Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."

Crónicas de África – Coisas do Quotidiano (1)

7 comentários

Crónicas de África – Coisas do Quotidiano (1)

Maputo, 6 de abril de 2014

Acontecem-me, por vezes, alguns pormenores no dia-a-dia que penso dariam uma “Crónica de África”, mas depois, olhando bem, não há assunto para tanto. Decidi, assim, colecioná-los e, em tendo três ou quatro, faço uma “Crónica de África” intitulada “Coisas do Quotidiano”.

É este o caso. São alguns pormenores da interessante e insubstituível vida em África com Moçambique como pano de fundo o que torna tudo ainda mais interessante. Deixemo-nos de demoras e vamos a histórias.

Os Chinelos
Num fim-de-semana próximo, fomos dar um passeio de domingo à tarde. Daqueles em que se lava o carro no rio e se come frango assado na beira da estrada. Revisitámos Boane e a ponte onde o rio fornece a água para o Car-Wash mais ambientalista do Universo. Baldes de água atirados por cima dos carros e mãos laboriosas a lavá-los. Acontece que o caudal do rio tinha subido imenso e não foi possível lavar o carro com a mesma calma. Em vez disso, o Marco, os miúdos e mais uma carrada de pequenitos que já por ali estavam, resolveram atirar-se ao rio e atravessar a ponte… por baixo! Empurrados pela corrente forte, apanhavam boleia da água e já do outro lado da ponte, tinham de nadar para a margem. Exatamente na margem, presenciei um pormenor de partilha que me comoveu. As pessoas de Moçambique são boas. São especiais. São especialmente boas. Eram quatro meninas. De mãos dadas como é comum aqui. Ora, pelas minhas contas, quatro meninas dá oito pernas e oito pés. Mas só havia dois pares de chinelos, quatro unidades ao todo. E elas vinham chegando à margem do rio para ver a rapaziada nadar cada uma com um pé calçado e outro descalço. O sentido de posse cedeu espaço ao de partilha. É verdade que nenhuma estava completamente calçada, mas é verdade, também, que nenhuma estava completamente descalça!

O Ourives
A Paula queria uvas. Parei numa esquina, junto a um tchova carregado de fruta e com umas uvas lindas. E fui comprar. Quando regressava, reparei que, à sombra da acácia imensa, estava um ourives de rua, sentado num banco, com uma mesinha pequenina à frente, alicates e chaves daquelas pequeninas. E agradeci a Deus a providência de o ter colocado ali naquele dia. A verdade é que o meu relógio de pulso andava no pulso, mas parado. A pilha estava esgotada. Ora, o ourives tinha uma invejável fileirinha de pilhas de tamanhos diversos em cima da mesa.
– Tens pilha para este?
– Tenho, boss.
– Sabes mudar?
– Sei, boss.
– Muda lá.
Ele abriu o relógio em menos de três tempos. Tirou uma pilha de um pacotezinho que estava fechado a certificar que era nova e assim que a colocou o relógio começou a trabalhar. Depois vinha a última tarefa: fechar o relógio. Ele fez força até suar, rodou-o nas mãos diversas vezes, pediu a um amigo que estava encostado à árvore e os dois, em conjunto, apertaram o relógio à força toda, mas ele nada, nem sinais de fechar-se, a tampinha continuava solta. Eu fiquei à espera confiando que ele acabaria por conseguir e decidi não interferir com o trabalho dele, mas tive de o fazer quando o vi segurar a tampinha com muito cuidado e levar o relógio à boca. Ele ia fechá-lo à dentada! A visão do visor partido na boca dele não me agradou, como não me agradou ficar com o relógio aberto e por isso interrompi.
– Não, não, não. Não faças isso. Pára, pára… ouve lá, então tu abres o relógio e agora não és capaz de o fechar? Se não eras capaz de o fechar, não o tinhas aberto.
– Ó boss, mas a culpa não é minha!
– Ai não? Então é de quem?
– O teu relógio é que está a complicar!
– O meu relógio? Um relógio é só um relógio, não complica.
– Pois boss, mas esses aí, eu mudei e eles não complicaram. Este é que está a complicar.
– Então agora a culpa é do relógio?
– É!
Ouvi uma gargalhada à minha volta que queria dizer ficaste com o relógio aberto e ainda levas as culpas para casa. Resmunguei mais umas coisas com ele, trouxe o culpado para casa que está a cumprir castigo, todo esventrado, em cima da mesa de cabeceira. Com Deus, ajusto contas mais tarde!

