Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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De Rerum Natura

6deed-jp-04O único princípio realmente genuíno nos seres humanos é o egoísmo.
Até mesmo os gestos altruístas são orientados por um profundo egoísmo. Sobretudo esses.
Nós, humanos, somos visceralmente incapazes de ver além do nosso umbigo. E quando o fazemos, a visão é distorcida pela nossa premência egocêntrica.
Todas as formas de partilha, de companheirismo e solidariedade constituem um exercício racional de hipocrisia.

Na generalidade, não aceitamos isto. Lutamos contra isto e tentamos ser superiores à nossa própria condição. Há nobreza nesse ensaio. Mas só isso. A teia, o vórtex umbilical, é mais forte porque a verdade é que a incomensurável dimensão do universo, os biliões de estrelas e galáxias, não interessam para nada sem que sejam validadas pela singular e ínfima existência de cada um. De cada ser. Humano. A velhinha que se ajuda a atravessar a estrada, o dinheiro que se deposita naquela conta com muitos algarismos que se anunciou na televisão e vai para ajudar crianças carenciadas não se sabe bem onde, um saco de arroz e um pacote de bolacha maria à porta do supermercado, uma esmola num semáforo a um senhor de cadeira de rodas, nada disso é solidariedade. Tudo isso é um enorme pano encharcado de limpar consciências. O ser humano quando ajuda, não ajuda os outros. Ajuda a sua consciência a sobreviver. Ajuda-se a si próprio a convencer-se de que merece a vida que tem, despoja-se de culpas e arrependimentos e respira de alívio até que voltem. As culpas. Os arrependimentos. Nada do que é humano nos é estranho, mas nada, sendo humano ou não, nos rouba à indiferença se não entrar na esfera dos nossos interesses pessoais, na esfera de validações do nosso ego. Egoístas nos confessamos e professamos o egoísmo a cada dia que passa aprisionados na nossa umbilical condição. É terrível, isso. E maravilhoso!

jpv


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Vermelho Direto – Fim de Semana Verde e Branco

66284-red-card-sexyVermelho Direto – Fim de Semana Verde e Branco

Eu não queria escrever sobre bola este fim de semana. E nem é pelo Benfica ter perdido. É porque foi um fim de semana muito intenso e trabalhoso. De tal forma que nem cheguei a ver o meu SLB. Só os resumos. E pelos resumos, para que os meus amigos sportinguistas e portistas não me acusem de não comentar quando perdemos, cão vão algumas notas sobre a futebolada deste fim de semana.

a) Parabéns ao Sporting que é o grande vencedor da jornada. Não só porque ganhou, mas porque foi a única equipa, juntamente com o Rio Ave, que jogou verdadeiramente bem. Os leões têm de agradecer à Briosa que atrasou o Braga. No seu campeonato, o do terceiro lugar, a equipa está agora mais confortável.

b) O Porto demonstrou porque não vai ser campeão. O treinador continua a inventar nos momentos cruciais e é ele próprio quem desestabiliza a equipa. Tem um excelente plantel, mas muito desaproveitado. É um Porto europeu. Boa sorte para essas andanças.

c) O Benfica fez o mais difícil: marcar cedo e adiantar-se no marcador. Depois não jogou mais nada. Muito pouco rendimento numa fase crucial da época. Pode ter sido um bom resultado para despertar a equipa para os últimos 8 jogos do campeonato. Não falo de arbitragem. Apitou, está apitado. Eram os jogadores que deveriam ter feito mais. Não gostei que o Jorge Jesus falasse de arbitragem, como continuo a não gostar do treinador do Porto a fingir que não erra sempre que mete a pata na poça.

