabo.
Já não sei se foram as divagações que me despertaram a memória ou se a memória que divagou e se perdeu nas linhas que acabei de deixar-te. Sei, somente, que tudo isto surgiu quando me lembrei de ter viajado sozinho pela primeira vez. Fui (perfeito do verbo IR) ao Algarve! Tinha terminado o nono ano (quantos séculos!), e os pais ofereceram-me a oportunidade. Como quase sempre na minha vida, agarrei-a. Mochila azul até não poder mais, roupa, alimentos e a alma aparelhada para a aventura. Duas semanas inteiras de liberdade absoluta pela frente e, curiosamente, pouco mais me lembro do que da partida e do regresso! Lembro-me de firmar as pernas e subir para o autocarro, um aceno, um adeus, a mãe para trás, uma coragem de partir. Lembro-me, mais tarde, do fresco da minha Ítaca de primeiro andar em Coimbra e dos despojos de viagem pelo chão à mistura com narrativas empolgadas do que quer que seja que ficou no meio da corda.

Por que te escrevo disto hoje? Por que relembro uma viagem em que não participaste? Para dizer-te que foste comigo naquela altura como estás comigo hoje. Para dizer-te que faltaste tu na minha bagagem, para dizer-te que vinte e muitos anos passados e ainda hoje penso que tudo teria sido mais extraordinário se te tivesse levado comigo mais do que na alma. Para dizer-te que ser irmão é assim: ser o mesmo noutro corpo.

Beijo
mano


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Férias para Sempre

[Políticos franceses entram em reality show. As notícias relativas ao processo Casa Pia mostram que o mesmo está longe de resolvido. Apagão eléctrico em Nova York: inquietante a fragilidade de um empório tecnológico; admirável a tranquilidade e bonomia nas ruas novaiorquinas; recorrente o medo de uma nova tragédia accionada pelo terrorismo. Vaga de incêndios assola Portugal.

[Data da primeira publicação: 8 de Agosto de 2003]

Férias para Sempre

Olá mana,
Porque se aproximam as do presente, lembrei-me de rememorar para nós as férias do tempo em que ainda as não organizávamos, as não pagávamos. As férias do tempo em que ir de férias era só isso mesmo: ir de férias. Para ti a festa começava em Julho. Deixavas-nos a caminho da Figueira onde partilhavas emoções e sol quente com a generosidade da Mimi. Por essa altura, usavas o cabelito curto, os olhos despertos e as vontades aguçadas pelo génio de menina-senhora-do-seu-nariz. Eras um poço de força. Durante esse mês rumávamos à Figueira todos os fins-de-semana mais para ver-te do que por causa da praia. “Praieira” eras tu, escutando o vento, horas a fio na água a despeito das vozes adultas cá de fora: “Ó Ângela, já chega! Aquela miúda passa o dia de molho!”
Sempre te ficou bem o mar a enfeitar-te o espírito.
Depois vinha Agosto e a festa era diferente, mais familiar, mais nossa. Lembro-me bem das tardes intermináveis de sábados construídos de emoções carregando sacos, embrulhos, embrulhinhos e tudo o que coubesse e a mãe se lembrasse. Praticamente acartávamos a casa do primeiro andar para dentro do carro. Os colchões, as tendas, os pratos, os talheres, as almofadas, os baldes, as vassouras e quando já parecia estar tudo e o carro não podia com mais nada a mãe inventava mais uns embrulhinhos que acabavam, inevitavelmente, num saquinho com um frasco de vidro com um bocadinho de detergente, outro com sal e, claro, a cafeteira do café. A mãe providenciava, nós transportávamos escada abaixo e o pai, de paciência extrema, arrumava o inarrumável, inventava espaço para os sonhos de partir. Seguia-se o folclore da viagem. O espaço contado, ao milímetro, para cada um, a esperança de aventuras inigualáveis em cima de quatro rodas. Comentávamos os mesmos buracos na estrada, as mesmas curvas, aquela janela, esta casa, um telhado engraçado, e viajávamos em sonhos livres do que deixáramos para trás. Cantavam-se irrepreensivelmente as mesmas desafinações e parávamos mais ou menos nos mesmos locais para oficiar os mesmos rituais. Hoje sei que eram só quarenta quilómetros. Na altura diria que tinham sido dias intermináveis de viagem (a)venturosa. Na altura diria que tinham sido férias para sempre. Hoje sei que foram só alguns fins-de-semana em família. E volta-me sempre esta palavra como marca na pele, como responsabilidade de fazer de novo, de não deixar morrer: família!
Claro que nos instalávamos com alarido, perdíamos os ferros da tenda, falávamos alto, deixávamos de ver-te, aventureira de procurar outros espaços. Mas, como relógio interior da nossa aventura, concluíamos as tarefas essenciais à medida que o dia fenecia. E tudo terminava numa refeição ligeira adoçada com um café. E parece que vejo o pai de perna traçada, muita alva de não ver sol o ano todo. Calções cinzentos e camisa branca de manga curta e dobrada. A mãe envergava um vestido-bata, quase sempre em tons de verde, e movimentava-se afanosa em torno de nos fazer confortáveis. Nessa noite, depois de esticarmos as pernas e encostarmos os pés contra o pano fresco da tenda, adormecíamos felizes!
Nada disto era sofisticado. Tudo isto era verdadeiro.
Nada disto era grandioso. Tudo era à medida do que se podia e nunca acima do que se podia. E essa foi uma lição importante. Uma lição de Liberdade e Responsabilidade. É que, ao contrário do vou vendo e lendo à minha volta, as nossas férias não eram à medida do que se não podia gastar, não eram à medida do que estava para além de nós: eram à nossa medida. À medida da partilha em família, dos momentos em que nos olhámos, dos momentos em que conversávamos, ríamos juntos! As nossas férias não eram marcadas por bilhetes de avião, não tinham o selo de hotéis de luxo e o milagre é que hoje conheço isso tudo mas consigo lembrar-me de ser feliz sem ter necessitado disso. É como se o segredo da vida estivesse em aproveitar muito bem o que se tem e não em ansiar o que se não pode ter. Depois, quem tem uma família, de que precisa mais?

Beijo
mano