Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."

Crónicas de África – Malária e Poesia

4 comentários

Crónicas de África – Malária e Poesia

Maputo, 6 de dezembro de 2012

A malária é um problema que afeta África em geral e, naturalmente, Moçambique não lhe é isento. Há muita publicidade institucional aconselhando as pessoas a usar mosquiteiros e a protegerem-se das mais diversas formas. Não é que apanhar malária uma vez seja mortal, longe disso, trata-se. Acontece que afeta órgãos vitais e contraí-la por diversas vezes, isso sim, pode tornar-se letal.

Percebe-se, pois, que, mesmo praticando cuidados básicos, repelentes, mosquiteiros, roupas que cubram o corpo, pode acontecer ser-se picado por um mosquito infetado, sobretudo, fora de Maputo.

Quando isso acontece, por mais tratamentos que se apliquem, há sempre aquele medo das consequências, Afinal o que é que me vai acontecer? Depois, a malta habitua-se e convive com essa realidade africana.

Um dia destes, a nossa empregada, a F., apareceu-nos às sete e meia da manhã, como é costume, mas trazia o filho mais novo, de um ano, às costas! Vai de perguntar-lhe se estava tudo bem e ela a responder em lágrimas de aflição que o trouxera porque estava cheio de febre e diarreia. Ainda por cima, era dia de chuva.

Não estivemos com meias medidas, enfiámos a F. enervada e em lágrimas no carro e levámo-los a um Centro de Saúde. Uma hora e meia depois, recebemos uma sms dela a dizer que estava despachada e fomos buscá-la. Os testes foram inequívocos: o bebé tinha malária. Por razões óbvias, a saúde da criança e a chuva, metemo-los no carro, levámo-los a casa e dissemos-lhe para não vir trabalhar enquanto a criança não estivesse estável. Nesse momento, a F. mostrou-se um bocadinho menos preocupada. Já sabia o que enfrentava, o bebé já tinha levado uma injeção e estava muito bem disposto. E atravessámos a tempestade, trovões, águas e lamas até chegarmos junto à sua casa e foi nesse caminho que, da malária, emergiu a poesia. Uma frase só, uma expressão, F. não sabe, mas desenhou uma invejável metáfora. Andam os escritores perscrutando os caminhos da inspiração, buscando a beleza estética nas formulações originais, gastando tempo em aturado estudo, para encontrar a poesia e afinal ela foi nascer da malária, ali, a meio do caminho entre Maputo e Albazine, no coração amedrontado de F. Comecei eu:

– Então, estás mais aliviada?
– Estou, fico sempre assustada. Essa doença já levou o meu pai e uma irmã minha.
– Tens medo…
É. Quando a doença aparece, o meu coração corre para longe.

E pronto. Ali fiquei eu. Com a expressão a ecoar-me na mente, com o desenho claro da preocupação da F. sempre que a malária bate à porta. Essa doença que tanto brota morte como poesia.

jpv
Desconhecida's avatar

Autor: mailsparaaminhairma

Desenho ilusões com palavras. Sinto com palavras. Expresso com palavras. Escrevo. Sempre. O resto, ou é amor, ou é a vida a consumir-me! Há tão poucas coisas que valem a pena um momento de vida. Há tão poucas coisas por que morrer. Algumas pessoas. Outras tantas paixões. Umas quantas ilusões. E a escrita. Sempre as palavras... jpvideira https://mailsparaaminhairma.wordpress.com

4 thoughts on “Crónicas de África – Malária e Poesia

  1. Desconhecida's avatar

    Uma retribuição calorosa ao teu abraço! jpv

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  2. Desconhecida's avatar

    Depois de ler e saborear a frase da F, fiquei a pensar em tantas “coisas” … Faz pensar na vida. Um abraço fraterno amigo João.

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  3. Desconhecida's avatar

    Obrigado pela gentileza do seu comentário, Ruthia. É a poesia está em todo o lado.

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  4. Desconhecida's avatar

    Quando a doença aparece, o meu coração corre para longe… até repeti várias vezes para saborear a poesia.
    A beleza aparece-nos quando menos estamos à espera. Lindo!
    Beijinho
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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