Monthly Archives: Março 2012
Divulgar: A bem da saúde pública e dos candidatos!
E prontus, já fiz o gosto ao dedo!
Por causa dA Dívida – V

Por causa dA Dívida – V
– Sim aí, sim aí, sim, isso mesmo, isso, isso!
Este miúdo é um prodigio. Vale cada cêntimo que gasto com ele. E aprende depressa. É voluntarioso. Meu Deus, faz-me tremer toda. Acho que já fui à lua umas três vezes. É para aquela amostra de marido não se armar em espertinho. Este miúdo é mesmo uma maravilha. Estes músculos, este cheiro e este vigor… meu Deus, não sei como é que ele aguenta tanto tempo… deve ser um milagre da Natureza. Deixa-me cá retribuir-lhe a generosidade com uns mimos.
É tardíssimo. É hoje que o Mário me vai fuzilar com perguntas sobre onde é que andei, com que é que andei, quanto é que gastei. Está um chato. Mas isto está muito sossegado… será que já dorme? Deixa lá ver no quarto. Aquele malvado ainda não chegou a casa! Querem ver que quem faz as perguntas sou eu… deixa lá ir tomar um duche… pelo menos isso levo-lhe de vantagem. Este duchinho e o suminho de laranja souberam mesmo bem… e o meu maridinho que não aparece… Ah, finalmente!
– Olá maridinho! Isto é que são horas? Estou aqui há séculos à sua espera. As suas amiguinhas andam a retê-lo muito.
– Acha que são as minhas amiguinhas? Hoje foi uma velha amiga que me reteve, chama-se Contabilidade, já ouviu falar?! Estive a conversar com ela toda a tarde e toda a noite e tivemos uma conversa tão esclarecedora que amanhã de manhã vou mandar cancelar os seus cartões de crédito. Todos!
– Não seja assim. Eu só os uso para as minhas necessidades básicas.
– Sapatos a 1400€ o par não são necessidades básicas, Bela. A situação é grave.
– Então, mas há coisas sem as quais não podemos viver. Por exemplo, o meu maridinho não pode viver sem os meus cartões de crédito. Para si, são uma necessidade básica, garanto-lhe.
– Bela, tome juízo, não sei o que está para aí a dizer. Não está a fazer sentido…
– Ah não?! Então eu explico. Se eu não tiver os meus cartões de crédito, não faço umas comprinhas, uns sapatinhos, um vestidito, não vou a uns lanches com as minhas amigas e fico triste. A tristeza, por sua vez, provoca estados de depressão, a depressão torna as pessoas cabisbaixas, soturnas, menos dinâmicas, reduz drasticamente o desejo sexual. Há mulheres que chegam a andar aos seis meses, até mesmo um ano, sem … o maridinho sabe. E é aqui que entramos na esfera das suas necessidades básicas. Já percebeu agora ou quer que lhe faça um desenho?!
– Isso é chantagem, manipulação da pior espécie…
– Manipulação, pedipulação, labiopulação, cinturapulação, é uma pulação geral, mas só se eu não andar assim… como é que eu hei de dizer… triste… deprimida!
– Bela, Belinha, querida, nem vá por aí… a situação é catastrófica, ando a fazer uma ginástica terrível para pagarmos as contas…
– A ginástica faz-lhe bem. Está a ganhar uma barriguinha. Mas, olhe, se está preocupado, corte três dias nas Maldivas, vamos só doze, mas depois não me venha dizer que quer ir apanhar peixes com o outro…
– Não é nada disso, Bela, não há dinheiro para nada, precebe, para nada!