Ainda faltam oito jogos, mas… o calendário está muito equilibrado. Eu acredito que, quer o FCP, quer o SLB, ainda vão perder pontos. Curiosamente, este campeonato vai decidir-se muito mais pelas decisões do Lopetegui do que do Jesus. Se o treinador do Benfica não inventar e puser os melhores nos lugares deles e a correr atrás da bola, o treinador do Porto há de inventar sozinho e enterrar a equipa sozinho. Eu não percebo nada de bola, mas onde estava ontem um tal de Oliver? Ah, sim… no banco! Gracias amigo!

Boa semana e bom trabalho.

 


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Pai

Com o meu Pai em Angola!

Sem palavras. Só saudade!

 


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Deus ou o Diabo

fccc1-sexy-red-dressDeus ou o Diabo

Essa cristã dicotomia.
Esse excelso apartar.
Essa terrível chaga
De por cada um no seu lugar.
Esse prémio e esse castigo,
A salvação do justo
E a condenação do iníquo.
Essa opção um dia,
Todos os dias.
Esse se
Pendendo sobre o que farias.

O meu suor na tua cama,
Outro corpo suado que me chama.
O meu corpo sobre o teu
E a sombra de outro
Desenhada no meu.
Uma visita furtiva
E um pouco de amor no regaço.
Palavras incendiadas de prazer
E outro prazer no meu espaço.
O sexo e a tentação.
As horas que passo
Em teus domínios.
E logo me chamando
Outras vozes
E outros desígnios.

Há um céu e um inferno
Um gesto brusco e outro terno.
Há um chegar e um partir.
Há uma fuga de mim
E um perseguir
O sonho de querer-te,
Ser feliz…
Rotina de paixão sem fim.

E há uma oração
Em teu corpo nu e ajoelhado
Traçando com precisão
A distância entre Deus e o Diabo.

jpv


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De Rerum Natura

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De Rerum Natura

Eu não sou aos 47 o homem que queria ser aos 17.
E não há nisso mal algum, nada de errado. Só desilusão. Toda a que foi nascendo de meus gestos e toda aquela imensa desilusão que nasce em mim só por ver os outros. O Homem é o animal que mais me desilude. Aquele de quem espero menos. O meu cão dá-me mais motivos de esperança do que a generalidade dos homens. Creio, firmemente, que a Humanidade está condenada. Não há ninguém de que não tenhamos de nos defender. O Homem move-se, unica e exclusivamente, pelos seus próprios interesses. Mesquinhos e egotistas. E disfarça. E cria máscaras. E engana. E acredita que está bem assim. Há pouca nobreza de caráter e nenhuma pureza de alma. A Humanidade é um lodaçal. É o estrume apodrecido dos seus próprios gestos. A hipocrisia medra, viçosa, adubada pelos jogos de ludibriar e pelas efémeras e ilusórias conquistas. Os vitoriosos são, normalmente, os melhores neste jogo. Aqueles cujo caráter apodreceu há mais tempo. Os derrotados não aceitam as derrotas e consomem-se em retomas de pelejas perdidas e vinganças a quente e a frio e a morno. Para mim, há em cada gesto humano um motivo de suspeição.

Aos 17, eu queria salvar o mundo e queria-o porque era possível. Quanta ingenuidade! O mundo esteve sempre irremediavelmente condenado. Aos 17, eu tinha ideais e planos. Os homens corromperam-nos todos. Envolveram-nos na sua teia de jogos de interesses, serviram-se da minha energia e eu acabei desviando-me do que queria ser. Uma vida desperdiçada. Com crueldade. Passo a passo. Momento a momento. Batalha a batalha. E hoje consigo orgulhar-me do que sou, de algumas coisas que tenho comigo, no meu peito, na minha mente, mas admito, dolorosamente, que me desviei do meu próprio caminho. Eu não sou aos 47 o homem que queria ser aos 17.

jpv


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Poesia das Palavras Indizíveis – Demasiadas Sombras, Senhor Grey.

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Poesia das Palavras Indizíveis

Demasiadas Sombras, Senhor Grey.

