Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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O Clã do Comboio – Triste

Triste

Foi um episódio triste. E presta-se a juízos de valor. Posso fazê-los. Sei fazê-los. Não vou fazê-los por opção. Limitar-me-ei a relatar o que vi. No final do texto deixarei duas frases. E essas, sim, terão juízos de valor. O leitor, como a palavra indica, fará as suas leituras e as interpretações que entender.

Fim de tarde. Regresso a casa. Dois jovens, entre os dezoito e os vinte anos, estão sentados à minha direita, mas do outro lado do corredor. Levantam-se os dois e vão à casa-de-banho. Enquanto lá estão, surgem quatro revisores, ou melhor, dois revisores e dois fiscais. Cada um vigia uma saída da carruagem. Duas portas para a rua, ao meio da carruagem, e duas passagens para outras carruagens, nas extremidades. O comboio para. Os jovens saem da casa-de-banho. Deparam-se com os revisores e sentam-se nos seus lugares. Em menos de um sopro são abordados por dois dos revisores. Já íamos perto de Azambuja quando isto aconteceu. Eles tinham um passe mas só cobria o percurso Santa Apolónia – Oriente.
–  O seu título de transporte não é válido.
–  Ah não? Olhe, foi um colega seu que disse que era.
–  Qual colega?
–  Não sei. Já foi há uns dias.
–  E para onde é que o senhor vai?
–  Vou para Santarém. Queria um suplemento da Azambuja para Santarém. Pode-mo vender?
–  Não posso. Todos os bilhetes se vendem nas estações, exceto quando o cliente entra numa estação sem bilheteira o que não é o seu caso porque o senhor entrou em Santa Apolónia. Por outro lado, o suplemento de Azambuja não lhe serve de nada porque o seu passe só chega até ao Oriente.
–  Isso é o que você diz. O seu colega disse-me exatamente o contrário. São todos uns incompetentes. É o que é.
–  Não vá por aí… Não use essa argumentação.

Um dos fiscais ordenou que fossem passadas as coimas. E foram. Se bem ouvi, 169 € com vinte por cento de desconto se fossem pagos nos primeiros cinco dias. Um dos jovens comentou:
–  Isto é uma vergonha. Vou reclamar. Olhe que eu ando no último ano da licenciatura de Direito e sei que isto não tem efeito nenhum porque prescreve.

Os revisores não cederam e passaram as coimas. Um dos jovens, o que nunca falou, disse:
–  Último ano da licenciatura? Tu andas no 12º!
–  ‘Tá bem, mas a Bela do call-center disse que isto prescrevia.
–  Olha que não. É melhor pagarmos isto.
–  Eu não. O meu pai fica sempre a dever as faturas da PT e ninguém o chateia.

Quando chegaram a Santarém, saíram do comboio a resmungar e a insultar a companhia e os revisores, muito ofendidos com o sucedido.

Juízos de valor
Frase 1: Tudo isto é vergonhoso, absolutamente condenável, sinal de uma gritante falta de valores, princípios e formação, tudo isto faz parte das razões que, em meio da nossa grandeza, nos fazem pequeninos às vezes, e nos condenam a crises cíclicas. Sem desculpa!
Frase 2: Ando de comboio diariamente há dezasseis meses, nos primeiros quinze assisti a uma situação deste tipo, no último mês, presenciei cinco casos similares. Sinal dos tempos?

jpv


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Lá Longe

Lá Longe

Lá longe
Na terra das memórias queridas,
Dos odores persistentes
E das aves coloridas.
Lá longe
No tempo de ser menino
E ter a esperança toda,
Meu pai afagava-me a cabeça
E o mundo fazia sentido,
E a voz de minha mãe
Afastava qualquer perigo.
Lá longe
Onde as águas se precipitavam em cacho
Em pique-niques abundantes
Na liberdade da conquista
De ser-se homem.
Lá longe
No tempo de minha avó
Me trazer mimado
Com sumos de tomate
E batatas fritas antes de fazerem mal.
Lá longe
Onde me perdia no mato
Com meu avô,
Criança como eu.
Lá longe
No tempo de olhar o céu
E extasiar-me com o tamanho do Universo.
Lá longe
Onde o comboio era uma festa,
Um fogo de artifício
Crepitante
Almejando o infinito.
Lá longe
Onde se ouviu o grito
E o trovão.
Lá onde onde nasceu tudo
E tudo feneceu.
Lá longe
Ficou a criança
Que vim a ser eu.

jpv