A Foto
Há umas semanas para cá, andamos à procura de casa. Estamos bem instalados e gostamos da zona, a casa é muito boa e o senhorio fantástico. Mas falta um quintalinho. Coisas de quem não sabe estar bem. Então, compramos o jornal, espreitamos os anúncios, vamos à Internet, vemos a oferta e, ocasionalmente, telefonamos a um agente e vamos ver uma casa. Nos meus contactos, já tenho alguns vinte agentes e já devo ter visitado dois terços das casas disponíveis em Maputo. Começo a conhecer bem o mercado e as oscilações de preços. Mas há sempre espaço para uma surpresa. Ou não estivéssemos em África onde todos os padrões e conceitos mudam.
Vimos uma casa num anúncio na Internet. A foto mostrava uma casinha muito arranjadinha, com um quintalinho simpático sendo o único senão o aparente estado degradado do telhado. O anúncio era do próprio dia. Decidi telefonar e a conversa foi mais ou menos assim:
– Bom dia, como está?
– Estou bem e você do seu lado aí?
– Estou bem, Graças a Deus. Olhe, este anúncio duma geminada tipo 3 no bairro central é seu?
– É.
– E a casa precisa de obras ou está pronta a entrar?
– Pronta a entrar. Não precisa obras nenhumas, só as que forem do gosto do cliente.
– Pois, correto, mas olhe que aqui na foto o telhado parece em mau estado.
– Ahhh… essa foto não é da casa!
– Como? Então essa foto aqui não é da casa que está no anúncio?
– Não.
– Então para que é que colocou aqui essa foto?
– Para ilustrar.
– Para ilustrar? Mas a foto não é da casa!
– Mas é parecida…
– Ah, é uma casa lá perto?
– Não. Eu não sei que casa é essa, eu tirei a foto da Internet!
E pronto… fiquei… a pensar que o conceito de anunciar é diferente, tal como o conceito de ilustrar. Não. Não fui ver a casa. Quando as coisas começam assim, é melhor não dar corda ao destino!

O Guarda
Temos um guarda novo no prédio. Um dos outros dois foi despedido e havia que substitui-lo. Quando me apresentaram o A. fiquei surpreendido. Foi por causa de homens assim, que se inventaram expressões como “grande caparro” ou “cabedal do caraças”. O moço, que não tem uma pinga de maldade em todo aquele corpo, cresce por aí acima até lá para o metro e noventa e tem uma envergadura que há de ser para aí de metro e meio de ombro a ombro. É moço aí para os seus cem quilitos com a particularidade de se perceber que não há ali uma gordurinha, sequer. Aquilo hão ser músculos rijinhos como o ferro. Apresentaram-mo, cumprimentei-o, desejei-lhe bom trabalho e subi para cima que para baixo não havia caminho. Agarrei na trela do cão, um cocker spaniel minúsculo, a rondar os dez quilos, e voltei a descer para a caminhada de fim de tarde como sempre acontece. Quando o meu pequeno cocker se cruzou com o armário que agora nos guarda as noites, ele, o guarda, soltou um grito, Ehhh, e deu uma corridinha de três ou quatro passos rua acima. Depois, fitou o cão e riu-se. Eu sorri, enchi o peito de ar e pensei, É melhor que os ladrões não venham com com cokers!

E pronto, amigo leitor, por hoje é tudo. Daqui, desta África moçambicana que nos surpreende a cada esquina. Eu ficava mais um bocadinho à conversa, mas perdi a noção do tempo, nem sei que horas são!

jpv
Desconhecida's avatar

Autor: mailsparaaminhairma

Desenho ilusões com palavras. Sinto com palavras. Expresso com palavras. Escrevo. Sempre. O resto, ou é amor, ou é a vida a consumir-me! Há tão poucas coisas que valem a pena um momento de vida. Há tão poucas coisas por que morrer. Algumas pessoas. Outras tantas paixões. Umas quantas ilusões. E a escrita. Sempre as palavras... jpvideira https://mailsparaaminhairma.wordpress.com

7 thoughts on “Crónicas de África – Coisas do Quotidiano (1)