Foi na tela.
Ele batendo nela.
Mas poderia ter sido em casa.
Um braço no ar,
Um grito a rasgar o silêncio.
Um gesto que arrasa…
A existência.

Foi na tela.
Ele batendo nela.
Mas poderia ter sido no carro.
Um pé no travão.
Um som de pneus a deslizar.
Um braço no ar.
Uma boca a cuspir sangue.
Uma mulher que baixa os olhos e espera…
Mais.

Foi na tela.
Ele batendo nela.
Mas poderia ter sido no jardim.
Um braço no ar.
Minutos que não chegam ao fim.
O negro do sangue pisado.
Um olho disforme.
Assim…
Ornamentado.

Quando ele levanta o braço
Para ela,
Não interessa se foi ou não
Na tela.
O que se vê,
É ele a bater nela…
Por amor!

Não há erotismo
Nem sexo
Na violência
E no excesso
De uma mulher agredida.

Há só um crime…
Contra a vida!

jpv


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Poesia das Palavras Indizíveis – Pediatria

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Poesia das Palavras Indizíveis

Pediatria

Era negra, a menina.
Era negro, o destino.
Era negro e franzino
O gajo atrás do vidro.

E desfalecia, a menina.
Desfalecia, a vida
No vórtex da indiferença
De uma fila comprida.

Tempo de desespero,
A mãe com a criança
Entre os braços.
Estreitam-se ainda mais
Os já muito estreitados laços.
Um olhar triste.
Um olhar conformado.
Um olhar sem revolta
Na revolta de um olhar molhado.

E uma espera.
Uma noite longa e quente.
Um corpo pequenino e indefeso.
Um homem distante e ausente.

Sem piedade,
A urbe adormece,
Embalando nos seus braços
As teias que a vida tece.
E há dor.
E há vida e luz.
E há destinos de outra gente.
Gente que a gente produz…

E abandona às trevas da morte.

jpv


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O Ofício da Memória – 3

oficio-da-memoria-3-logoO Ofício da Memória – 3 O Livro

Há uma altura das nossas vidas em que tudo parece estar relacionado com a escola. Quase como se ela fosse a fonte de toda a vida, o mar onde todos os rios de afetos vão desaguar. Esta história nasce na escola, vive na escola e adormece com a escola.

Era um miúdo bem disposto. Um tanto inconsciente. A inconsciência própria da idade. E queria poucas coisas naquela altura. Salvar o mundo, amar todas as mulheres e ser poeta. A descoberta das palavras e do poder delas traziam-no encantado. Deixou-se entusiasmar, até porque era de entusiasmos fáceis, com as palavras que a professora escolhera para apresentar aquele livro. Um livro sobre a Liberdade. E lá foi à procura do livro, carteira de cabedal no bolso com o B.I., uma nota de vinte escudos, um bilhete de elétrico e o cartão de leitor da Biblioteca Municipal. Como sempre fazia, passou as mãos no imenso balcão de madeira maciça a sentir-lhe o toque e o odor a lenha e a livros. Estendeu o cartão de leitor e o papelinho da requisição onde já ia escrita a quota do livro para que pudesse ser encontrado com facilidade. Muito requisitado devia ser o livro porque a senhora demorou poucos segundos a trazê-lo. Era pequeno, pintado de negro como a vida das pessoas nele, uma estrela de David em rosa forte a ocupar o centro da capa, o título e o autor. “O Judeu”. Bernardo Santareno.

Ainda bem que leu o livro todo. Se não o fizesse, esta história não teria acontecido. Gostava de ler na sala da biblioteca. Fazia-o sentir-se importante, como se tivesse acesso a um clube restrito de privilegiados, e gostava da sensação de ler um livro rodeado de livros antigos, amarelecidos pelo tempo e desgastados pelo uso. Até que foi surpreendido. Ia algures pelo meio do livro, e sempre há aquelas páginas que ficam em branco porque acabou um capítulo ou, neste caso, uma cena, um ato, e nessa página em branco alguém tinha escrito um poema. Ocupava toda a página. Estava escrito à mão, com uma caligrafia ímpar, ornada de voltas retorcidas a começar e a acabar as letras e, sendo complexa, havia nessa complexidade certa harmonia. Era belíssima.