Muito bem. Este senhor está a precisar de uma lição. Primeiro faço um beicinho, agora uma lágrima, um ar tristíssimo, muito abatido e agora vou desatar aos gritos e jogar os trunfos todos:
– PARA NADA?! NÃO HÁ DINHEIRO PARA NADA?! Então explique-me quem sustenta as suas amigas?! E eu, pobre de mim, só queria ser sua, ser a única, é para si que me ponho bonita, OUVIU?! Sim, eu sei que sai com elas, ou acha que eu não vi o batom da Sandra na sua camisa VE que eu lhe ofereci no Natal passado? E não me desminta que eu sei muito bem qual é o gloss que ela usa. POBRE DE MIM, SÓ QUERIA TER UM MARIDO QUE GOSTASSE DE MIM… E a Marlene? Acha que eu não reparei que ela trazia um Chantal Thomass na festa de beneficência? E nem me fale do marido dela que só percebe de marcas de carros e uísques. E o perfume dela na sua roupa? Acha que eu não sei quando esteve ao pé dela? Acha? POBRE DE MIM, UMA DESGRAÇADA VOTADA À ESCURIDÃO DA CASTIDADE E AINDA ME VAI TIRAR O MEU GANHA-PÃO! Mas, lembre-se, enquanto as sustentar a elas, vai ter de me sustentar a mim e eu tenho de ser a mais cara porque sou sua mulher, ouviu? Seu mulherengo sem emenda! Ainda vai viver com uma delas e eu tenho de ir para … BAIXO DA PONTE!
E agora faço aqui uma choradeira a condizer, bato com umas portas do roupeiro e fecho-me na casa-de-banho. A isso, ele nunca resistiu… eu não disse… lá está ele a chamar por mim com aquela voz melada de gato que foi ao açúcar.
– Belinha, venha cá, não faça um drama, é que estou preocupado, mas ninguém vai para baixo da ponte! Olhe, venha cá que tenho um presente para si… foi por isso que me atrasei.
Um anel de safiras?! Que liiiiindo! Magnífico! Este maridão tem cá umas saídas… e eu a pensar que a noite estava perdida… o melhor é recompensá-lo… mas hoje estou tão cansada… enfim, um sacrifício pelo matrimónio! E amanhã vou fazer a Marlene roer-se de inveja… hei de lho esfregar naquele nariz impertigado!
– Venha cá à sua Belinha que lhe quer dar um miminho e fazer as pazes consigo…
Este maridão ainda não perdeu o jeitinho.
– Sim aí, sim aí, sim, isso mesmo, isso, isso!
jpv
O Ofício da Memória – Ele

O Ofício da Memória – Ele
VIII
Gosta de conduzir. Sempre gostou. Sobretudo assim, numa tarde quente de verão com o sol pendurado lá no alto e o céu banhando o horizonte de azul, janela aberta, mangas da camisa arregaçadas, um braço de fora e o vento a barulhar nas roupas. É uma indescritível sensação de liberdade. E consegue pensar. Consegue pensar sem obstáculos. É como se a estrada livre lhe entrasse pela alma dentro e abrisse os caminhos do pensamento. Conhece poucas coisas que aprecie mais e, contudo, é um homem de gostar da vida e das coisas nela. Uma cerveja gelada numa tarde de calor e amigos, ver as filhas crescer, ler um livro, ver o encarnado das camisolas do Benfica sobre o verde mágico do relvado, dormir e, claro, fazer amor. Conduzir tem outras vantagens, é a ilha das ilhas, o isolamento e a confiança absoluta em si, é como um jogo de comunicar e é por isso que se sente sempre profundamente realizado e feliz quando conduz. Mas hoje há qualquer coisa no peito. Não é um sobressalto, não é uma preocupação, é algo indefinível e perturbante. Uma interrogação. Fixa o olhar atento na estrada, faz gestos mecânicos e procura na mente a pergunta. Só depois se dará ao trabalho de buscar a resposta. Se ainda fizer sentido. Mas nada se esconde assim tão bem na mente de um homem que o próprio não possa vasculhar e encontrar. E encontrou. Encontrou a semente daquela inquietude. A caminho de estar com ela, a caminho de revê-la, pergunta-se que sentido fará. Sim, que sentido faz este encontro?
