Crónicas de África – A Boleia
Dar boleias não é prudente. Nem aqui, nem em qualquer outro lugar. Este homem anunciava histórias interessantes. Era uma carrinha branca, agastada com a idade, a resmungar quilómetros e a revoltar-se contra a falta de combustível. E, junto a ela, um senhor de cabelos brancos, ar humilde e respeitável, um pequeno jerrican improvisado de uma lata de óleo do motor, o braço a fazer sinal, não como quem manda parar mas como quem pede ajuda.
E eu parei. Abri o vidro do lado dele:
– Então, há azar?
– Sim, pode chamar-se azar. Fiquei sem combustível. Ainda pensei que ela aguentasse, mas ela se negou. Não quer ir mais. Há um posto de combustível junto ao Game, não precisa levar-me até lá, posso apanhar uma ligação.
– Não há necessidade disso. Eu passo à frente do Game, deixo-o lá.
– Muito obrigado.
– Não tem de quê.
– Eu tenho tempo, sabe. Saí cedo de casa. Sou reformado do Estado há 4 anos.
– Posso saber a sua idade?
– Tenho 65.
– É um homem novo.
– Ainda sou novo, mas já fui mais novo. Sabe, às vezes bebo umas…
– Desde que não seja em excesso…
– Claro. O excesso faz-nos perder a responsabilidade. Eu bebo só o suficiente para abrir um sorriso. Por vezes, é preciso abrir um sorriso.
– E gosta da vida de reformado?
– Claro. As reformas do Estado são pobres, sabe, mas a vida privada tem muito valor. Não é incómodo ir até ao Game?
– Não, nada disso. Eu trabalho na Escola Portuguesa.
– É professor?
– Sou.
– Eu fui aluno, sabe. Fiz a sétima classe do Curso Industrial. Naquele tempo não havia energia. Estudávamos à luz das velas. A energia traz das suas. Quando estudávamos à luz das velas não chumbávamos. Quando veio a energia começámos a chumbar.
– Distrações…
– É… mas hoje ainda é pior. Eu vejo pelos meus netos. Na hora de estudar estão ali a ver a telenovela quando deviam estudar.
– Os tempos mudam, sabe.
– Mas não mudam sempre bem. Primeiro veio a liberdade, depois houve ali 10 anos que estivemos morrendo um bocadinho e depois levantámos a cabeça. É, nem tudo muda bem. No meu tempo não tínhamos dinheiro de lanche, mas nos divertíamos e brincávamos e poupávamos para ter um dinheirinho de lanche. Hoje, pai que não dá dinheiro de lanche parece que é criminoso. Isso está mal.
– Chegámos, senhor…
– Sibambo. Era para ter o nome do revolucionário, mas depois mudaram para Sibambo. Acho que tiveram medo.
– Tenha um bom dia senhor Sibambo.
– Muito obrigado, senhor professor.
Andamos nós gastando tempo à procura das causas do insucesso e elas aí estão. Energia e seus derivados. O senhor tinha uma dicção perfeita, falava pausadamente e não tinha dúvidas em relação às suas reflexões. Pensava e estatuía as ideias com as palavras serenas e firmes que encontrava. E nós podemos discorrer das dicotomias do empirismo e conhecimento construído, mas o certo é que o conhecimento do senhor Sibambo também é construído. Construído com as suas experiências e convicções, estudado à luz da vela, posto em prática ao serviço do Estado ao longo de 35 anos. Uma boleia para ele. Uma aula para mim.
jpv
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*Game: superfície comercial em Maputo, mais precisamente na Costa do Sol, ao longo da Marginal.
*Sibambo: nome semelhante ao do herói moçambicano Eduardo Chivambo Mondlane.
