Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


2 comentários

Histórias a Preto e Branco – A Lenda de Dona Gita e Senhor Machado

731bb-preto-e-branco-img

Histórias a Preto e Branco – A Lenda de Dona Gita e Senhor Machado

Não é uma ilha. É um banco de areia que o mar nunca cobre. Parece milagre. Talvez seja. Não tem mais de trezentos metros de comprido. Não é uma ilha. É um banco de areia ao largo de Vilankulos.

Ninguém sabe ao certo de onde veio o Senhor Machado. Nem nunca ninguém se preocupou em saber o seu nome próprio. Foi sempre o Senhor Machado e isso bastou para que o chamassem, para que o conhecessem, para que se enamorasse dela e foi com esse nome que a desposou. Meio português, meio chinês, o Senhor Machado traz no nome e no olhar rasgado a mistura étnica que o caracteriza. Foi sempre um homem de gestos simples, de palavras cordatas e atitudes gentis. E foi essa gentileza que a cativou. Quem o vê, hoje em dia, sair da missa de domingo ou passear os seus noventa anos pelas ruas de Vilankulos com o cabelo liso e todo pintado de branco como uma imensa nuvem dessas que bordejam a vila, não imagina a força e o negrume que esse cabelo teve noutros tempos.

O Senhor Machado ainda não tinha vinte anos quando chegou a África. Era um rapaz robusto e atarracado com o corpo cheio de energia e a mente repleta de planos. Procurava uma vida. E deu com um mar calmo e sereno a abarrotar de peixe lá dentro e uma sereia nas suas margens. Eram águas mágicas, de azuis infinitos, ora escuros, ora cristalinos, matizados de safira ou quase brancos. E mudavam a cada maré e traçavam linhas. Todos aqueles azuis, aprendeu com o tempo e a experiência, eram um imenso mapa marinho só possível no Índico. Duas coisas súbitas lhe aconteceram à chegada a Vilankulos. Fez-se pescador. E pediu-a em casamento.

 Casa Machado - VilankulosDona Gita, meio indiana, meio moura, chegou aqui em família de comerciantes. Caminhava ao longo da praia contando as conchinhas e respondendo aos corvos marinhos. Era uma jovem de traços definidos, quase pareciam desenhados a lápis, lábios finos, olhos vivos e as mãos esguias no extremo dos braços caídos ao longo do corpo mais esbelto de Vilankulos. Adorava flores, plantas e árvores. Esse universo miraculoso da sementinha que se põe e brota e dá flor que se converte em fruto que se come e tem lá dentro nova sementinha. Coleciona as plantas. Fala com elas, respira com elas. Os seus cuidados com essas criaturas parecem desvelos de mãe. Quando o viu, quis que ele se enamorasse dela. E ele enamorou. E quis que ele se apaixonasse por ela. E ele apaixonou. E quis que a pedisse em casamento. E ele pediu. E quis que a desposasse. E ele desposou. E quis que a levasse consigo para o mar. E ele levou. Uma ocasião, preveniu-a de que se demoraria por lá várias noites. Ela foi com ele. Usou simples, terno e contundente argumento. O argumento que desarma os homens. Preferia ver-se privada dos confortos que tinha nas margens seguras e firmes do continente do que ficar longe dele. E rematou sorrindo:
– Dormiremos ao sabor das ondas.
– Não é preciso. Tem um banco de areia.