IX
Em primeiro lugar, esclareceu-se a si próprio. Vai porque quer. É um ato voluntário. Não vai enganar-se e pensar que não foi surpreendido pelo mail dela estabelecendo contacto. Claro que sim. Mas, na altura, encarou isso como uma surpresa boa. O seu receio não é revê-la, falar com ela. É mexer num momento do passado que armazenou como perfeito e estragar-lhe os contornos da perfeição. Mas ela pediu. E ele também vai porque ela pediu. Porque sentiu na solicitação dela um grito de ajuda, um estender de mão para a tábua de salvação. E quando nos estendem assim a mão, há que segurá-la e trazer à tona a alma em apuros. Háoutra razão, sim. Não pode mentir-se isso, é o tipo de honestidade que a sua consciência deve à sua consciência. Vai por curiosidade. Quer saber como ela está. A verdade é que ela nunca foi nada para si e foi sempre tudo. Nunca foi nada porque nada nos gestos dela interferiu na vida dele após o seu encontro. Foi uma ausência. Só. Foi sempre tudo porque nunca deixou de habitar-lhe o pensamento, nunca deixou de assaltar-lhe as emoções, nunca deixou de o guiar na forma de entregar-se a uma mulher, de a receber em si.
X
É irónico que adore conduzir e esteja prazenteiramente conduzindo para rever uma mulher do tempo de antes de conduzir. É incrível. Só agora pensa nisso. Na altura, nem carta tinha. Era um adolescente que queria ser homem, um homem a acabar de ser adolescente. Só agora repara na coincidência. Conheceu há trinta anos a mulher que lhe inaugurou o corpo, a sua inimitável ensinadora de sua aprendente sofreguidão. Como lhe está grato! São curiosos os caminhos da vida. Há mesmo quem lhes chame coincidências, mas coincidências deve ser palavra pouca para uma tão magnífica organização da ordem das coisas no Universo. Ela começou este percurso com quarenta e sete anos. A idade com que ele vem retomá-lo. Há entre os dois sessenta anos de experiências, vividas em trinta, a amplitude etária que começa na barba rala e no corpo musculado dos dezassete anos de um jovem e termina nos cabelos brancos e na pele enrugada dos setenta e sete anos de uma senhora em serôdia idade.
XI
Preciso que seja o meu oficial da memória é muito pouco para motivação, mas a verdade é que não foi preciso mais. Não percebe as motivações dela. Não sabe que sentimentos possa nutrir por ele, não sabe porque quer rememorar, mas percebeu que será ele a relembrá-los. E aceitou porque não se importa de relembrar-se dessa aventura, desses dias de regras a quebrar, de promessas desenhadas na areia da praia, de sussurros excitados e valores absolutos como a emoção do momento. Tudo. Nada. Sempre. Nunca. Todos. Ninguém. Eu e Tu. Foi pouco para Tudo. Foi muito para Nada. Foi curto para Sempre. Foi longo para Nunca. Foram poucos para Todos. Foram muitos para Ninguém. Foram Eu e Tu. Não foram Nós. Pelo menos até hoje. Se a motivação dela é rememorar, para si é razão suficiente. Toda a que é necessária.
XII
Assim como que exercitando a memória, assim como que preparando-se para cumprir a sua função de oficial da memória, vai antecipando lembranças à mente como quem destapa um baú e solta uma vida inteira aí fechada. Lembra-se de uma mulher de meia-idade, experiente, cheia de vida no olhar, cheia de movimento no corpo, prenhe de amor para dar e, paradoxalmente, de uma insegurança confrangedora na sua própria pessoa. Nasceu para dar. Quando a conheceu tinha dado sempre. Sem nunca saber se receberia de volta. Amá-la foi como dar-lhe a mão. Foi como beber-lhe a água para lhe matar a sede. Lembra um jovem imberbe, inexperiente, pleno de energia, a rebentar de confiança e da ousadia que nela cresce. Um rapaz-homem pronto a receber em si o mundo inteiro. A conquistá-lo. Lembra-se de ter aprendido ela a receber e ele a dar. Esquisita a vida das pessoas e as pessoas na sua vida.