Preocupou-se. Era um texto muito bem construído, mas perturbante. Falava do aprisionamento da alma, de lobos e unhas sangrentas e anunciava um fim. Um suicídio. Será que acontecera? Teria aquela alma perturbada entregado o livro à mesma senhora que lho dera a ele e partido a cumprir o destino que escrevera? Custou-lhe separar-se daquele texto. Não conseguiu. Decidiu fazer uma requisição domiciliária e saiu da biblioteca com “O Judeu” debaixo do braço. Versão aumentada com um poema que obliterara a luta e o destino do António José da Silva.

Trabalho de Grupo

Desde que me conheço, sei, por experiência, que tudo, ou quase tudo, seja bom ou mau, é culpa dos professores. Enfim, substitua-se culpa por responsabilidade e a versão fica mais intrigante e… polida. A professora queria um trabalho de grupo sobre “O Judeu” de Bernardo Santareno e teve a impertinência de pré-selecionar os grupos de trabalho. Como sempre, o moço de que aqui se fala estava entusiasmado e queria saber quem lhe calharia em sortes. Eram grupos de três ou quatro que começavam a dispor-se na sala com o burburinho animado de quem se prepara para trabalhar em conjunto. Foi isto no tempo em que uma aula com trabalho de grupo era diferente. Para seu espanto, a professora distribuiu-os todos até que restaram só eles. Mais ninguém. Só os dois. Ele nem tinha bem a certeza de que dois poderia ser um grupo. Um ajuntamento não era, por certo, desde que Salazar definira que para haver um eram precisas três ou mais pessoas. Era uma moça discreta. Participava pouco. Preferia o silêncio das palavras. Parecia ter uma maturidade superior à generalidade dos colegas. O cabelo farto a emoldurar a face oblonga donde emergiam uns olhos redondos e enormes, marejados de curiosidade e, descobriria mais tarde, atrevimento. Um semblante triste de onde despontava de quando em vez a luz de um sorriso. Não reparou de imediato noutros atributos. Seria ela a acordá-lo para eles. Chamava-se C. Começaram por reler o livro, pelo menos, as partes mais importantes. Ele trazia consigo há vários dias o exemplar da biblioteca e o seu misterioso poema de sangue e morte anunciada. Ela tinha fotocópias. Depois, discutiram as ideias. A rapariga inteligente e sensível por trás da máscara da colega tímida e contida começou a revelar-se. Era contundente nas palavras e agarrava-se às suas opiniões como se as não quisesse largar. E debateram um debate aceso e entusiasmado, discordante e concordante, e acertaram no caminho a dar ao trabalho. Quando decidiram escrever, ela puxou de uma caneta, começou a tomar notas e ele fez o que  nunca fizera antes na sua vida de estudante. Pediu para ir à casa de banho.

Revelações

Enquanto lavava a cara com água fria, vários pensamentos lhe cruzavam e baralhavam a mente. Seria impressão sua ou, efetivamente, a caligrafia da C era a do poema com lobos e desespero nas páginas intermédias de “O Judeu”? Se fosse, o que fazer com essa informação? Como agir? Dizer-lhe? Não lhe dizer? E, por fim, o que mais o perturbava era o significado daquela imensa coincidência. Tantas escolas na cidade, tantos livros na bilbioteca e nas livrarias, tantas turmas naquela escola, tantos alunos naquela turma… tinham de ser dois leitores da mesma biblioteca a quem calhou o mesmo exemplar, que andavam na mesma escola, ficaram na mesma turma e foram unidos pela professora num inusitado grupo de dois! Dois e um livro. Dois e um poema. Talvez, afinal de contas, fossem um ajuntamento.