O Senhor Machado aparelhou o dhow, as redes, os apetrechos de pesca, as armações para colocar na areia com o peixe a secar e velejou a embarcação de vela triangular com perícia até ao banco de areia ao largo de Vilankulos. Quando chegou, deslizou o barco para a areia, retirou as armações e abriu-as. Formavam uma espécie de mesas longas com as pernas mais altas numa extremidade. Assim, o peixe ficaria exposto ao sol e inclinado para que perdesse a humidade mais rapidamente. O Senhor Machado fazia as suas investidas pelo mar calmo e azul e trazia o peixe que Dona Gita amanhava e escalava e estendia, aberto, ao sol. E atirava as entranhas para perto e ficava a ver o bailado das aves na disputa pelo alimento. Certo dia, o Senhor Machado demorou-se mais. Tinha avisado Dona Gita que iria mais longe e ela esperou-o contando os azuis, cantando às aves e suportando o sol sob o seu lenço colorido. E começou a deambular pelo banco de areia e levou as mãos aos bolsos da saia e aí encontrou sementes esquecidas. Estranhas e raras por estas paragens. Eram sementes de pinheiro que um português lhe havia trazido de longe por lhe conhecer o gosto por todas as plantas, por todas as flores e pelas ervinhas todas. Distanciou-se do mar e quando percebeu que a areia era seca, sempre seca, foi com gestos simples e gentis que abriu sete covas para as sete sementes que tinha no bolso. E depositou-as uma a uma. Não havia nos seus gestos esperança pois que as condições eram adversas. Um banco de areia rodeado de água salgada, terreno árido, infértil e fustigado por ventos e sóis. Havia certeza! A certeza que põem os loucos e os amantes em tudo o que fazem.

Corria a década de quarenta. Noutras paragens, terminava uma guerra sangrenta e aqui nasciam as sementes do amor. Vingaram todas. As sete. E foram crescendo devagarinho. E Dona Gita e o Senhor Machado acompanharam esse crescimento. Fosse por que sortilégio fosse, as árvores do norte da Europa resistiram e cresceram fortes e altivas por entre azuis inimitáveis num banco de areia no meio do mar Índico ao largo de Vilankulos. E cresceram a dar sombra para pescadores e ajudantes de pescadores, tornaram-se num ponto de referência à navegação e, sobretudo, ergueram-se como um símbolo do amor que perdura, das pessoas que não se separam, dos amantes que colhem juntos o fruto dos seus afetos e o do mar também.

Já tinha visitado Vilankulos antes, mas nunca ouvira esta história. Na Páscoa de 2015 regressei e fiquei alojado no lodge “Dona Soraya” e foi a própria Soraya que ma contou. Era um fim de tarde turquesa, sentámo-nos numa mesa com vista sobre o mar e enquanto repetia o gesto quase obsessivo de dobrar um guardanapo pelo vinco, Soraya contou com emoção o conto de fadas verdadeiro que presenciou. Continuemos, que a história ainda não terminou.

O Senhor Machado e a Dona Gita acabaram por abandonar a pesca. Dedicaram-se ao comércio. O Senhor Machado abriu a “Casa Machado” junto ao mercado central a aí trabalhou até ao ano passado. Ao domingo à tarde, após a missa e o almoço, o Senhor Machado e a Dona Gita caminhavam pela praia, erguiam uma mão aberta sobre o olhar e vigiavam os pinheiros do seu amor. Em 2005 fizeram sessenta anos de casados, toda a vila se reuniu numa festa e numa homenagem ao estranho casal que veio de longe para se amar em Vilankulos e plantar pinheiros num banco de areia ao largo da vila. Cresce o amor em estranhos locais e adversas condições. Soraya fez com suas próprias mãos um vestido para Dona Gita celebrar a ocasião. Em suas infinitas diferenças e matizes de vida, as gentes de Vilankulos encontraram espaço para acolher Dona Gita e o Senhor Machado. E para os respeitar e venerar o seu amor. Esse mesmo imorredoiro amor que sustenta os pinheiros no meio do mar. Esse amor que haveria de manifestar-se e mostrar a sua força. Pouco depois do aniversário de casamento, veio instalar-se na área um moderníssimo e reputadíssimo resort turístico. Captou a atenção dos gestores o elegante banco de areia, local ideal para levar turistas em passeio a beber um leite de côco por alva palhinha. Mas que faziam ali pinheiros? A árvore tropical, por excelência, é o coqueiro. E tomaram a intenção de cortar todos os pinheiros e plantar coqueiros adultos com ar exótico e tropical como aparece no postal, debruçados sobre o azul marinho onde outrora o Senhor Machado havia pescado. Mas naquele banco de areia havia mais do que pinheiros do norte. Havia essa força invisível que os tinha sustentado por mais de sessenta anos.

