Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."

Não havia Escola antes da Covid-19!

Deixe um comentário

Não havia Escola antes da Covid-19!

Crónicas de Maledicência
Não havia Escola antes da Covid-19!

Não podemos querer tudo. Peço desculpa pela revelação abrupta e pela contundência das palavras, mas, efetivamente, não podemos querer tudo. Das duas uma, ou a Escola, considerando a evolução diacrónica, trabalhou bem, fez muito pela Humanidade e, naturalmente, temos de a melhorar, mas reconhecemos que houve um trajeto de muitos sucessos pelo que melhorá-la não é arrasar o que existe e refundá-la, ou a Escola fez tudo mal e temos de a refundar porque nada do que chegou até hoje representa um esforço positivo. Não podemos é ter tudo. Não podemos opinar dizendo que a escola fez tudo errado e depois reclamar responsabilidades na evolução da Humanidade. Também não podemos dizer que fez tudo certo e apontar falhas na evolução da espécie pensante.

Enfim, o mais prudente, penso, seria admitir que a Escola fez muito pela Humanidade, que muitos progressos se fizeram graças aos seus esforços, mas que, como qualquer organismo vivo, está em constante evolução e pode sempre melhorar.

Ultimamente, olho para esta Escola, vítima da Covid-19, e fico com a sensação de que não sabíamos nada, não sabíamos fazer nada antes da Covid, de facto, chego até a sentir que não fizemos mesmo nada. Tenho a sensação de que não sabíamos comunicar, de que não sabíamos registar o que fazíamos, tenho a sensação de que andámos a empatar as aprendizagens dos nossos alunos e o progresso da Humanidade. E sinto mais. Sinto que, não fora a pandemia ter-nos forçado a ser competentes e diligentes e assíduos e produtivos e teríamos ficado no marasmo improdutivo em que vivíamos antes desta abençoada pandemia que nos veio acordar da letargia e transformar-nos em excelentes trabalhadores, em excelentes professores.

Ora vejamos.

Antes do Moodle não fazíamos planificações nem produzíamos materiais para os alunos.
Antes do Zoom não reuníamos uns com os outros nem falávamos sobre o nosso trabalho.
Antes do Teams não trocávamos materiais nem fazíamos registo do nosso trabalho.

Antes dos mecanismos inerentes ao ensino a distância, a bem dizer, praticamente, não havia ensino. Deambulávamos, perdidos, pelos corredores das escolas forçando o tempo a passar e deixávamos os nossos alunos ao abandono, sem ensino de qualidade nem uma avaliação cabal e válida das suas competências. Efetivamente, foi preciso surgirem, como que por magia, estas ferramentas, da neblina espessa da pandemia para que começássemos a trabalhar à grande e a partir de casa e a quaisquer horas, mesmo doentes, mesmo infetados.

Sejamos claros. Em tempos de emergência e perigo, temos de nos adaptar e ser diferentes. Temos de dar mais, extraordinariamente mais, temos de fazer as coisas de forma diferente, mas não podemos cair na falácia autofágica de que nada prestava antes, nada se fazia antes, nada se media e controlava antes. De resto, deixem-me revelar-vos o seguinte: o que temos feito, enquanto docentes, em tempos de pandemia, é valiosíssimo, temos sabido dar a volta a um problema muito sério e difícil que é preservar um clima de aprendizagem nestas condições. Mas sejamos ainda mais claros: o que temos feito é incomparavelmente mais pobre do que o que fazíamos antes. Do ponto de vista pedagógico, a pandemia forçou-nos a regredir. Não há pedagogias de sucesso sem alunos na escola, há remendos. Não há pedagogia de sucesso sem o contacto pessoal, direto e humanizado entre alunos, professores, funcionários e toda a estrutura que permite e favorece as aprendizagens. Nós temos feito o possível e, por vezes, até o impossível, mas tudo isso é muito pouco comparado com uma Escola preparada para receber os seus alunos nas suas salas de aula a desenvolver os seus projetos de aprendizagem.

É urgente desligar os computadores e ligar as pessoas. É urgente desinstalar os Teams e os Zooms e os Moodles e ligar as salas de aula e os ginásios e os recreios e os olhos nos olhos e os dedos no ar e as perguntas quando não se percebe e o sentir da pessoa que o aluno é, ali, à nossa frente e não num monitor à distância da impossibilidade de o perceber.

Eu alinho muito pouco no discurso de que esta pandemia tem coisas boas e veio ensinar-nos coisas boas. Esta pandemia, no âmbito da educação, não tem nada de bom. Não trouxe nada de bom. Nem mesmo a tão propalada autonomia dos alunos. Nós nem sequer sabemos se foram eles que fizeram o que pedimos ou se, simplesmente, alguém fez por eles! Esta pandemia trouxe remendos, trouxe cortes e supressões, trouxe a ultrapassagem de etapas fundamentais da aprendizagem, trouxe desumanização, falta de contacto, roubou-nos a capacidade de avaliar progressões, evoluções, processos e produtos e trouxe produtos que tanto o podem ser como não.

Nunca, antes disto, deixámos de inovar, deixámos de ser criativos, deixámos de estudar, deixámos de produzir, deixámos de registar e de avaliar. Nunca. E, contudo, propaga-se, como uma praga pestilenta, esta ideia de que a pandemia nos veio ensinar a reinventar o ensino e a nós próprios. Temos sido dedicados e briosos, temos investido milhares de horas extra não reconhecidas, nuns casos, reconhecidas e valorizadas, noutros. Temos tentado fazer face a uma dificuldade global que decorre deste contexto pandémico, mas, em honestidade, temos de reconhecer que estamos muito aquém do que já fazíamos na Escola pré-pandémica. É que há aspetos inultrapassáveis e a natureza da Escola é um deles. Não sei se repararam, ao longo das últimas décadas, pelo menos desde a década de 70 do século passado, têm-se feito experiências sucessivas para reinventar a Escola e, contudo, a sua matriz emerge sempre das experiências como aquilo que restou, aquilo que permaneceu incólume ao nosso experimentalismo. E essa matriz é a matriz humanista de ensinar em presença fazendo com o outro, construindo com ele, ensinando pela palavra, pelo exemplo, pela orientação. É a matriz dos valores de cidadania. E, até que haja uma alternativa válida, esta Escola que temos construído olhos nos olhos é mesmo a melhor que existe.

jpv

Desconhecida's avatar

Autor: mailsparaaminhairma

Desenho ilusões com palavras. Sinto com palavras. Expresso com palavras. Escrevo. Sempre. O resto, ou é amor, ou é a vida a consumir-me! Há tão poucas coisas que valem a pena um momento de vida. Há tão poucas coisas por que morrer. Algumas pessoas. Outras tantas paixões. Umas quantas ilusões. E a escrita. Sempre as palavras... jpvideira https://mailsparaaminhairma.wordpress.com

Este é um blogue de fruição do texto. De partilha. De crítica construtiva. Nessa linha tudo será aceite. A má disposição e a predisposição para destruir, por favor, deixe do lado de fora da porta.