-Essa letra é tua, certo? – Hã?! Sim, é. – Fazes sempre a mesma letra? – Sim faço. Avançamos nisto? – Claro. Mas preciso mostrar-te uma coisa. Foste tu que escreveste isto? – Fui. Estava num dia mau. – Isto é muito bom. Escreves muito bem. – Achas? – Tenho a certeza. – Eu não acho. – É triste… – Pois… – Pensaste mesmo… – Estou sempre a pensar. Não é que o vá fazer, mas penso nisso. A escrita é um desabafo.

O trabalho fez-se. Apresentou-se, entregou-se, não me lembro da nota que tivemos nele. Lembro-me do olhar dela, sorrindo na minha direção enquanto eu o apresentava. E lembro-me de que a professora também sorria. Lembro-me que continuámos a conversar e a debater ideias. Lembro-me de que gastávamos todo o tempo livre nisso. E lembro-me, neste delicioso ofício da memória, de que não acordei para ela de outra forma. Foi ela que fez a gentileza de despertar-me. À bruta! Talvez por eu ter o sono pesado.

O A e a R andavam a acercar-se um do outro. Devagarinho. E convidaram-me para um baile temático numa paróquia da cidade. Perdoai-nos, Senhor, se for pecado, o que estamos prestes a fazer esta noite. Eu fui. E quando lá cheguei, encontrei a C, sentada a um canto, mais entediada que as coisas entediadas. Soube depois que ela estava ali para fazer o jeito à avó. Assim que pude, despachei o A e a R, ou foram eles que me despacharam a mim, já não sei, e fui ter com ela. Pedi-lhe para dançar. Era o que se fazia naquele tempo, mas em abono da verdade, nenhum de nós fazia muita justiça ao verbo. Estávamos às voltas na pista, agarrados um ao outro, mais conversando do que dançando, quando ela perguntou sem mais avisos nem rodeios:

– JP, tu és potente?

O moço ficou ali parado, quase engasgado, engolindo em seco e pensando se a pergunta teria alguma coisa a ver com carros. Era óbvio que não tinha. Naquele caso, o motor era outro. E sentiu-se dividido entre a obrigatoriedade máscula de dizer que sim e a honestidade de não saber a resposta para aquela pergunta. Sabia lá se era potente! Sabia lá o que era ser potente! Nunca ninguém se queixara, mas não sabia, sequer, que isso se media ou que a questão podia colocar-se assim. E também não sabia se nunca ninguém se queixara por satisfação ou pudor crítico. E, isto lembro com precisão, a resposta saiu-lhe o mais honesta possível sem que, contudo, criasse barreiras ao que parecia anunciar-se.

– Quer dizer, não sou nenhum super-homem, mas cumpro a minha parte. – Está bem, mas quantas?

Ele refugiara-se numa formulação genérica, à laia de um descritor impreciso de boas práticas, mas ela avançava pelos objetivos específicos dentro com a mania da mensurabilidade. Não ficou sem resposta.

– Sei lá, duas, três… também depende da outra pessoa.

Nunca soube o que a C pensou da resposta, mas lembro com clareza o que ela disse a seguir:

– Vamos embora daqui? – Vamos.

E não fomos para longe. Os beijos apaixonados e as carícias voluptuosas começaram no jardim atrás da igreja, prolongaram-se calçada acima e vieram a fazer-se mais confortáveis no que restava de um mosteiro abandonado. Foi toda uma descoberta, todo um desvendar, toda uma volúpia e uma sedução. Não havia dúvidas, aquela pessoa desfolhava-o a uma velocidade impressionante e ensinava-o a ser melhor do que sabia. E ele fez-se generoso na entrega e na investidura e perdeu o conto às contas que planeara fazer.

– Amanhã é domingo, a minha mãe não está. Queres ir passar a tarde lá a casa?

