Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."

Crónicas de África – O Salazar da Costa do Sol

9 comentários

O Salazar da Costa do Sol

Maputo, 8 de novembro de 2012

Eu gosto de fazer surpresas. E gosto de ser surpreendido. Para ser sincero não sei bem com que é que me espanto mais, se com a surpresa dos outros, se com a minha própria. A surpresa tem mistério e tem também revelação.

A Avenida Marginal, em Maputo, é lindíssima e é assim uma espécie de interminável roteiro de contemplações. Começa ainda bem no miolo da cidade, ali junto ao Ministério das Finanças e desfia-se sob as palmeiras bordejando o mar até à Aldeia dos Pescadores.

Um dia repleto de trabalho. Uma curta pausa para almoço. Uma simples hora. Duas sandes, dois sumos, e aí vamos nós estacionar o carro de frente para a magia das ondas a castigar o areal. Estava um tempo cinzento que é outra forma de o mar estar bonito e desabou uma água certa salpicando a areia e o carro. E ali ficámos comendo sem viv’alma por perto. Descansa o corpo, repousa a cabeça, estende-se o olhar da imaginação mar adentro e menos de uma hora depois, está-se pronto para outra fiada de trabalhos e canseiras. 

Estávamos neste contemplar coisa nenhuma para dentro enquanto o olhar embalava na ondulação, quando ele chegou assim que a chuva deu uma pequena trégua. Não tinha mais do que dezasseis ou dezassete anos. Trazia uma carrada de DVDs com ele, bateu no vidro que eu abri:
– Tens romances?
– Tenho aqui este. 
E estendeu-me um filme chamado “Kama Sutra” rodado na Índia.
– Não é bem esse tipo de romance, é mais uma comédia romântica.
E ele desfilou filmes de ação com o Chuck Norris e o Steven Seagal, o James Bond e uma série de títulos que escapavam ao que lhe tinha sido pedido. Quis meter-me com ele, mas como acho que não devemos falar com as pessoas sem saber-lhes o nome, perguntei:
– Como te chamas?
– Salazar.
– Salazar, nome interessante.
– Sim, mas eu sou o Salazar da Costa do Sol, não sou o António Oliveira.
– E tu sabes quem é o António Oliveira?
– Sei. Se ele fosse vivo, Portugal não estava em crise! Mas vocês não gostam dele lá em Portugal, não é?
– Depende, é como tudo. Há quem goste e há quem não goste. Eu não gosto muito.
– Ninguém gosta lá em Portugal. Até rebentaram com a cabeça da estátua dele em Santa Comba Dão!
– E tu sabes isso tudo? Aqui na Costa do Sol, na outra ponta do globo, tu sabes que há uma terra chamada Santa Comba Dão…
– Tenho de saber, eu sou Salazar. Mas não o António Oliveira.
E largámo-nos a rir. Comprei-lhe um DVD com filmes da National Geographic. Acho que não precisava, mas este miúdo merecia.

As surpresas que a vida nos reserva. Nem sequer faço análises de teor político. Não é isso que me interessa e o assunto está gasto e esfarrapado. Mas está uma pessoa na Costa do Sol, no hemisfério Sul, mais perto do Cabo da Boa Esperança do que de casa e aparece um miúdo imberbe a vender filmes do Chuck Norris que nos fala, com propriedade, da nossa História e sabe nomes de terras que a maioria dos jovens em Lisboa ou no Porto desconhece. Fantástico. Gosto do Salazar… da Costa do Sol!
jpv
Desconhecida's avatar

Autor: mailsparaaminhairma

Desenho ilusões com palavras. Sinto com palavras. Expresso com palavras. Escrevo. Sempre. O resto, ou é amor, ou é a vida a consumir-me! Há tão poucas coisas que valem a pena um momento de vida. Há tão poucas coisas por que morrer. Algumas pessoas. Outras tantas paixões. Umas quantas ilusões. E a escrita. Sempre as palavras... jpvideira https://mailsparaaminhairma.wordpress.com

9 thoughts on “Crónicas de África – O Salazar da Costa do Sol

  1. Desconhecida's avatar

    Olá! Só publiquei trabalhos didáticos até agora. A ficção tem estado a aguardar. O mercado é feroz. Tive uma ou outra oferta mas eram coisas muito pouco ambiciosas, mais do género edições de autor disfarçadas de publicação. Claro que é um sonho e vou persegui-lo. Gostava de publicar a poesia, o “De Negro Vestida”, algumas coleções de crónicas… enfim… o futuro dirá! Um abraço, jpv.

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  2. Desconhecida's avatar

    vim aqui parar pela curiosidade do Salazar e perdi-me por aqui , a sua escrita é deliciosa , mesmo as coisas pequenas tornam-se interessantes , tem algum livro publicado ?

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  3. Desconhecida's avatar

    Olá Maria Augusta! Muito obrigado pelo comentário. Pela simpatia, pela clarividência e também pela emoção expressa. Só posso prometer continuar a escrevê-las. Obrigado eu. jpv

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  4. Desconhecida's avatar

    Até eu, João Paulo, gostei deste Salazar.
    Tem sido, de há 2 dias para cá, uma lavagem de alma a leitura das tuas crónicas…
    Algumas já foram lidas várias vezes, sentidas até ao tutano, fazendo as lágrimas aflorarem. Não há dúvida que as palavras são, porventura, a riqueza maior que temos, pela luminosidade, quando há luz, pela opacidade, quando um céu carregado se abate sobre nós, mas, sobretudo, pela forma desnudada da pura humanidade que refletem…
    Obrigada.
    Maria Augusta

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  5. Desconhecida's avatar

    É a opinião de um Salazar sobre outro Salazar…

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  6. Desconhecida's avatar

    ” Se ele fosse vivo, Portugal não estava em crise” é bem possivel !

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  7. Desconhecida's avatar

    Também acho esse Salazar interessante. Saber que um jovem num país tão distante conhece esses detalhes da nossa história faz refletir. Admito que ele conhecia coisas que nem eu sabia..
    Abraço.

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  8. Desconhecida's avatar

    Muito obrigado, Caro R. Vieira. São motivadoras as suas palavras! jpv

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  9. Desconhecida's avatar

    Muito interessante teu texto. Suave, contínuo. E bem reflexivo! Adorei! .))
    Abraço!

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