Dona Soraya é uma mulher alta, determinada, de palavra fácil e clara, doa a quem doer. E foi ela quem liderou a vila no complexo processo de demonstrar às autoridades que não podia perpetrar-se aquela intenção. Documentos, relatos, reuniões e até uma embaixada de gente entusiasmada na defesa da sua história, do seu casal incomum. Aqueles pinheiros eram o símbolo vivo de um amor inquebrantável, de um companheirismo sem igual, mas eram algo mais do que isso. Faziam parte da história e da memória coletiva de Vilankulos. Com surpresa de muitos, mas não de Soraya que nunca duvidou do triunfo, foram sustidas as intenções reformadoras e arrasadoras do resort. E quando Dona Gita morreu, há dois anos, deixou para trás sete pinheiros num banco de areia ao largo de Vilankulos. E há quem diga que, todos os dias, antes de iniciar os seus inúmeros afazeres, Dona Soraya se abeira do limiar do esplêndido terraço do seu lodge, ergue os binóculos para o horizonte marinho e conta, vigilante, como quem reza:
– Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete.

jpv
Vilankulos, março de 2015


3 comentários

Crónicas de África – O Homem do Pau

18d31-cronicas-de-africa-img-2

Crónicas de África – O Homem do Pau

Maputo, 3 de abril de 2015

Uma das irrevogáveis conclusões de quem se muda para o grande continente vermelho é que ‘África desformata-nos’. Tínhamos acabado de conversar sobre isto e não sabíamos ainda que dentro de momentos a nossa adaptabilidade seria de novo posta à prova.

O facto é que África tem uma força e um poder tremendo sobre as pessoas e obriga-as a tornarem-se mais fortes, mais adaptáveis e menos formatadas. Somos forçados a construir as nossas próprias soluções e sabemos que a única coisa absolutamente previsível é a imprevisibilidade.

Quisemos passar meia dúzia de dias junto ao mar, revisitar Vilankulos pareceu uma solução fantástica, sobretudo porque a escassos 30 minutos de barco fica a ilha de Magaruque e o seu recife de coral com milhares de espécies diferentes de peixes. Nadar ali é como entrar num gigantesco aquário de água quente. Ora, o nosso cão, Poloni, é companhia fundamental e por isso mesmo a escolha do alojamento teria de o incluir. Quando finalmente encontrámos um lodge de que gostávamos, dentro do nosso orçamento, e que anunciava ser ‘Pet friendly’, que é como quem diz, amigo dos animais, desconfiámos. Telefonámos. E do outro lado da linha a senhora confirmou, em tom entusiasmado, que podíamos levar o cãozinho, ela gostava muito e também tinha os seus. Ficámos satisfeitos. Pois, isto é África. Deveríamos ter feito mais perguntas. Entretanto, de entre a vasta oferta de quartos, quartinhos, quartões, casas, cabanas e chalets, reparámos que havia uma cuja descrição parecia muito confortável e até tinha dois chuveiros e uma cozinha. Não demos muita importância ao nome, ‘Payota’, porque nestes casos os nomes são simbólicos. Devíamos ter dado.

