À Deriva do Atlântico
Estou aqui sentado
Nesta pequena canoa
Vou-me então transformar
Em Fernando Pessoa.
Só tenho dois companheiros
O lápis e o papel
E sou alimentado
Por um pote de mel.
Olho para o mar
O mar extenso e sombrio.
Quando penso na solidão
Até sinto um arrepio.
Sinto saudade de uma Rosa
Ou então de uma tília
No mar vejo o reflexo
De toda a minha família.
Os meus amigos despejados
Por um grande cano
Eu estou neste barco
À deriva do Oceano.
Ao escrever estas palavras
Cheias de fantasia
E ao digitar este poema
Fico cheio de alegria.
Passei muitos dias
No oceano a navegar
Mas a terra está à vista!
E bem irei ficar.
Category Archives: Família
Bons Malandros
[Pacheco Pereira publica no Público, a crónica “O Iraque É Também Nossa Responsabilidade”. Realiza-se, em Lisboa, a segunda “Marcha do Orgulho Gay” que, segundo o Diário de Notícias, tentou desfazer a associação ao escândalo Casa Pia. A AOL Time Warner Foundation anuncia, após realização de um inquérito que para além de ler, escrever e contar, a alfabetização do século XXI deveria possibilitar aos jovens aprender novas competências que há 20 anos não eram tidas como essencias. O CDS-PP desiste do projecto v-chip para controlar a violência e a pornografia na televisão. Fátima Felgueiras dá uima polémica conferência de imprensa no Rio de Janeiro. O Porto vence (1 – 0) a União de Leiria e conquista a Taça de Portugal.
Data da primeira publicação: 27 de Junho de 2003]
Bons Malandros
Querida Mana,
O entusiasmo era de levar a mãe a chamar para mesa uma vez, duas e três e a refeição era apressada para voltarmos à aventura. O que eu realmente gostava e queria partilhar com todos à minha volta era a boa disposição, o imprevisto, o caricato e por vezes, porque não, o arrojo da linguagem que assumia traços de vernáculo. O fenomenal, para mim, era o contraste! Eu só não sabia defini-lo e traçar-lhe os contornos exactos mas apercebia-me claramente de que havia ali um contraste. Hoje percebo que residia, fundamentalmente, na antítese entre o formalismo e a seriedade como me apresentavam a Literatura na escola, sempre tão longe da vida, e a fluência de viver que aquele pequeno livro me escancarava à frente dos olhos, às portas da alma. Cheguei a estranhar alguma linguagem. Como era possível um livro ter a palavra “preservativo”, como era possível as personagens serem tão parecidas com as pessoas que se cruzavam comigo no caminho para a escola, tão humanas, tão cheias de defeitos? … Cheguei a duvidar ser Literatura aquele arrazoado de maravilhas surpreendentes que me faziam rir e comover e me impeliam a ler-te o livro.
Porquê estas recordações tantos anos depois? Por que me puxa a memória para um livro? A resposta é simples. A “Crónica dos Bons Malandros” foi, para mim, uma tomada de consciência. Foi o perceber e o apreender da Literatura como manifestação de vida, de toda a vida. Mais do que isso, a Literatura, para mim, deixou de ser uma manifestação de vida, passou a ser a própria vida. Os livros deixaram de ser textos muito bem escritos, sem erros, que senhores muito inteligentes e estudiosos, a que chamávamos autores, escreviam para que o resto da Humanidade pudesse aprender. Os livros e a leitura deixaram de ser, para mim, paradigmas do que é bom, perfeitamente dissociáveis de mim, do meu quotidiano, da minha família. A “Crónica dos Bons Malandros” integrou a leitura, a escrita, a minha vivência e colocou-os a todos no mesmo plano: o da vida. Afinal, havia pessoas boas que faziam coisas más, pessoas más que faziam coisas boas, havia mau cheiro e sujidade na Literatura, as personagens, surpreendentemente, falavam como se fala nas ruas, diziam palavrões, tinham sotaques, vestiam mal e o milagre, para mim, foi a perfeição residir no facto de a imperfeição estar por todo o lado. A Língua servia a sua configuração mais extraordinária: a Literatura. E esta, por seu lado, jamais poderia existir e continuar a maravilhar-me sem o serviço da primeira. Eu encontrara o casamento perfeito, vislumbrara uma união que jamais alguém conseguiria desfazer. O corpo e a alma, a palavra e a ideia, a mão e o gesto, a Língua e a Literatura! Por isso me arrepio, hoje, e, mais do que isso, me entristeço, quando oiço as defesas das mais modernas teorias pedagógicas que em nome da alfabetização e da competência linguística propõem ensinar aos jovens a Língua e a Literatura separadamente. Preocupo-me quando oiço pessoas preocupadas com a incompetência linguística e pensam estar a solução em dar mais atenção à Língua em detrimento da Literatura. Será que não vêem que este detrimento não existe? Onde aprender uma carta melhor do que em Pessoa ou Saramago? Onde compreender a estatística melhor do que em Gedeão? Onde aprender o manuseio da Língua melhor do que naqueles que o fizeram com a excelência da vida? Onde encontrar os segredos de uma pontuação extraordinariamente correcta e de uma frase maravilhosamente bem organizada melhor do que em Vergílio Ferreira.Três à mesa
[A razão principal da guerra no Iraque não foi a questão das armas de destruição maciça, mas o afastamento de Saddam, a fim de permitir a Washington “retirar as suas tropas da Arábia Saudita e abrir caminho ao controlo global do conflito no Próximo Oriente”. A afirmação é de Paul Wolfowitz, braço direito de Donald Rumsfeld e número dois do Pentágono. Herman José é constituído arguido no caso da pedofilia. Paulo Pedroso é detido no âmbito da investigação do mesmo caso. O F.C. Porto vence a Taça Uefa na final contra o Celtic de Glasgow treinado pelo incontornável José Mourinho.
