Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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O Clã do Comboio – Este País Não É Para Jovens

O Clã do Comboio - Lugar Cativo

Este País Não É Para Jovens

O texto que hoje vos trago sobre o Clã do Comboio não é bem um texto meu. Resume-se, quase integralmente, a uma conversa telefónica que só ouvi metade na medida em que, naturalmente, não conseguia ouvir quem falava do outro lado. Mais uma vez, não farei juízos de valor. Deixo a história e os leitores ficam, assim, com a liberdade total para os fazerem sem estarem influenciados pela minha visão dos acontecimentos.

Era uma rapariga nova. Teria vinte e quatro ou vinte cinco anos. Não mais. Morena, com o olhar cansado, uma blusa com um decote redondo e discreto, um blusão de ganga e umas calças do mesmo material. Vestia de forma prática e ia a dormitar com a cabeça encostada à parede do comboio. Como também gosto de ir junto à janela porque posso colocar o telefone e o passe no rebordo dela, sentei-me de frente para a rapariga. Pouco depois de iniciarmos a marcha, o telefone dela tocou e a conversa aconteceu mais ou menos nestes termos:

– Olá, tudo bem? Tudo bem… vai-se indo como se pode e vocês? Ainda bem… como? Não. Desta vez não faço. Um dia de greve custa-me uns vinte cinco a trinta euros e ainda este mês tive outro corte… desta vez foi no subsídio de alimentação. Vi que faltava outra vez dinheiro e fui ver o recibo… já é o terceiro corte em muito pouco tempo… sim… sim… eu sei, mas como sabes o meu marido está desempregado… ele bem se esforça… não posso dizer que não tenta, entrega currículos por tudo o que é sítio… um dia destes disseram-lhe, Tomara eu sustentar os que cá tenho sem despedir ninguém, quanto mais meter mais gente… isto está muito mau. Somos um país de desempregados e infelizmente o azar já bateu à nossa porta… pois… pois… olha o menino agora precisa de uma pala para andar com um olho fechado e depois vai precisar de óculos… não, não tenho, mas a minha avó vai-me emprestar, aliás se não fosse a minha avó e a minha sogra nós não aguentávamos o mês… sim, ainda… num fim de semana vou ficar à minha sogra, no outro vou ficar à minha avó. Tem de ser assim, senão não conseguíamos… fazes bem… temos de aproveitar as pequenas coisas, caso contrário vivemos uma vida parva… sim… sim… eu sei… este país não é para jovens. Um dia destes… sim… beijinho. Tchau tchau.

jpv


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O Clã do Comboio – Diversidade Subúrbio-Regional

Diversidade Subúrbio-Regional

Um dia destes, com algum propósito, o tipo careca a que chamamos Álvaro fez notar que as diferenças que vou registando entre o interregional em que andava e o regional em que ando poderiam ter a ver com o facto de, parte do percurso, ser suburbano. Não podia ter mais razão, o tipo careca a que chamamos Álvaro. Por diversas razões, sendo a principal delas a composição da fauna. Outra, não menos interessante, é o ritmo da viagem num comboio em que dois terços dos passageiros fazem um percurso curto, não superior a trinta minutos. Chamo-lhe Subúrbio-Regional porque, servindo os subúrbios, não deixa de ser um serviço regional. Entre Santa Apolónia e Azambuja, o comboio é claramente suburbano. Depois de Azambuja é tal e qual como se fôssemos no interregional. Muda o aspeto das pessoas, muda o ritmo delas, a forma como se comportam e a própria composição da carruagem.

No trajeto suburbano impera a multiculturalidade, a diversidade étnica, social, financeira, da moda e dos hábitos e rituais. Há muitos executivos de fato e gravata com pastas e tablets a sair de lá de dentro. Há muitas executivas de saia travada e casaco de fazenda, há mulheres cosmopolitas, de aspeto eminentemente urbano, e há as senhoras que vêm fazer limpezas a Lisboa numa companhia com bata e emblema, e há os operários que se juntam em magotes de seis e falam de mulheres e futebol, há os jovens a abanar a cabeça ao ritmo do que vai a estrondear nos phones, vindos da escola de mochila às costas. E todos eles se sentam com rapidez nos gestos e os que ficam de pé, ficam só de pé, como se fosse um autocarro ou o Metro. E, como entram em revoadas, em revoadas buliçosas saem e deixam o comboio semi-deserto.

E, depois de Azambuja, volta a calma das pessoas que dormem encostadas à parede lateral do comboio, das que leem à vinda o romance da ida, dos pequenos grupos unidos por entrarem ou saírem na mesma paragem, no fundo, daqueles para quem a viagem de comboio não é um pequeno e fugaz trajeto, mas uma viagem a requerer paciência.

É como se no regional houvesse dois clãs. O fugaz suburbano e o paciente subregional. A mim, o que me agrada em tudo isto, é algo que sei muito bem o que é, mas quase impercetível, quase impossível de detetar: a diversidade subúrbio-regional.

jpv