Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Pessoa Gramatical

“Tenho vivido uma dúvida razoável. Questão de contornos aparentemente simples, e, contudo, com reflexos intrincados e implicações diversas que me custam ponderar. Na verdade, não sei como a hei de tratar. Não quanto ao teor, bem entendido. Tratá-la-ei, sempre, da única forma que quero e sei: bem. Muito bem. Cuidadosamente bem. Carinhosamente bem. Sem discussão e, menos ainda, causa para qualquer reflexão. Refiro-me ao trato, propriamente dito. À pessoa. Não à sua pessoa. Essa, inscreve-se no bem. Muito bem. Cuidadosamente bem. Carinhosamente bem. A dificuldade prende-se, exatamente, com a pessoa gramatical que hei de usar. A segunda. Ou a terceira. Não é dúvida que se me coloque amiúde. Normalmente decido, de forma quase intuitiva, como quero tratar as pessoas. No seu caso é diferente. Comecei na terceira pessoa por respeito e formalidade institucional. Já na altura sonhava tratá-la de outras formas, mas aquela era a única possível. Entretanto, por razões que bem conhece, tão bem quanto eu, estreitaram-se os laços, enlaçaram-se os olhares, aproximaram-se as palavras e, com naturalidade, me nasceu a tentação de tratá-la por tu. Na segunda pessoa, portanto. Tentação ilusoriamente fácil… repare que a nossa harmonia, inegável, deliciosa harmonia, tem-se sempre expressado na terceira pessoa. Não é distância e, se era deferência, a deferência foi caindo… é uma proximidade respeitosa, uma linha que não é barreira… tem, até, traços de certa ternura e certo carinho. Como sabe, muitas das pessoas de que nos aproximamos e tratamos por tu acabam a magoar-nos ou a ser magoadas por nós. Dirá que antes das palavras está a intenção das pessoas, o seu caráter, a sua formação, o seu contexto e esses, sim, determinaram essas feridas sendo que as palavras foram somente a roupagem, o invólucro. Nada mais errado. De palavras percebo eu. As palavras nunca são só o invólucro. Elas são atos. Contundentes e determinados ou tímidos e hesitantes, mas são atos. Há palavras que acariciam, e há as que magoam, e as que protegem, e as que expõem, as que unem e as que dividem… as palavras são atos. Creio firmemente que a única coisa que pode magoar mais do que as palavras é a ausência delas quando são necessárias e urgentes. Ora, não há nada que eu queira menos do que magoá-la. Mas é certo que não quero também distanciar-me… e aqui reside o meu dilema… a minha dúvida razoável. Eu, que nem sou muito de hesitações, como já ficou expresso. Mantenha-se a terceira pessoa. Uma terceira pessoa que nos protegerá de evitáveis excessos e de proximidades agressivas, mas uma terceira pessoa que não seja distância. Toda feita de atenção, de ternura, de carinho e, porque não, de amor… se tiver de ser amor, amor seja… não li, nunca, em lado algum, que não pode amar-se na terceira pessoa.”

João Paulo Videira
In “Ponte Aérea”


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Renascimento

Gostava de saber
Que pensam
Teus olhos
Quando se fixam nos meus.
Queria saber
Se são
Tentações do diabo
Ou bênçãos de Deus.
Quando esse castanho
Me olha e me fita,
Não têm piedade, teus olhos,
Deste coração
Que se agita.
Os dias passam
E o sofrimento aumenta.
E esse olhar
Que se ausenta
Na distância
Faz vibrar meu corpo
Na inquietação e na ânsia
De sentir
O desenho da tua boca
Em meus lábios solitários.
Não, meu amor,
Não quero dar-te um beijo.
Quero cobrir-te de vários
E diversos suplícios
E carícias.
Quero desenhar
Nos teus olhos
Todas as possíveis malícias
Que uma paixão tem para dar.
E quero, por fim,
Renascer no teu olhar.

jpv


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Espera

Nesta tarde pintada
De amarelo,
Enquanto o Sol cai,
E quando já não consigo vê-lo,
E isso me importa muito pouco,
Admiro o astro
E sofro.
Todo o mundo se queda vago e oco
Quando tu não estás.
É belo, o quadro,
E tem paz.
E, contudo,
Em meu peito desajeitado, 
Pula um coração incapaz
De sossegar o tumultuo
Da tua ausência.

Recorto tua imagem
Na paisagem
Que se estende
A meus pés.
E sinto-me menino…
De novo.

jpv


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Anonymous with a K

Um ritual.
Um ícone.
Uma moldura.
A luz exterior
Recortada
Por tua figura.
Não se trata
De brônzea estátua,
Nem poema com rimas
E melodia a condizer.
Não são versos
Cinzelados em mármore
À espera de morrer.
Não é placa comemorativa,
Nem registo oficial
A gravar na História.
És só tu,
Desenhada na minha memória.
Heroína do trabalho
A cada dia que passa,
Braço estendido
Na intenção do livro
Revelando teu corpo
Colado na vidraça.
E há dor,
E há prazer,
No teu gesto
E na tua dedicação.
Há miúdos a crescer…
Há poesia nisto tudo,
E em tudo isto
Não há poesia nenhuma
Porque em teu hábito
Se consuma
A glória
E o anonimato
Do que fazes
E não se vê.
Vives nestas paredes
E nelas morres.
E há nisso
Um não sei quê
De perene
E efémero sentimento.
Tu és a eternidade
Captada
Em singelo
E breve momento.

jpv


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Súbdito

Ó pobre de mim!
Abandonado
E torturado, assim,
Na tua presença
E na ausência tua.
Teu corpo vestido,
Tua alma nua.
Quisera preencher-te a alma,
Despir-te o corpo,
Libertá-lo dessas amarras
E preenchê-lo também,
Com ganas e garras,
Nesse deleitoso ritual
Que me faz refém.
E, no momento da rendição,
Entregar-te meu coração
Para o abandonares de novo.
Tu és a rainha
E eu sou o povo.
Proletário dos afetos,
Errante mendigo de teu corpo.

jpv