Ele andava há muito a preparar-se para o Académica-Sporting do dia seguinte e homem que é adolescente não falta a esses compromissos. Demorou um segundo a decidir-se.

– Quero. Claro que sim.

Quando se despediram, ele voltou ao salão de baile, encontrou o A, estendeu-lhe o cartão de sócio da Briosa e disse, Toma, vai tu ver o jogo! Então, já não vais? Não, surgiu uma coisa mais interessante. O A era parecido na fisionomia consigo e tinha-lhe pedido o cartão de sócio para ir ver o jogo sem pagar. Ficou com um sorriso nos lábios. Não sei o resultado. Sei que disse em casa que ia ao jogo, não porque costumasse mentir, só para evitar perguntas, e quando regressei dos meus jogos com a C perguntei o resultado final a alguém na rua não fosse a pergunta ser-me atirada em casa…

Foi uma das mais memoráveis tardes da minha vida. Todo um dar, todo um receber, toda uma diversão e um despudor. Ter o tempo todo do mundo para descobrir aquele mundo todo. Aconteceram outras tardes, manhãs, noites, conforme a oportunidade se nos apresentava. Às vezes conversávamos, vasculhávamos as gavetas da mãe da C à procura de anticoncetivos, quaisquer que fossem, e usávamos tudo. E olhávamo-nos nos olhos. E ríamo-nos. Lembro-me das manhãs tórridas de terça-feira, cada segundo contava, cada loucura parecia querer estender-se para além do tempo possível. E eu ficava até ao limite dos segundos necessários para estar a horas na aula de Grego, pelas catorze. E chegava suado dela e do elétrico, atrasado, claro, e sentava-me e cheirava a prazer e a sexo e a minha mente não entrava comigo. O professor olhava-me curioso assim como quem se pergunta, Mas donde é que este saiu? E só eu sabia de onde tinha saído… e era para lá que queria regressar o quanto antes.

Nunca poderei agradecer o suficiente à C por aquele abrir de olhos, por aquela passagem do missionarismo à descoberta plena do corpo e do prazer. Um dia levei comigo um objeto dela. Era um skate. Meses mais tarde devolvi-lho. Beijámo-nos. Dissemos adeus como tínhamos dito olá. Vi a C na faculdade. Poucas vezes. Depois disso, nunca mais. E, contudo, a memória desses dias une para sempre o menino à rapariga dos olhos grandes.

A Troca

Chegou o tempo da C fazer anos. Claro que queria dar-lhe um presente bonito e com significado. Fazíamos isso, naquele tempo, construíamos os presentes, mais do que os comprávamos. Fui à Livraria 115, comprei “O Judeu” de Bernardo Santareno, escrevi uma carta à Biblioteca Municipal dizendo que pretendia trocar um livro velho por um novo e prontifiquei-me a oferecer o novo. A troca foi aceite com um obrigado e o poema voltou à sua origem, à sua criadora. Reuniu-se com a poetisa. Ela desembrulhou o livro, fez um sorriso, agradeceu-me e beijou-me nos lábios. Às vezes, tenho a sensação de ainda ver esse sorriso a esboçar-se sob o olhar redondo e grande onde uma lágrima viera espreitar. Às vezes, neste complexo e conturbado ofício da memória, já não sei bem o que aconteceu e o que fui eu que inventei, mas sei sempre que a memória da C é quente e acolhedora e repleta de gratidão e revelações.

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O Corpo do Jovem

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Nesse sinuoso caminho,
Trilhado com dor e sangue
Jaz morto e frio,
O corpo do jovem, exangue.
Tombou lá longe, sozinho.
Não tinha nada de seu,
De seu não tinha nada.
Só a alma envolta no breu,
E a carne, a golpes, dilacerada.
E vive exultante em meu peito,
Neste fogo de paixão que me consome.
Esse menino que morreu lá longe,
Viveu e fez-se homem.
Por cada golpe
E por cada ferida que dói,
Morre mais o menino
E cresce, em mim, o herói.

