
De Rerum Natura
Os Acessórios da Vida
À falta de melhor teoria e conclusão, depois de aturadas leituras e demoradas pesquisas, naturalmente, com recurso ao comprovadíssimo e exatíssimo método científico, continuo a achar que nascemos sem acessórios. E, é também um facto, conseguimos ser felizes e crescer saudavelmente sem eles. Nada mais neste texto será tão acertado e exato. A partir da próxima frase, entraremos no delicioso universo das conjeturas, das suposições e das indesejáveis desejadas generalizações.
Chega o momento em que, aparentemente, a perfeição e o milagre que o nosso corpo constitui não nos satisfaz. E começamos a acessorizar. Pulseiras, colares, brincos, um ocasional e muito disputado piercing ou tatuagem. Esta parafernália excêntrica e acessorizante não marca um status. Marca só, e já não é pouco, um processo de crescimento. Depois, quando julgamos que já crescemos, se é que alguma vez chegamos a crescer, espero ardentemente que não, despojamo-nos da nossa juvenilidade com um ímpeto nihilista que nos faz agarrar nos acessórios que tanto amámos e jogá-los no caixote do lixo como proclamação suprema da nossa simplicidade e aversão ao materialismo que corrompe a limpeza do espírito.
Surgem, depois, acessórios tímidos, disfarçados, com justificações que tomamos por plausíveis, até porque, em boa verdade, não parecem acessórios. Uma carta de condução, um cartão bancário, um diploma, a Cruz de Cristo reluzindo dourada sobre o peito, sob a camisa entreaberta, estrategicamente visível-invisível.
Depois, tomamos conta do Universo e os acessórios vestem-se, já não de plausibilidades, mas das roupas sagradas da imprescindibilidade. Tornam-se imprescindíveis para nós e para os que nos rodeiam. Aquela agenda de pele com o calendário página a página grafado, o relógio de precisão inquestionável, o telemóvel onde habita a multidão que faz parte das nossas vidas, quer amemos essas pessoas, as odiemos, ou, simplesmente, precisemos delas. Quando estes acessórios se revelam eficazes e produtivos, passamos a outros, esses sim, e finalmente, marcos indeléveis do status conquistado. O carro da marca tal, o portátil com não sei quantos gigas de disco e o processador mais rápido do mundo conhecido, a camisa com a marca bordada, a gravata, a televisão flat screen, a casa espaçosa ou o apartamento supinamente localizado quando não se consegue ter ambos. Este é o ponto alto e, não sendo um ponto de retrocesso, é um ponto de viragem. Daqui para a frente não desacessorizamos, mas o teor dos acessórios muda um pouco. Digamos que a realidade genuína e crua nos bate à porta e introduz na nossa vida acessórios que não escolhemos. Os óculos. A corrente para pendurar os óculos. O cartão de utente do hospital ou da clínica. O raio-x na gaveta da cómoda a ser repescado de quando em vez. A caixinha de madeira de sândalo ou prata ou plástico do chinês para guardar os comprimidos que, eles próprios, agora acessorizam as nossas vidas. Um eventual aparelho para o ouvido e múltiplos mecanismos para avivar a memória, desde o íman na porta do frigorífico sob o qual pende a lista de compras e o horário da escola dos miúdos dos miúdos, até ao ecrã piscante de um telemóvel que nos lembra de não esquecermos das coisas básicas do quotidiano. A reunião. A hora de ir buscar o neto à escola. O comprimido para o reumático. O papel higiénico no supermercado. O pão. Que é nosso. E é de cada dia. Mas será esquecido se não for lembrado.
Já conversámos sobre conquistar o Mundo. Depois, sobre garantir a Paz no Mundo. Depois, sobre preservar o ambiente no Mundo. Depois, dos filhos no Mundo. Dos netos. E, finalmente, quando conversamos entre amigos, parecemos uma consulta de clínica geral com diversas especialidades e prescrições. Se tudo correr bem, ainda teremos tempo para acessorizar as nossas vidas com uma bengala, uma eventual fralda, colocada e retirada por terceiros, cuja dignidade e autonomia parecem verdadeiras. Chegados aqui, vamos, por certo, desmaterializar e desacessorizar por completo e o único gesto são e verdadeiramente íntegro de que seremos capazes será olhar para dentro e para trás e contemplar um caminho e uma paisagem de que nos orgulhamos sem arrependimentos.
Não há outra medida de vida. Não há outro acessório que conte, no curso dos dias, que não seja o da limpeza da nossa consciência em cada ato, em cada opção e em cada interação. O único, verdadeiro, perene e indestrutível acessório que podemos exibir em cada dia que passa é a nossa integridade. A verdade de sermos quem somos. Sem máscara, nem preço.
Tenho dito.
jpv