XIII
Às vezes, as pessoas podem não significar muito para nós, podem não captar-nos as atenções todas, podem não ocupar-nos todas as emoções, podem não estar no nosso quotidiano, mas, ainda assim, num determinado momento da nossa existência, podem mudar-nos a perspetiva, e isso, parecendo pouco, é tudo. Esta mulher que vai rever mudou-o para sempre porque alterou a sua perspetiva em relação às mulheres, em relação aos relacionamentos amorosos, à busca do equilíbrio. Foi ela que o ensinou a dar e a ser generoso e atencioso e, sim, isso começou no bailado dos corpos suados mas saiu dessa esfera e veio a orientar todo o seu comportamento para com as mulheres. É por isso que não pode deixar de pensar que não tendo ela sido nada, foi tudo. Em certa medida, deve-lhe, mesmo, o sucesso do seu casamento. O que pensa, o que não pode deixar de pensar, à medida que se aproxima dela, é que não importa tanto a quantidade de tempo que estamos com uma pessoa como a qualidade dele, o que partilhamos, o que aprendemos, o que ensinamos, como conseguimos, ou não, tocar cada pessoa que cruza a nossa existência. Esta mulher esteve na aurora da sua existência como homem e moldou o homem que veio a ser, o mesmo que conduz na sua direção.
XIV
Disse em casa ao que iria. Visitar uma velha amiga. Uma pessoa importante na sua vida. Alguém que não vê há trinta anos.
– Então ainda eras um cachopo!
– Sim, um cachopo a querer ser homem. A importância dela para mim tem a ver, exatamente, com essa transição.
Há muito que cultiva um ambiente de transparência e confiança. Daí a revelação sem subterfúgios. De resto, ela não quereria que ele mentisse. Quase o deixou claro, Só vem se puder e não se prejudique por isso. Não prejudicou. Esta confiança e esta segurança acompanharam-no sempre. Cresceu uma criança normal e feliz, como deveriam ser todas as crianças, fez-se um adolescente dinâmico e ousado, às vezes atrevido, como todos os adolescentes devem ser. Estudou. Formou-se. Tudo dentro da maior normalidade. O que nele se destacou, sempre, foi a segurança com que abraçou projetos e desafios, a confiança nas suas ações, os riscos calculados e assumidos. Estes ingredientes cozinharam-se com a sua sensibilidade e com uma moderada capacidade intelectual e fizeram dele um homem de sucesso. Conseguiu emprego estável, casou, teve filhos, duas meninas, comprou casa, fez férias, trocou de carro, construiu o seu pequeno império de afetos e bens, alicerçado no trabalho e na confiança. Inabalável confiança. Namorou o que quis, com quem quis, teve alegrias e desilusões e, quando olha para trás, sente-se feliz e realizado com o seu percurso. Quando olha para a frente vê outro tanto a conquistar. Sente-se no auge da vida, capaz de abraçar qualquer desafio e por vezes arrisca, quase sempre pensando na família, na mulher, nas filhas. E é esta solidez de estar, é este otimismo constante, este olhar para as barreiras e ver-se do outro lado, que o trazem hoje aqui. Isso e a curiosidade de revê-la. Ninguém sabe como se conheceu egoísta e umbilical na forma de olhar o mundo e em particular as mulheres nele. Eram fontes de prazer e satisfação, eram portos de desafogar a sofreguidão e tomar para si tudo o que os sentidos tinham para dar. Mas tomava pouco. Até que ela o ensinou a olhar a mulher que estivesse consigo. A pensar nela. A dedicar-se-lhe como se fosse a última coisa que fizesse na vida, ensinou-o a escutá-la, a orientar-se pelo seu desejo, qual bússola, no seu corpo, qual mapa de prazer. E é com essa pessoa que vai encontrar-se. Primeiro, possuiu-a, ou foi possuído por ela, a ordem tanto faz, possuíram-se mutuamente com consentimento e incendiado desejo de ambos. Depois, apaixonou-se por ela. Foi rápido como um vírus. E como um vírus demorou mais tempo a afastar do que havia demorado a chegar. Por fim, amou-a à distância. Sofridamente. Mais tarde, ficou-lhe agradecido e reconhecido. Hoje, admira-a. E, sem dúvida, quer vê-la só porque sim, sem razão nem explicação.