Olá mana,
Lembro-me de quando ainda éramos quatro à mesa.
O pai no topo, cotovelos assentes e mãos entregues uma à outra como que encimando uma pirâmide. Olhava-nos com a alegria de quem vê crescer uma obra de arte. A sua obra de arte. E o seu sentir era um misto paradoxal do altruísmo de quem deixa crescer, de quem sabe deixar viver, e do narcisismo de quem se regozija na contemplação de si na sua obra. Nós ladeávamo-lo.
A mãe e tu de um lado, eu do outro, bem de frente para ti, à distância de uma malandrice, de um risinho, de um segredo por desvendar. A mãe chegava-se bem para cima até conseguir cruzar um braço seu com os do pai. Às vezes penso que fazia isto só para sentir a força. Era a nossa mestra da mesa no preparo dos alimentos, no cruzar artista dos temperos. Lembro-me de a ver olhar o pai e servi-lo com o carinho e o desvelo de quem guarda um tesouro. E nós, cachopos de pontapés por baixo da mesa a retomar uma qualquer escaramuça de antes da refeição, nem reparávamos no milagre que ali tínhamos. E com o passar do tempo aquele ritual de quatro à mesa instaurou-se nos hábitos, no estar, no ser e ajudou a construir as pessoas que somos hoje. Era muito mais do que estarmos juntos. Tratava-se de um momento íntimo daquele núcleo de força, daquela família. O mundo lá fora podia estar a desabar de desgraça, a inchar de riso, a política podia mudar, a finança podia colapsar, podíamos até estar zangados, tristes uns com os outros ou só com o rumo da vida mas… àquela mesa não se faltava. Aquele era um momento em que estávamos os quatro em um só. Era a reunião do clã. Tudo ficava para trás e o mundo era nosso por uns momentos. Por esse tempo, de vez em quando, um de nós caía à cama com as maleitas próprias do tempo ou dos descuidos que marcavam a idade em que os casacos estorvavam e os chapéus-de-chuva eram para os velhos. Depois do tempo necessário para a recuperação ter passado, assinalavam-se as melhoras do paciente com o retorno ao convívio à mesa dos quatro. Ainda me lembro de pensar, ingénuo, no dia em que regressou à mesa após o primeiro enfarte que o pai estava curado, até já tinha jantado connosco!
Sabes, assaltaram-me estas lembranças quando um destes dias fui a Lisboa com a Paula participar num congresso. Numa das pausas para almoço dirigimo-nos a um restaurante da Universidade e, por via da falta de lugares, partilhámos a mesa com uma pessoa desconhecida. Foram minutos dolorosos de silêncio, dolorosos de indiferença, de nada para dizer. Três à mesa e ninguém parecia estar ali ou querer ali estar. Só então percebi o quão íntima é uma refeição. Tudo o que de nós revelamos nos pequenos gestos, nas opções mais insignificantes. Só então percebi que a impessoalidade cresce entre nós por mais que sejamos. Ali estava eu numa urbe de milhões, cercado de semelhantes aos milhares e completamente só numa mesa com três pessoas. Ali se cometera um crime. Ali se assassinara o milagre da refeição. Em nome de quê? Em nome de quê a indiferença? Em nome de quê a impessoalidade? Em nome de quê a solidão? Em nome de que crescimento este definhar das relações humanas? Ainda esbocei um gesto que salvasse o momento:– Vou buscar cafés, a senhora aceita um café?
– Eu pré-comprei o meu. Obrigada.
E pronto. A tecnologia dos almoços em pé, dos pré-adquiridos, dos pré-comprados, dos pré-pagamentos, aniquilou o meu estender de mão e hoje guardo, para contar aos netos, a história triste do dia em que almocei com uma desconhecida, em que violei a sua intimidade e vi a minha devassada sem saber porquê. É essa a parte que me assusta : três à mesa sem saber porquê!