E tenho esta visão,
Este conforto de assistir
À grande revolução
Que é ver-te partir.

 jpv


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Crónicas de África – Miúdos de Rua

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Crónicas de África – Miúdos de Rua

Maputo, 1 de março de 2015

Em Maputo, cada miúdo de rua é uma surpresa. Surpresas de sorrir, de chorar, de sofrer, de entender, de não perceber nada. Conto hoje a história de três miúdos de rua que se cruzaram comigo.

JQ

Quando conheci o J, ele ainda era um adolescente. Tinha dezassete anos e vendia capulanas e panos com animais selvagens pintados à mão para se pendurarem numa parede ou colocarem numa mesa, numa cama. Corria ao lado dos carros quando o trânsito estava lento e dizia às pessoas que elas precisavam muito do que ele tinha para vender, até porque ele só tinha coisas boas para vender. Gostava de regatear e quando o preço chegava ao limite do que ele estava autorizado a baixar, ligava para o boss dele e ficávamos a negociar os três, sendo ele o intermediário e tradutor das conversas. Comprei-lhe diversos panos por aquela altura, em dias diferentes, e por isso nos marcámos. Não lhe esqueci a face, nem ele a minha. Estranhou, um dia, quando lhe perguntei o nome e quis saber o meu de volta. Só vim a saber que ele não o esquecera quase três anos depois, quando nos reencontrámos. Eu, ainda professor, mas muito mais africano. Ele já deixara de passar os dias deitado na areia ou a correr ao lado dos carros. Agora, era segurança. Eu entrava para um restaurante, quando senti uma mão tocar-me no ombro, virei-me e lá estava o sorriso inconfundível do J.

– Patrão João, lembra-se de mim?
– Claro! Tu és o J.
– Lembra!

Abriu mais o sorriso e deu-me um aperto de mão à moçambicano. Tinha sido pai há somente quinze dias, mas a criança falecera há três noites atrás. Mas sorriu ao ver-me porque rever uma pessoa que se lembra do nosso nome é uma coisa boa mesmo quando a alma anda triste.

– A criança caiu bem. Nasceu lá no Hospital Central e nos mandaram para casa. Estava a comer bem. Uma noite, a minha esposa levantou-se para ir na casa de banho e ele já não se mexia. Levámos para o hospital. Já não voltou.

As ruas de Maputo fazem homens de muitas maneiras. Há os que casam e vão ser pais e há os que ficam órfãos dos seus filhos e nos sorriem como se o sol tivesse acabado de nascer.

FR

Em Maputo, um trabalho não precisa estar reconhecido como profissão para ser exercido e ter uma remuneração. Quando alguém se consegue fazer útil por algum meio, tem um trabalho e faz-se pagar por isso. Quando conheci o F, ele trabalhava no mercado. Acartava os sacos de compras das pessoas. Tinha onze anos. Hoje, tem catorze e ainda faz o mesmo trabalho. Ao fim de semana. O Mercado Central de Maputo está repleto destes miúdos que esperam pelas pessoas e se oferecem para andar com os sacos das compras. Seguem os clientes do mercado aliviando-os do peso e quando as compras terminam, acompanham as pessoas ao carro e esperam por uma moeda. A maioria destes miúdos é atrevida, persistente, e a sua vida resume-se a pouco mais do que ao dia a dia no mercado. O F afeiçoou-se à senhora e ao cãozinho e pergunta sempre por eles, mesmo sabendo que é comigo, e só comigo, que trabalha. E informou desde cedo que ia à escola. Interessei-me por ele, entre outras coisas, por este pormenor de ir à escola.

– Então estás aqui todos os dias?
– Não. Só venho ao fim de semana. Durante a semana, ando na escola.
– Estás em que classe?
– Quase a acabar a sétima.