XV
Estacionou na avenida, de frente para o mar. Não estava atrasado. Ficou uns momentos contemplando o oceano, a beber-lhe o poder com os olhos e a alma. Inspirou fundo diversas vezes e sentiu o fresco marinho invadi-lo, o azul enchendo-lhe o peito e pintando-lhe as ideias. Entrou no hotel, perguntou pela esplanada e subiu. Quando saiu para o exterior, não pôde deixar de reparar no esplendor da paisagem. Tão simples. Um areal. Um oceano. Um sol imenso e laranja. Procurou-a com o olhar. Não foi difícil encontrá-la. Só havia ali duas pessoas e só uma era mulher. Vestido encarnado, chapéu de aba larga, casaquinho de malha, óculos de sol, cabelo arranjado. Era a mesma figura generosa e larga, embora envelhecida. Estava bonita. Dirigiu-se para ela. E, com tanto para dizer, silenciaram as palavras com um gesto simples. Ela levantou-se. Ele caminhou na sua direção. E abraçaram-se longamente como quem preenche um espaço vazio de emoções, uma falha, uma ausência. E ficaram sentindo o tempo sem o medir, estreitando laços. Sem palavras, diziam, Nunca me esqueci de ti, Nem eu de ti, Estiveste sempre comigo, E tu comigo, Foste importante para mim, sabes, fizeste-me, Foste importante para mim, sabes, refizeste-me. E quando as palavras mudas, passadas no tato, se diluíram no tempo, as primeiras ecoaram na tarde:
– Esse vestido é o que eu penso que é?
– Com uns arranjos!
Continua…
jpv
Citação do Tempo
A Única Defesa Possível…
Perigo!
Divulgar: "Ser ou não ter…"
O Ofício da Memória – Ela

O Ofício da Memória – Ela
I
Às vezes esquece-se das coisas. Das chaves. Do lume aceso, da consulta, de comprar comer para o gato. E às vezes faz as coisas, mas esquece-se que as fez. Nada disso a incomoda, já. Nem mesmo ter deixado de conduzir. Habituou-se a outros transportes, sem preocupações e mais confortáveis. Sobretudo, sem responsabilidades. Usa o expresso, o comboio e organiza saídas em que uma amiga menos esquecida assuma a condução. Também já se esqueceu de sair do comboio onde queria e foi ter a outro destino. Decidiu querer outra coisa. Já não deixa que a vida a torture. Já não. Todos estes esquecimentos estão diagnosticados e têm nome. São diversos, os nomes, normalmente, estrangeiros, compridos, impronunciáveis e é por isso que resolveu chamar-lhes a todos da mesma forma: os meus convenientes esquecimentos. Há, contudo, algo que a incomoda. Profundamente. Até à raiva de um pontapé numa porta, de uma mão cerrada no tampo da mesa da cozinha. Tem perdido memórias. Tem-se esquecido de coisas de que queria lembrar-se. Sabe que aconteceram, sabe até com quem, mas esfumam-se os pormenores. Ora, a vida são sobretudo as memórias que temos do que vivemos. As suas memórias são o seu tesouro privado, a razão por que vale a pena suportar o peso da velhice. Isto desespera-a. Recentemente quis revisitar uma das mais preciosas memórias, um dos tesouros mais bem guardados de uma vida preenchida. E não conseguiu. É por isso que está aqui hoje. Para o recuperar. Tudo tem remédio e nem sempre precisa ser um medicamento. Deus queira que ele apareça. É peça fundamental no puzzle de lembrar-se.
