Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Crónicas de África – Correio Registado

Crónicas de África – Correio Registado

Maputo, 17 de abril de 2013

Aconteceu hoje. Está fresco na memória e por isso escrevo. Não há, da minha parte, nenhum juízo de valor implícito. Há só uma conclusão: África é, efetivamente, diferente de tudo o resto. Os ambientes são diferentes, os ritmos são diferentes, as pessoas são diferentes e, claro, o quotidiano resulta diferente. Há uns dias, lia numa revista sul africana que não há nada igual a África. É bem verdade.

A minha irmã quis fazer-nos um miminho e enviou-nos uns presentinhos assim como quem tenta encurtar distâncias, atenuar saudades. Ainda por cima são coisas feitas por ela. Eu bem lhe digo que ela podia fazer negócio com as coisas que faz, mas ela limita-se a ir vendendo umas peças a amigos. Se quiserem ver mais, visitem a página dela no Facebook, aqui.

Acontece que, para proteger o conteúdo do correio, resolveu registá-lo! Ora pois bem, isto é África, não é a Europa, onde remetemos tudo e mais alguma coisa em envelopes, caixas e caixinhas e ninguém quer saber de nada à custa da livre circulação de bens e pessoas. Aqui, não só se quer saber, como se quer saber muito bem sabido. Ainda por cima, se está registado, o controlo é mais apertadinho. Assim que cheguei aos Correios, mostrei o papelinho que me mandaram para a escola, e disseram-me logo que encomendas não era ali, era noutro edifício. Chegado ao tal edifício, voltei a mostrar o papelinho e vai de me pedirem para me identificar. Foi o que fiz. Ao cabo de meros três minutinhos, a senhora apareceu com a minha encomenda e olhei para ela todo guloso, mas a coisa não ia ser fácil. Eu estava a ver a encomenda. Deitar-lhe a mão é que ia ser mais complicado:
– Senhor João, chegue aqui. Acenou ela com a caixa na mão. E eu, rapazinho bem mandado, cheguei.
– O Senhor João tem de ir na alfândega.
– E onde é isso?
– É aqui nesta porta. E indicou-me o caminho.
Eu entrei. Estavam ao fundo de uma sala enorme quatro agentes da polícia alfandegária, armados, que, durante todo o processo, só olharam. Ao balcão estava uma agente já com alguma idade. Pegou na caixa e perguntou:
-Posso abrir, senhor João?
Eu ainda hesitei… quer dizer, poder, poder, não podia, aquilo era correio privado, mas depois pensei que se lhe dissesse que não, ela ia abrir na mesma e, mais para o fim do episódio, até descobri o que acontece se dissermos que não podem abrir. Pedem-nos a nós para abrir. Ela abriu. Dentro da caixa vinha um saco de cartão fechado com agrafos.
– Posso abrir o saco, senhor João?
Nem respondi. A senhora já tinha aberto a caixa… ela percebeu e de faca em punho abriu o saco que, lá dentro tinha um envelope grande daqueles almofadados. A esta altura, quer os guardas, quer a senhora, estavam mesmo curiosos e à espera de qualquer coisa extraordinária.
– Posso abrir o envelope, Senhor João?
Sorri. Ela abriu. A desilusão foi geral. Afinal, ele era caixas, sacos e envelopes e só lá vinham uns marcadores de livros, uma carteirinha e uma pulseira. Ela olhou para mim, franziu o sobrolho assim como quem diz, Eu não desisto às primeiras, e atacou:
– Isso aqui é uma carteirinha?
– Pois, parece que sim. Também quer abrir?
– Abra o senhor João.
E eu abri e, para desespero geral, a carteirinha estava vazia. Foi então que, no meio dos presentes, surgiu uma folha de papel A4 dobrada e, visivelmente, com coisas escritas lá dentro. Ela deitou a mão à folha de papel e disse:
– Isso aqui é uma fatura?
– Não. Não é uma fatura, é uma carta da minha irmã, é privada e isso a senhora não pode abrir!
Ela percebeu que o caldo estava a entornar e percebeu também que era desnecessário um conflito porque dali não levava nada a não ser artesanato. E foi aí que resolvi testá-la. Como sei que os moçambicanos são genuinamente alegres e bem dispostos, sempre quis ver se aquela capa da fiscal durona que abre tudo resistia a um gesto simpático. E a coisa foi assim: agarrei na pulseira e disse-lhe:
– A senhora ajuda-me a colocar a pulseira? Dizem que as mulheres dão melhor os laços…
Ela largou-se a rir, agarrou na pulseira e enquanto ma atava ao pulso respondeu:
– Ah, o senhor também já ouviu dizer isso. Olhe que é bem verdade, as mulheres, quando dão o laço, amarram mesmo! – E largou-se a rir com a ambiguidade do que havia dito – Uma mulher quando amarra é para sempre, senhor João!
Ri-me com ela. Ela perguntou se podia deitar fora a caixa, o saco e o envelope e eu disse para me dar o envelope e deitar o resto fora. Ela chamou um dos guardas ao fundo da sala e disse:
– Estás a ver esta caixa? Vou deitar fora, és testemunha!
– Estás a ver este saco? Vou deitar fora, és testemunha!
E já tinha vestido outra vez a pele da fiscal.