Com o tempo e as conversas enquanto ele me ajudava com os sacos, o F tornou-se em algo mais do que o miúdo que me acarta os sacos. De resto, eu gosto de acartar os meus sacos. Partilho-os com ele. Ele trabalha ao fim de semana para ajudar a pagar os estudos. Começou por trazer-me uma foto com a farda da escola, depois o documento com as notas da oitava classe, e este ano trouxe-me toda a documentação da matrícula na nona. Guardou na senhora que vende ananás para me mostrar. Quando chegou ao carro, encontrou um saco com material escolar que eu lhe tinha levado. O F é um trabalhador estudante. Aos catorze anos. Respeito isso. Há muito que não lhe dou moedas. Dou-lhe notas e material escolar. E ele acarta-me os sacos, pergunta pela senhora e pelo cão e vai-me trazendo as folhas com as notas dos exames.

Nas ruas de Maputo, também há marginais da marginalidade. E esperança. E resiliência.

JL

Não conheço o J de lado nenhum. Não sei quem seja. Só o vi uma vez. O suficiente para lhe perguntar o nome e trazê-lo para esta crónica. Impressionou-me e pronto.

Tinha acabado de sair do supermercado, levei o carrinho das compras, que estava praticamente vazio, meia dúzia de coisas, e coloquei entre elas a minha caneta e a minha agenda, presas uma à outra. Abri o porta-bagagens, coloquei as compras nele e fui para o lugar do condutor. Já estava a sentar-me quando percebi que me tinha esquecido da agenda no carrinho das compras. Voltei atrás, mas não cheguei a dar dois passos. Ele vinha na minha direção com a agenda e a caneta na mão. O miúdo estava aterrado, o seu rosto espelhava medo. Vi que ele quis, a todo o custo, evitar um equívoco, uma acusação. Segurou a mão direita com a esquerda, estendeu-me a agenda e baixou a cabeça fitando o chão. Não foi capaz de me encarar.

– Obrigado.
– De nada.
– Como te chamas?
– J.
– Tens quantos anos?
– Onze.
– Fizeste uma boa ação, J. Obrigado.

A última frase era verdade, mas a verdade é que a disse mais para o tranquilizar do que outra coisa qualquer.

– Andas na escola?
– Ando.

A pergunta e a resposta era inúteis porque ele estava fardado. Num espaço de poucos segundos, enquanto ele se afastava, pensei que não devia dar-lhe nada porque o meu pai me ensinou que das boas ações não devemos esperar recompensa. E, no mesmo instante, pensei que estava em Maputo, que as coordenadas eram diferentes. Não tinha ali nenhum material escolar, peguei numa nota e chamei-o:

– J!

Ele virou-se, dirigiu-se para mim, quando levantei a nota, ele benzeu-se, estendeu a mão direita que segurou com a esquerda e colocou os olhos no chão.

– Fizeste uma boa ação. Compra uma coisa para ti.
– Obrigado.

Tive a sensação de que ele nem vira a nota e segundos depois a sensação confirmou-se. O J atravessou as quatro faixas da estrada e já estava do outro lado da rua quando levou a mão ao bolso e tirou a nota. Viu qual era. Voltou a guardá-la, benzeu-se de novo e fez-se ao caminho.

Nas ruas de Maputo, também crescem os valores e a fé. E o medo!

jpv

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Nota 1. O aperto de mão moçambicano consiste num movimento em três momentos. Mãos na horizontal, na vertical e de volta à horizontal. É uma senha que faz parte dos tempos da libertação. Os três movimentos correspondem a três valores. Liberdade. Igualdade. Fraternidade. Tenho reparado que a maioria dos moçambicanos já não sabe o seu significado, mas este aperto de mão é muito comum.

Nota 2. Segurar a mão direita com a esquerda é um gesto de respeito e humildade. A mão esquerda segura o pulso da mão direita mostrando à outra pessoa que aquilo que vai ser dado ou recebido está seguro.