jp-o-homem-do-pau

A viagem, como sempre, foi fantástica. Como já aqui se escreveu, a estrada nacional 1, em Moçambique, está prenhe de vida. E, como tal, os 730km e as 11 horas de viagem levam-se bem. A primeira paragem foi em Xai-Xai, é uma cidade à saída de Maputo pois dista somente 200km da Capital. Parámos no ‘Pontinha’ e comemos uns deliciosos pregos no pão às 7 da manhã a conselho da Isa. Excelente conselho. Excelentes pregos. Pelo caminho fomos comprando fruta e quando estávamos a chegar ao destino, já percorridos alguns quilómetros em terra e areia, sim, que o Paraíso é maravilhoso, mas os acessos são tramados, e conversávamos sobre estarmos menos formatados e mais resistentes, a tal da resistência foi de novo invocada! À chegada ao lodge Dona Soraya, propriedade da própria Dona Soraya, uma senhora alta, muitíssimo empreendedora e determinada, indefetível contadora de histórias, com ascendência indiana, inglesa, espanhola e alemã, casada com o dinâmico e empreendedor Pieter, um suíço a viver em Moçambique há quase vinte anos, fomos recebidos por uma matilha de sete cães façanhudos, com ar de poucos amigos, rosnadela fácil e o pêlo a eriçar-se no lombo. Quando ela disse que também tinha CÃES, eu sabia que CÃES era plural, mas estava longe de imaginar tanto plural. Ora, o Poloni tem o seu feitio e não se ensaia nada para dar uma rosnadela feroz, mas estou convicto de que o meu cão não sabe contar, é que, até eu que fui para letras, percebi de imediato que eles eram muitos. E não acharam piada nenhuma ao caráter do novo amiguinho e fizeram-se a ele e vai de o morder até eu os conseguir afastar a todos. Mais tarde, ainda fiz uma nova tentativa de aproximação amigável e diplomática, mas nova saraivada de mordidelas, com o Poloni sempre a ajudar à festa com seu rosnanço grosso, fez com que Dona Soraya me desse uma lição. Uma lição e um pau. A lição foi eu não perder tempo a tentar fazer que eles ficassem amigos porque quando os animais não querem é porque não querem. E o pau foi para eu marcar território e mostrar quem manda. ‘E se for preciso dê-lhes com ele!” Não foi preciso. Assim que os sete façanhudos me viram de pau na mão, nunca mais se aproximaram de mim quando eu estava com o Poloni. Ficavam a olhá-lo de longe e a respeitar a minha autoridade que na verdade não era minha, era do pau. Mas há mais. Quando eu passava por eles sem o Poloni e sem o pau vinham abanar-me a cauda e lamber-me as mãos e até foram comigo à praia e guardaram-me as coisas enquanto fui ao mar. Assim, mais ou menos como se eu fosse um deus na terra. Ora, durante aquela semana, quem me via de pau na mão, via-me com um cão junto a mim e sete ao largo. Quem me via sem pau na mão, via-me a ser venerado por sete façanhudos e eriçados muito dóceis cãezinhos!

Ora, Soraya fala tudo. Português, inglês, francês, alemão e espanhol. Algures entre o português e o espanhol, com algum inglesamento, ela agarrou na palavra ‘palhota’ e converteu-a em ‘payota’. Palhota é uma casa de palha e foi isso que alugámos. Confortável, claro. Com os tais dois chuveiros e a cozinha que mal usámos e uma vista ultrajantemente bela a partir do jardim do lodge. Em todo o caso, é uma casa de palha. Ou seja, o contacto com a Mãe Natureza é mesmo muito próximo. Eu fiz amizade com um lagarto que dormia por cima da minha cama, no teto, e juro que não foi preciso ar condicionado porque o ventinho corria à vontade por entre a palha da palhota. Tudo aquilo foi uma imersão em padrões africanos a exigir adaptabilidade e a proporcionar umas férias genuínas de lume aceso onde eu, o Pieter e o Werner discutíamos política, finança, técnicas de acender o lume e resolvíamos os problemas do mundo enquanto grelhávamos uns bifes e umas salsichas de nome impronunciável. Foram uns dias muito bem passados e eu senti-me particularmente bem, assim como uma espécie de chefe da tribo. Afinal de contas quem tinha o pau era eu!

jpv