Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Crónicas de Maledicência – Um Tendão Pomposo

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Crónicas de Maledicência – Um Tendão Pomposo

Ainda o Mundial de Futebol 2014 não começou e Portugal, o país verdadeiro e profundo, já tem razões para estar agradecido ao evento e a alguns dos seus intervenientes. O futebol, por ser um desporto de massas, signifique isso o que significar e, por certo, significa muitas coisas, pode ser extremamente didático.

Até aqui, o português comum tinha joelhos. Depois da lesão de Cristiano Ronaldo, sabe que a essência do joelho é a rótula e sabe também que a rótula tem tendões que servem para qualquer coisa, nomeadamente, correr e dar pontapés na bola. Mas a didática da bola vai muito mais longe. Até aqui levávamos pantufadas nos joelhos, cacetadas, sarrafadas e, derivado das mesmas, ficávamos coxos. Agora já ninguém fica coxo. Os portugueses, por via de seu amado CR7, ganharam o direito a subir de meros coxos a pacientes que sofrem de inflamação do tendão rotuliano. Eu, que tenho vinte e quatro anos de serviço docente esforçado e brioso, nunca consegui ensinar uma tão complexa e extensa sequência vocabular em tão pouco tempo a tanta gente ao mesmo tempo. O futebol ultrapassa-nos a todos.

E isto tem as suas consequências positivas. Agora, o velhote vai ao médico e ai do dótôr que venha para cá falar do romático, ou da ciática, ou da artrose! Isso é vocabulário simplório e comum. Os velhos, agora, vão reclamar o nome apropriado no relatório do diagnóstico: inflamação do tendão rotuliano. Deve ser um tendão pomposo uma vez que lhe deram um nome pomposo que faz lembrar os nomes dos imperadores romanos e daqueles tipos de túnica branca que iam ao senado afacalhar-se uns aos outros depois de noites em loucas orgias. E quando o dótôr perguntar se a pessoa sabe do que sofre e qual a gravidade da doença, o paciente saca do baú da sapiência faustamente recheado em longos telejornais e mai-los programas da especialidade e os diretos e ainda os tipos em cima das motas atrás do autocarro e esfrega nas ventas do médico com todas as definições, sintomas, implicações e terapias relativas e apropriadas ao tratamento.

Isto é assim, caro leitor, investem-se milhões na Educação, em escolas, em vencimentos de docentes, em médicos, em publicidade institucional, em centros de saúde e a coisa resulta em muito pouco. Dinheiro mal gasto, está bom de ver! Já, por seu lado, o Cristiano Ronaldo e os amigos vão ao Brasil dar uns pontapés na bola e outros tantos na gramática e vai daí a população fica genericamente mais douta seja ao nível da Língua, seja ao nível dessa inesgotável ciência exata que parece ser a Medicina.

De resto, isto está tudo cruzado. Bem vistas as coisas, dá para perceber de que lado está a sabedoria. Por exemplo, tecnicamente, Cristiano Ronaldo e os outros vinte e dois juntamente com seu garboso treinador percebem mais da Constituição da República Portuguesa do que o Governo. E as contas são fáceis de fazer. Já alguém ouviu falar do Tribunal Constitucional ter chumbado o que quer que fosse do CR7 e seus amigos? Ah, pois não! Mas a oposição também não se fica a rir. Andava tudo numa lufa-lufa a ver se o Costa ganhava ao Seguro ou se era o Seguro que ganhava ao Costa, se iam a diretas ou se se ficavam pelas indiretas e vai daí o CR7 lesiona-se e os outros dois passam para horários menos nobres, deixam de abrir os serviços noticiosos e ficam entregues a uns especialistas duvidosos que falam depois das 22h. Tecnicamente, o Cristiano nem precisava de apresentar oitenta medidas. Bastava uma meia dúzia e todo o Portugal saberia do que se tratava e toda a Assembleia da República se curvaria às mesmas.

Isto é assim. Há o país real. E há aquele país para onde a gente foge sempre nos podemos escapulir ao país real. Ora, nesse outro país, há um imenso relvado, duas balizas, uma bola, vinte e dois tipos suados com tatuagens e cortes de cabelo criativos e não há lá coxos, há atletas que sofrem de inflamação do tendão rotuliano. E é para lá que emigramos todos. Sempre que podemos. E é por isso que dentro de quarenta e oito horas o país real, quer queira, quer não, vai entrar em auto gestão. Mai nada.

Tenho dito!
jpv


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Um País

Portugal Ilha de MoçambiqueUm País

Um marco na estrada,
Um gesto que se faz.
Uma palavra que se diz
E ergue-se o meu país.
É um barco no mar,
Uma varina a chorar.
É uma sopa e o conduto
E uma velhinha vestida de luto.
É um homem que parte.
É a vertigem da arte.
É um pão sobre a mesa,
É mais dúvida que certeza.
É uma capela e um sino,
Uma bandeira e um hino.

E é a saudade!

É uma guitarra a chorar um fado,
Um povo trabalhador e honrado.
E é a distância.
O passo certo da errância
E da solidão.

O meu país é uma canção.

Nascem na pena de um poeta
Versos de esperança e futuro.
Mas o horizonte e a meta
Estão para lá do muro.
A semente secou e morreu
Num ventre prenhe de vida.
O meu país pereceu
Às mãos de uma arma fingida.

Houve homens altos
Que ergueram uma capela no Índico
E uma fortaleza perdida.
Houve homens que foram lá longe
Onde começa o mundo,
No outro extremo desse poço sem fundo
De palavras e dizeres.
Houve homens que levantaram âncoras
De morte e suor.
E também houve feitos épicos
E vorazes epopeias.

O meu país é um deserto de ideias!

Passa uma criança com fome
E um doente abandonado,
Passa um velho triste
E um político num fato engomado.
Passa um avião
Rasando as casas da cidade,
Lá dentro vai a desilusão
Num corpo sem idade.
Passa um povo traído
E não há quem o console,
Vive entregue ao capricho sinuoso
De uma bola de futebol.
Vai desfilando angústia e desespero
Na passadeira da história.

Meu país é um povo sem memória!

E de manhã, ao acordar,
Sente-se um perfume no ar,
Um vento de insuspeita mudança,
Um grasnar na praia,
Um rumor de sentença,
Uma música na rádio,
Uma correria de rua,
Uma bandeira desfraldada,
Uma mulher semi-nua.
Um gritar entusiasmado,
Uma cidade em alvoroço,
Um refrão mal rimado
Em verbo curto e grosso.
Um punho no ar,
Um cartaz na mão.

Portugal é um país
Em constante revolução!

jpv


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