II
O sol já não é um astro fulgurante e amarelo por cima das nossas cabeças. Agora é uma enorme bola de fogo de contornos entre-cortados por nuvens breves no horizonte e espraia a sua cor laranja no mar, na areia, na fachada do hotel e na esplanada por cima do último andar. Sempre gostou de Buarcos. Daquele hotel e daquela esplanada, em particular, onde pode sentir-se como o Criador observando a maravilha da sua obra. Está sentada, contemplando a paisagem. Em cima da mesa uma água com gás e uma rodela de limão. Mais do que bebê-la, gosta da conversa das bolhinhas sussurrando frescura. Está só e tem ao seu lado uma cadeira vazia esperando pelo oficial da memória. Sem ilusões. Sabe bem que é uma senhora com a respeitável idade de setenta e sete anos. A pele marcada pelas rugas fundas desenhando o tempo em torno do olhar e o cabelo ralo e fraco quando não está armado e penteado pelo cabeleireiro como agora. Os braços finos e flácidos, as pernas fracas. Onde outrora estivera um pujante e vigoroso púbis, agora habitam uns pelos brancos e outros cinzentos pouco acompanhados. A inexorabilidade do tempo passado está visível em todo o seu corpo, contudo, o coração frágil e cansado, hoje, parece querer sobressaltar-se. Deixa-te de coisas, menino, nem tu, nem eu, temos idade para essas aventuras. É uma mulher de estatura mediana, corpo generoso e largo, de formas circulares e, se perdeu alguma generosidade e as formas se deterioraram, não foi só pela passagem do tempo. Viveu bem. E isso tem o seu preço. Enverga um vestidinho leve, encarnado, um casaquinho de malha por cima. Um chapéu de aba larga na mesma cor, sapatos rasos e confortáveis, óculos de sol enormes e pouca maquilhagem. Não quer mentiras de espécie alguma.
III
Está sozinha. Mas não é só na esplanada que está sozinha. É na vida. Sempre esteve. Primeiro casou. Durou pouco tempo. Depressa se apercebeu que a sua vida era sua, que a sua liberdade não tinha preço, que o seu espaço era seu. Sempre esteve só. E não se arrepende de nada. Só do que não pôde ou não conseguiu viver. Por vezes, aflora-a a mágoa de não ter tido filhos, uma família, alguém para quem voltar ao fim do dia, planear fins-de-semana, férias, fazer partilhas, cristalizar a existência. Mas não é possível ter-se duas vidas e o homem com quem se casou rapidamente a convenceu de que não era aquele o seu caminho. Solitária, sim. Até à dor. Até à solidão. Mas não arrependida. Isso nunca. Soube sempre que viveu consigo, para si. Soube sempre as vantagens dessa condição e o preço a pagar por ela. Teve uma vida boa, acha. Tem a certeza. Nada a incomoda. Exceto as memórias que não vêm!
IV
Quando olha para si tem sentimentos mistos que quase a confundem. Gosta do que vê e não gosta do que vê. Vê uma mulher de setenta e sete anos que não é bela, mas tem uma figura escorreita e interessante, vê um maravilhoso caminho percorrido numa vida plena de aventuras e conquistas e perdas também. E vê traços da mulher que não é. E esses magoam-na como lâminas espetadas na consciência. Gosta de si e do que é. Não gosta de já não ser o que foi. Esse homem que espera e que, se não mentiu, vem ao seu encontro, cairia a seus pés há vinte anos. Hoje, nem sabe como dirigir-se-lhe. E não gosta de perder memórias. É como se morresse por dentro, como se a sua vida se apagasse minuto a minuto, pormenor a pormenor. Sabe que está desgastada, mas até disso gosta e, mais importante de tudo, gosta de si… fará charme!