Despedimo-nos e quando ia a sair, a primeira senhora que me atendera chamou-me:
– Senhor João…
– Sim…
– Tem um papel carimbado da alfândega?
– Tenho sim.
– Pode me dar?
– É todo seu.
– São 120 meticais, senhor João.

E pronto, lá paguei para receber o meu correio. Pedi recibo e fui à minha vida! Claro que não pude deixar de pensar que os procedimentos nos Correios foram semelhantes aos de uma fronteira, o que se entende, mas, admitamos, se estranha um pouco.

Obrigado, Mana, as coisas estavam em muito bom estado como as fotos documentam e o bilhete valeu mesmo a pena ser lido em primeiríssima mão pelos seus destinatários!
jpv

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Receba as Flores que lhe Dou

Querida Mana,

Por vezes, quando menos esperamos, de onde menos esperamos, emerge em nós uma memória que existia, viva, mas adormecida. Aconteceu-me esta semana. E o engraçado é que as memórias alimentam-se de outras memórias e nós relembramos uma coisinha e, se pensarmos nela, afinal havia um universo inteiro agarrado a ela.

Era noite tardia. Vagueava pela net à procura de quase nada, umas ideias para uns materiais e, às tantas, alguém tinha feito um vídeo sobre o assunto. Cliquei, mas o vídeo estava indisponível. Contudo, ali ao lado, naquela carreirinha de sugestões, estava um clip chamado “Receba as Flores que lhe Dou”.

Nem precisei começar a ouvir porque o que ecoou de imediato na minha mente não foi a voz do Nilton César. Foi a da nossa mãe. Fosse em casa, enquanto cozinhava, limpava, passava a ferro, fosse na loja enquanto fazia uns embrulhos ou marcava uns produtos, lembro-me de a ouvir entoar, como quem anuncia ao mundo que as coisas podem ser sempre feitas com boa disposição, esses dois versos iniciais:
Receba as flores que lhe dou
E em cada flor um beijo meu…

Eu acho que essa espontaneidade, essa natural tendência dos pais para mostrar aos filhos que o mundo é um lugar agradável para se estar e a vida é preciosa e deve viver-se cada minuto com ilusão e esperança, está, definitivamente, a perder-se. As nossas crianças crescem a ouvir falar de problemas, de crise, de competição, de numerus clausus, de impossibilidades e não ouvem os pais cantar ou declamar. A mãe não cantava só esta. Se bem te lembras, às vezes lá vinha com o “Ser marinheiro//Deste velho cacilheiro”, e aquilo despertava em mim a imaginação e a vontade de viver e ser feliz e conhecer esses fantásticos universos que as canções que a mãe trauteava refletiam. E sempre que alguém fazia anos, lá vinha ela, como às vezes ainda faz, Com que então, caiu na asneira…

É preciso alimentar as crianças de esperança, é fundamental semear nos jovens a alegria de viver e a vontade de ser feliz. É mais preciso isso do que qualquer outra coisa. Não interessa que formes muito bem uma pessoa, que a dotes de excelentes recursos financeiros, se não a ensinares a sonhar. São os sonhos que impelem o homem a mais, a melhor, a superar-se e os sonhos são livres e grátis. Eu sonhei. E, naturalmente, muitas vezes me desiludi, mas nunca baixei os braços porque os sonhos reproduzem-se e são fáceis e alimentam a capacidade de realização. 

Fiquei retido na letra. E, numa primeira reação, pensei que era um texto lírico de um exagero absurdo, e depois reparei que estava a cantá-la e a sabia de cor. Eu, que, momentos antes, nem me lembrava que a canção existia! E percebi que não era um exagero. Os nossos pais viveram aquelas palavras, personificaram aquele romance e, mesmo hoje, apesar da separação que a lei da vida impõe, ainda se pode dizer “Que seja assim por toda a vida…”

Acho, Mana, que somos filhos do sonho. O sonho dos nossos pais que era tão singelo e por isso se concretizou. E acho também que somos filhos da música. A música que a mãe trauteava, a música que o pai, às vezes, dançava… só um bocadinho…

Beijo,
Mano.