
Autobiografia
Foste trave
Quando precisaram agarrar-se.
Foste caminho
Quando precisaram andar.
E foste explorador,
Em meio de animais perigosos,
Quando quiseram ver
Os mágicos por-do-sol.
E ficaste na beira das camas
Quando o medo apertou.
E foste uma palavra calma
Em meio de um copo de tinto
Cuja casta se perdeu.
E uma noite quente,
E outra arrasadoramente quente,
Tanto… que os corpos bebiam
O suor gotejante.
E foste escritor,
E foste pai
De sortes e azares.
E professor,
E doutor.
E coisas.
Tantas e tão boas e tão más.
Hoje, vejo um filme,
E distraio-me nestas coisas,
E no fim, não sei se era um filme
Sobre a minha vida,
Ou a minha vida num filme.
Era fílmico, acho eu…
As consequências, não.
Orgulhosamente minhas,
À saciedade…
Essa saciedade que vem
Do fui eu que fiz,
Nada, nem ninguém,
Podem orgulhar-se delas,
Ao pé de mim,
Longe de mim,
Estando nas palavras…
Ah! As palavras.
Deuses que enganam,
Que assumem,
Que tiram,
Põem.
As palavras são
O próprio Deus.
Veio a palavra e disse
Faça-se deus. E como a palavra disse
Deus se fez.
E eu aqui, sem um Deus,
Só eu…
Esta mulher
Cheia dele,
Como um insulto,
Vê uma pedra e logo,
Olha Deus.
E eu aqui à procura
Não O vejo,
Nem nas pedras,
Nem nas árvores,
Nem em nada,
Nem nos milagres
Onde dizem que está,
Ou que esteve.
Aqui, há uns dias,
Abri um computador,
Vísceras o ser humano,
Vísceras quentes,
Com inteligência artificial
E tudo…
Nada. Nem deus nem o diabo.
Nem o bem,
Nem o mal.
E eu, que os sinto,
Mas não os vejo…
Vasculho em livros de poesia,
E romances, também,
Em teses,
Em matanças de porcos,
Num toucinho frito
Pela minha avó.
Já me confundiu os sentidos,
Mas não.
Era toucinho.
Não era deus…
Se digo orações?
Claro que sim.
E acredito nelas,
Então as silenciosas,
São um aprumo,
Parece que está ali Ele…
Mas não, é só a minha eloquência,
A fechar as bocas dos outros.
Mas, Deus, o próprio Deus,
Ali não se encontra.
Já experimentei ver no sexo,
No momento exacto,
Achei que sim…
Um amor assim não se repete,
Mas um amor irrepetível, irrepreensível,
Não é deus, talvez lhe faça alguma inveja,
Mas não é ele.
Fui aos livros de ciências
E vi lá o nome.
Pitágoras fundou uma escola religiosa,
Mas acabei junto da matemática.
Depois procurei por Doppler,
E o seu desvio para o vermelho,
Aparência cromática,
Eu a pensar em diabos,
Nada disso,
São espectros…
Propus-me, então, ficção científica,
Mas a Herança não mo trouxe.
E na bíblia, desorganizado…
Essa fonte de Deus,
Devia lá estar…
Organizado demais.
O fim, nem sequer é o fim.
Os passarinhos,
E os cães,
E os cavalos,
E os golfinhos,
Ao que poderia dar-se o seu nome,
Não são mais que graças,
Assomos de paixão.
E sem ele… Ou quem o substitua,
Nada faz sentido.
Nem o Romance Anónimo,
Nem as pétalas das flores,
Nem os rios que correm,
E, menos ainda, os mares
Onde desaguam.
E as nuvens…
Expliquem-me lá a formação
De uma nuvem,
O bater de asas de uma borboleta,
Expliquem-me o olhar
Fulminante de uma águia.
Deambulo errado
Por uma imensidão
De coisas que nunca existiram,
Ou não têm razão
De ser.
jpv