V
Enquanto olha o mar fingindo que chega à terra e o sol espelhando-se nele, lembra-se das amigas. Das mais chegadas, confidentes. Das amigas de paródia, das amigas de jantares, de cinemas, de festas e de uma ou outra de aventuras mais íntimas, de partilhas menos dizíveis. E lembra-se que algumas já morreram. Umas por misericórdia do Criador ou a sorte de não ver prolongada uma existência sem sentido. Outras de prematura tristeza e sofrimento. Lembra-se das inúmeras vezes que celebraram aniversários umas das outras, das vezes que combinaram as saídas, dos pontos de encontro, das expectativas em relação aos rapazes, dos namorados, das que se afastaram, das que se afastaram e voltaram. Lembra-se de rirem juntas, de chorarem juntas, de jurarem segredos que acabavam revelando umas às outras. Às vezes esquece-se de uma delas e a sua vida fica incompleta. E exaspera. E depois, sem aviso, volta-lhe à memória, preenche-lhe o espaço vazio e sente-se tranquila de novo. As amigas deram-lhe tudo. Deu-lhes tudo de volta. Nunca ocuparam o lugar dos homens. Tiveram o seu próprio e hoje sabe que as coisas ficaram bem assim.
VI
Os amigos foram uma história diferente. Muito poucos. Muito sólidos os muito poucos. Confianças profundas, partilhas inimagináveis. A visão pragmática da vida. E houve os que nunca chegaram a ser amigos. E houve os que foram mais do que amigos. Os primeiros foram amantes vigorosos e fugazes. Homens de a satisfazer com a intensidade e a efemeridade do fogo num pau de fósforo. Incandescente, incendiário e momentâneo. Os segundos cozeram amores em lume brando, fizeram propostas, quiseram algo mais, mas optaram eles e ela por não desperdiçar a diversidade da vida na exclusividade do amor. E andaram tenteando o destino, mas não mergulharam nele. E teve, por isso, companheiros de paixões feitas amor tornado, depois, amizade. Cumplicidades íntimas. Sorri ao pensar que não pode dizer-se que a sua cama tenha sido uma via pública, mas não pode dizer-se, também, que tenha alguma vez arrefecido. Só quando a idade e o corpo arrefeceram, só então pensou que, sempre que regressou sozinha de um encontro, de um jantar, de uma festa, de umas férias, e meteu a chave à porta orfã de uma casa vazia, só então pensou que tudo poderia ter sido diferente. Há muito que deixou de sofrer com isso. Habituou-se. À situação. E a si. Gosta de coabitar consigo. Entende-se bem.
VII
Ele foi diferente. Um vigor inimaginável. Uma avidez e uma entrega ímpares. Um aprendiz sôfrego do seu corpo e das artes do amor. Era suposto ter sido uma incandescência forte e efémera. E foi porque nunca mais o viu. E não foi porque ficou sempre ardendo no seu peito. De tempos a tempos revelando-se necessidade. Sobressaltando-lhe as emoções. O seu mais precioso tesouro. A memória mais grata. Uma surpresa. Uma erupção inesperada da alma e do corpo. Uma aventura de pés descalços na praia noturna, de corpos suados e exaustos e persistentes. Queria tanto lembrar-se dos pormenores! Está curiosa em relação a ele. Como estará fisicamente, na vida, no trabalho, terá família? Ainda não chegou, não sabe sequer se virá, mas, se vier, será de novo uma surpresa. E, quem sabe, um banho de juventude. Aquele inesquecível jovem mudou-a para sempre e nem sabe. Foi a sua fonte de juventude. Na altura rejuvenesceu para ele, com ele. E a sua vida reencontrou a luz que andara perdida. Está curiosa, sim. Quase ansiosa. Emerge na tarde projetando uma sombra masculina na esplanada um homem de meia idade. Se não o esperasse, não o reconheceria. Seria só mais um estranho. Esperando-o, reconhece-lhe o olhar, o sorriso e a forma elegante como se balança ao andar. É ele, sem dúvida. O seu oficial da memória não faltou. Afinal, ainda se pode ser feliz aos setenta e sete anos.
Continua…
jpv