  1. Aurea Cristina Szczpanski's avatar

    A propósito, discordo de si quando diz que estes pequenos acontecimentos cotidianos não são assuntos para uma crônica (da África, talvez, não sei… aliás, não sei quase nada desse continente com o qual nós, aqui no Brasil, temos parentesco irrevogável). De qualquer forma, toda crônica nasce de um fato miúdo e o olhar do cronista é que lhe vai deitando cores significantes. E , olha, poucas vezes li crônicas de cores tão intensas, com diálogos e narrativa tão ritmados que me tiraram pra um passeio lânguido a admirar as meninas que compartilhavam seus chinelos, a testemunhar a discussão acalorada e sem solução com o ourives, a procurar casas para alugar em anúncios duvidosos, a passear com um cocker no fim da tarde (também tive um, na cor caramelo, mas dos grandes) a rir do armário amedrontado… Assuntos corriqueiros que, se não representam todo esse país continental, tem sabor de gente daí…

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    • mailsparaaminhairma's avatar

      Concordo com sua discórdia! Era uma provocação, como se percebe, afinal, fiz a crónica. A simpatia do seu comentário quase me impele a escrever. O seu comentário é genuíno e intenso e deixa no escritor a responsabilidade de continuar. Lhe mostrarei todas as cores de África por palavras! Um forte abraço, jpv

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      • Aurea Cristina Szczpanski's avatar

        Mostre-me, por favor. E ficarei com a responsabilidade recíproca de lhe mostrar um pouco das cores reais do Brasil. O que não seria tarefa fácil nem para um escritor profissional, quanto mais para uma aspirante a escritora pretensiosa e inábil como eu. Por falar em motivação para escrever, acabei por contar a experiência de leitura que tive aqui. Ficarei feliz se você ler:
        http://wp.me/p1vStI-NZ

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        • mailsparaaminhairma's avatar

          Olá! Várias questões. Em primeiro lugar, não se menospreze. Li alguns de seus textos com atenção. Li muito bem esse de que deixou o link, “Coisas do Cotidiano” e não me deixei enganar por sua falsa modéstia. A Aurea é uma pessoa muito sensível, muito crítica, irónica e profundamente inteligente. E, facto irrebatível, escreve muito bem. Em segundo lugar, sente fundo o seu país e olha-o com desalento, mas também com uma réstia de esperança. Na minha opinião, faz-lhe falta refrescar a visão que tem do Brasil e dos Brasileiros. Parar um pouco para ver e analisar e depois voltar à escrita. Um pouco como diz na crónica…
          Quanto a mostrar-lhe Moçambique, deixe-me dizer-lhe o seguinte. Essa crónica que leu é a última de 78, sim, leu bem, 78 crónicas de África! Eu tenho a obsessão de indexar. Então, este blogue está todo indexado! Hoje é dia de aniversário, MPMI faz 5 anos! Assim, à direita dos textos encontrará índices para crónicas, poesia, contos e romances… referentes a … 5 anos de escrita! Por favor, sirva-se!
          Sobre a sua crónica. Reparei que me chamou de gajo. Gostei. E percebi. Também percebi que percebeu as minhas provocações e as minhas motivações. E eu acho que a Aurea não precisa de motivação extra. Escreveu duas frases fantásticas que me dizem que existe em si toda a motivação necessária para escrever: “toda estória merece ser contada” e “escrever sobrepuja a motivação”

          Amigos e leitores, por favor, visitem a escrita desta irmã das palavras aqui: http://meiopaoeumlivro.wordpress.com/
          Até já
          jpv

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          • Aurea Cristina Szczpanski's avatar

            Sim, te chamei de gajo por que gosto destas pequenas singularidades que o nosso português assume de um país para outro. Aqui no Brasil nós diríamos “este rapaz”, “este moço”. E sim, meu olhar anda desalentado sobre o meu país, mas, como dizemos aqui, a esperança é a última que morre. Embora eu concorde com a frase que não sei por quem foi dita (se por mim mesma, vá, que seja) que a esperança é o maior peso que um homem pode carregar. Obrigada pelos elogios e considerações.
            Até já.

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  2. Aurea Cristina Szczpanski's avatar

    Que surpresa boa este blog! Que profusão de sensações ler estes textos! Que viagem intensa a lugares em que eu nunca realmente pisei, mas para onde voei por uns instantes! Agradeço e prometo voltar…

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